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Matosinhos |
"A Razão ocidental foi edificada quando Platão lançou as suas bases em reacção ao questionar radical e infinito de Sócrates."
(Michel Meyer: "Principia Rhetorica")
E o que pode obrigar o pensamento a estar de acordo consigo próprio, em vez de o estar com o mundo? Que outra coisa senão a lógica?
Sócrates empregava também a lógica, mas fora de qualquer sistema. Daí que a sua 'guerrilha' intelectual, o seu método de confrontar os seus interlocutores com as consequências do que diziam pensar, os embaraçava infalivelmente. Eles não tinham ainda o refúgio dum sistema implícito. O politeísmo desencorajava o 'ponto de vista' predominante, quando se punha em causa a tradição e a opinião (a 'doxa').
A autonomia da lógica (e da matemática) tanto pode ser fonte de ordem como de desordem. Até certo altura, a ciência estribou-se nos testes da experiência que lhe permitiam obedecer ao 'critério da verdade', como dizia Marx.
Descolámos, entretanto, da 'experiência humana', do qual o fim do humanismo é o melhor símbolo. A 'verdade' tende a confundir-se com a lógica. O desenvolvimento da ciência (que começou com a religião, não o esqueçamos) já deixou há algum tempo o planeta e a dimensão antropológica.
Mas o cosmos que serve de referência é teórico e não se sujeita à prova.
Sócrates pode sorrir, por detrás das nuvens.
(*) Compararam Sócrates à tremelga (da família das raias), por 'electrizar' a sua audiência.
"DEPUTADO: Sê-lo, cúmulo da glória. Vociferar contra a Câmara dos deputados. Demasiados fala-barato na Câmara. Não fazem nada."
("Dictionnaire des idées reçues", Gustave Flaubert)
Nesta sua obra póstuma, o autor de 'Madame Bovary' compraz-se em reunir alguns lugares-comuns da linguagem corrente. Algumas definições não mudaram em mais de um século. Como a que nos representa o deputado à luz de uma irremediável inutilidade. Mas, hoje, é corrente ver nessa função menos a glória do que a ambição pelo dinheiro (hesitei em escrever poder, mas este na nossa sociedade é sempre um meio para o 'vil metal').
Agustina ("O mistério da légua da Póvoa") definia Salazar como um desses raros fenómenos de indiferença pessoal pelo poder. Diz a escritora, referindo-se aos 'amigos' de direita do ditador:
"Mas não gostavam dele, suspeitando de que ele não gostava de ninguém e que até os desprezava com aquela desconfiança de provinciano chegado à terra e ao estrito laço de família. Era um homem cujo poder não lhe interessava, o que é mau para os biógrafos que não entendem que o poder possa comportar o espírito crítico."
Mas desviei-me das 'ideias-feitas' flaubertianas, ou talvez não.
Em que é que esta percepção ou esta etiqueta aplicada aos deputados correspondem à realidade?
A mim parece-me que o que está em causa é a perda de valor da 'representação'. Porque ela só é possível se se acreditar no mais 'civilizado' dos mitos políticos: que os interesses dos eleitores podem ser defendidos por um mandatário, por alguém que os represente.
A exposição mediática da Assembleia da República, no espírito 'politicamente correcto' da transparência só podia agravar o défice político da representação. O que se torna patente, pelo contrário, é a substituição do interesse dos eleitores pelo interesse dos partidos. Com a crescente dizimação dos 'independentes' pelo sistema, nem o melhor dos oradores consegue produzir mais do que um bom espectáculo.
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http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL357121-5603,00.html |
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www.newerapolitics.org |
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Joseph Stalin |
Numa nota sobre "Dieu, la Mort et le Temps", Jacques Rolland diz: "Lévinas confirma o sentido anarquista da an-arquia. Não se pode esquecer com efeito que "sem princípios" era a acusação elementar de Staline àqueles que se situavam à sua "esquerda".
Numa conversa politizada, é impossível que, implícita ou explicitamente, os princípios não sejam invocados. Os mesmos, porque se forem outros e, por maioria de razão contrários, não há discussão, embora isso possa ser, também, uma oportunidade para as boas maneiras e, até, a amizade.
Compreende-se, pois, que não haja nada de mais contrário à política, enquanto exercício público da palavra e arte da persuasão, do que o pragmatismo.
