
(José Ames)
A propósito do Compromisso Portugal, ontem, no "Público", Vitor Dias teve o seguinte pensamento digno de Robespierre:
"Apesar de não ter o hábito ou o método de explicar ou associar mecanicamente as opiniões das pessoas ao seu estatuto social ou nível de rendimentos, creio que teria sido uma bela ideia se, no início de cada intervenção, o ecrã electrónico passasse a informação dos vencimentos, mordomias e bens dos oradores, o que decerto seria muito esclarecedor para os 200 mil trabalhadores da função pública cujo despedimento foi ali proposto, na medida em que ficaria patente que os autores da proposta pertencem a "outro mundo".
Seria um bela censura, como que indexar a verdade à palavra sans-culotte.
Mas a questão tem alguma pertinência.
Já houve um filósofo que disse que o pensamento dum homem é a sua função (Alain). Parece-me mais correcto do que dizer que é o seu rendimento.
De facto, um militar pensará como um militar, um bispo como um bispo, um ministro como um ministro, um deputado como um deputado e um sindicalista como um sindicalista, em vez de o fazerem de acordo com a sua conta bancária.
Um governante não é livre de dizer o que