Fora os casos em que é uma astúcia para omitir princípios que se "ignoram" ou se pretendem camuflar, o pragmatismo é até difícil de conceber.
Staline combatia pelo que considerava os seus princípios, desclassificando os seus adversários com a origem de classe, ou a falta de princípios.
Este condicionamento terrorista da política revela-se, assim, a verdadeira anarquia. Porque ter o exclusivo dos princípios, equivale a não ter princípios.
"A sátira e a declamação podem pintar com as cores mais berrantes estes temas óbvios, mas os nossos pensamentos mais sérios respeitarão um útil preconceito que estabelece uma regra de sucessão, independente das paixões humanas; e aplaudiremos de bom grado qualquer expediente que prive a multidão do perigoso, e contudo ideal, poder de se dotar de um chefe."
"Declínio e Queda do Império Romano" (Edward Gibbon)
Gibbon começa por dizer que, de todas as formas de governo, "uma monarquia hereditária é a que parece mais ridícula."
Mas quanto se lhe não perdoa para não se ter de correr o risco dos pretorianos nos imporem o primeiro nobre escondido atrás do reposteiro?
As democracias modernas parecem ter encontrado o melhor dos expedientes. O governo não está para os governados numa relação hierárquica e acredita-se na representação e na delegação do poder.
Se há uma chefia, ela não ousa dizer o seu nome e escuda-se sempre no poder democrático. O apólogo de Menenio Agripa sobre a necessária harmonia entre o estômago e os outros membros do corpo parece ter encontrado a ilustração da sua inanidade, quando todo o corpo é cabeça.
E, no entanto, a ideia do povo soberano talvez não seja mais do que um dogma, necessário aos actuais consensos. Ponto fraco de que a crítica marxista fez um dos seus cavalos de batalha mais consistentes.
"Pode ter direito a grandes estadias nos hospitais, a contactar com o segredo das tecnologias mais complicadas e, até, a algumas operações extra. Se tiver essa sorte pode, finalmente, exibir as cicatrizes como sinais da conspiração que o vitimou. Como sempre, na hipocondria, deve ter à mão uma enciclopédia médica. Mas também pode bater-se para passar a sua vida nos hospitais. Vai aprendendo, e é sempre uma estupenda oportunidade para constatar a falta de justiça que pesa sobre a humanidade."
"Como tornar-se doente mental" (J.L. Pio Abreu)
Este livro, de alguém que sabe do que fala (Pio Abreu é psiquiatra), é surpreendente a mais de um título.
Não é por acaso que em quase todas as doenças mentais, o doente luta ao lado da doença, como se fosse essa a sua razão de viver. Nada melhor, então, em vez de desfiar o rosário de conselhos e de prevenções, do que entrar, humoristicamente, nesse mundo às avessas e promover aquilo que o autor chama duma "carreira mórbida".
O exercício é útil para todos. Pelo caminho, percebe-se que o mundo dos psicólogos e psiquiatras é parte da patologia (ainda com mais propriedade se pode falar aqui em efeito iatrogénico) e que a simplificação e o bom senso não interessam a ninguém.
A simples inércia dos interesses instalados, desde os especialistas aos laboratórios farmacêuticos prometem ao nosso PIL (Produto Interno da Loucura) um confortável desenvolvimento.
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Cupido e Psiquê (detalhe) de Canova |
" A ordem psíquica, que é um acto de criação no tempo, nem sempre, ou muito raramente, tem sentido para os psiquiatras."
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"Le retour à la raison" (Man Ray) |
" (...) encontravam-se num estado de alucinaçāo sob o efeito da matemática - aquilo a que Dieudonné chamou 'a música da razão' e a que eu chamo a loucura de Locke."
Nassim Taleb ("O cisne negro")
Porque o racional não é o contrário do louco, é apenas o contrário do irracional. Taleb diz também: "Bem sei que o Nobel da economia não tem sido benéfico para a sociedade ou para o conhecimento (...)". Com efeito, a economia é um dos campos onde melhor se pode verificar essa distinção. Aquela "música" tem levado toda uma geração de 'sábios', desde os mais premiados até aos que só têm "dois dedos de testa", à falta de senso que hoje campeia.
A razão é sempre instrumental. Tem de estar ao serviço de algo superior a ela. Quando se disseca o cadáver teórico do social, é quando ela mostra o que vale. É como a medicina antiga (e ainda a moderna) a lidar com o corpo desligado do que o torna um corpo vivo (nas margens do 'establishment', fala-se agora em medicina holística).
Mas é interessante que, na maior parte dos casos, o 'irracional' não se aplique ao poder que tenta conservar-se e estender-se pelos meios mais lógicos (nem sempre é um caso de 'húbris').
A Alemanha, por exemplo, não deixa de 'ter razão', ao tirar todo o partido da crise económica, nem quando argumenta contra a ideia de qualquer responsabilidade sua na origem daquela. É o mais racional possível. E se a verdade pudesse ter uma nacionalidade (assim como a ideia de 'povo eleito'), os alemães estariam infalivelmente dentro da verdade.
E as outras nações europeias só tinham que erguer hossanas de louvor quando entrassem pelas goelas teutónicas. Porque os contribuintes europeus não salvaram os 'seus' bancos. Salvaram os bancos alemães, mais a justificação elegantemente matemática dos seus investimentos ruinosos. E quando os bancos não pagam pelo seu fracasso já estão acima das poucas regras 'civilizadas' do capitalismo.
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Adrien Proust (Nadar) |
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Umberto Eco |
"Com o "se" e com o "mas" a história não se faz."
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"Pode inventar-se tudo, excepto fazer andar uma vaca mais depressa do que ela quer. A civilização vai a passo de vaca...É uma ideia infantil querer forçar o passo da vaca."
(Alain
Isto desqualificaria, como é bom de ver, a ideia revolucionária e, mais ainda, a "queima de etapas". E, se olharmos bem, nenhuma revolução cumpriu as suas promessas, a começar pela mãe de todas, a Revolução Francesa. Podemos dizer que tudo mudou, mas não que mudou conforme o plano, de acordo com a ideia. "A vaca impôs o seu passo". E é, finalmente, uma ideia do homenzinho que se julga maior por estar aos ombros do pai. Como diz Alain, começámos todos por dar ordens a gigantes que gostavam de nós e nos serviam em tudo.
Mas é cada vez mais 'concebível', nos nossos dias, a ideia de reformar a 'vaca', e de a substituir por uma espécie de robot que obedeça à nossa vertigem de velocidade. Por exemplo, para quê fazer o esforço de 'decorar' o básico de qualquer disciplina, quando toda a memória do mundo pode estar ao alcance do nosso telemóvel? Para quê educar e formar se pudermos, um dia, substituir o tempo de aprendizagem por um 'implante'? Ter um mundo de amizades que não vivemos e que depende dum toque no teclado, ou de uma simples instrução?
A finança predadora da 'globalização' já emigrou para esse mundo. Para quê trabalhar, para quê produzir, quando se é um 'lupus wallstreetensis' e o dinheiro se gera a si mesmo?
Mas, para bem de todos, há sempre uma altura em que a vaca mostra os cornos.
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Narciso (Karl Bryullov) |
"E mais profundo é ainda o significado da história de Narciso que, por não poder agarrar a suave e atormentadora imagem que via na fonte, nela mergulhou e se afogou. Mas a mesma imagem, a vemos nós em todos os rios e oceanos. É a imagem do inatingível fantasma da vida; e isto é a chave para tudo.
"Moby Dick" (Herman Melville)
A água que corre ( a de Heraclito, na qual, segundo ele, ninguém se pode banhar duas vezes) sempre foi um símbolo da vida.
Mas Narciso, para ver a sua imagem reflectida, precisa da água parada,
O que perde o filho do deus-rio Cefiso é a detença no espelho.
O mito adverte-nos de que tudo passa e que parar o tempo ("Ô temps, suspends ton vol!") é encontrar um fantasma na água.
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Agustina Bessa-Luís |
"Os psicólogos e os psiquiatras, como se viu pelos diagnósticos assinados por Egas Moniz e Júlio de Mattos, detestam tudo o que se chama material empírico, quando os conteúdos psíquicos não são medíveis sem a captação intuitiva da situação total."
Agustina Bessa-Luís ("O mistério da Légua da Póvoa")
A grande senhora das nossas letras diz aqui uma verdade insofismável. Não se devia conhecer menos do que o indivíduo, na sua integridade, (que é como a 'ponta do iceberg') para julgar a sua psique e as muitas vezes pseudo anomalias a que esta está sujeita. Sabemos que isso é impossível e que a justiça, além de 'dever ser cega', para não favorecer ou desfavorecer, não pode deixar de sê-lo em tudo o que não seja uma interpretação da lei.
A lei quando é justa não o é porque conhece o assunto, mas porque é aceite por 'todos', na maioria dos casos, inclusivé pelo réu. Todos nós somos virtualmente culpados, como explicam os contos de Kafka. Ou Ricoeur: "(...) a teologia trágica do deus que seduz, que cega, que extravia. Neste caso, a culpa parece claramente indistinguível da própria existência do herói trágico; ele não comete a falta, é culpado." ("A simbólica do mal")
Maria Adelaide, a personagem de Agustina, foi internada no Conde Ferreira, num processo movido pelo marido para lhe interditar o acesso à sua fortuna, em que, segundo a romancista, aqueles homens de ciência 'assinaram por baixo'. Assim sendo, estes foram a caução 'científica' de que a lei, tornada insegura nesta matéria, precisava para dar como louca uma mulher, quando muito excêntrica.
A 'captação intuitiva da situação total' não está, infelizmente, ao alcance da lei. Um arremedo disso é a moda do 'politicamente correcto', em que se procura desculpar o réu através da sociologia ou de uma psicanálise serôdia.
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Michael Oakeshott |
http://drivers.getac.com/Commercial(PBU)/
"Porque a linha recta não é mais do que uma lei mantida, pode-se dizer, contra ventos e marés; e as paralelas também não são senão uma lei, um recomeço jurado, uma identidade que desafia a distância e o tempo. E, do mesmo modo, o movimento é uma lei estendida e traçada, e verdadeiramente uma referência para julgar da mudança. (...) Mas também este movimento não é coisa; não existe. A existência é o que recusa ser um movimento, ou dois ou três movimentos compostos, enfim uma composição sem exterior, sem acidente, o mesmo é dizer sem corpo."
"Entretiens au bord de la mer" (Alain)
Se somos tão facilmente levados a confundir o que está em nós, no nosso espírito, a rede abstracta com que julgamos prender o mundo com esse mundo mesmo, com a realidade, em que tempo e lugar viveremos quando toda a antiga natureza se tiver tornado artificial?
Ou se aquilo que o filósofo chama de existência passar toda para o lado da rede?
Porque o progresso técnico-científico também pode ser visto como uma tentativa de descolagem da existência, de negação do trágico, condenada necessariamente ao fracasso.
Detail from a painting by Pedro Berruguete
O passado, porque só pode ser pensado no presente, num outro contexto, com outras categorias, não pode ser julgado.
Nunca encontraremos, intelectual ou sentimentalmente, as circunstâncias reais que moldaram a experiência desses homens.
Há quem defenda isto. Mas há mais.
A tese de que a História é escrita pelos vencedores. Como dizia Simone Weil, quem se lembra dos Albigenses?
Ora, apesar dessa dificuldade, ou impossibilidade, nunca os homens poderão viver sem se confrontarem com o seu passado e firmarem as suas opiniões e crenças contra ou a favor dele, qualquer que seja a distância entre a realidade e o objecto desse juízo.
É, pois, a vida e as necessidades do presente que nos obrigam a "processar" o passado. Trata-se mesmo duma acção contra a realidade, em que haverá testemunhas de defesa e de acusação.
www.ling.upenn.edul/~gene/images
Vem de há muito tempo o impulso, nos machos da espécie, de transformar o acto que mais nos aproxima dos animais, acto, todavia, nem sempre segregado do convívio, num exercício de comunicação falhado, normalmente à custa do bom gosto e da faiança.
Os desenhos e as expressões obscenas enchem as paredes e, mais recentemente, os números de telemóvel vieram trazer uma espécie de abstracção a este barroco latrinário.
Foi perante os graffiti da Estação do Oriente, escondidos, apesar de tudo, dos olhares da maioria que me veio a ideia de que se poderia compreender o fenómeno que se está a passar nas nossas cidades, onde a compulsão do "tag", ou rabisco sem significado, já tão poucas paredes poupa, como um défice de expressão, numa sociedade que tornou a comunicação obrigatória.
Seria por isso que tantos grupos regrediram a uma espécie de estádio anal da comunicação, tratando a cidade como uma sentina a céu aberto.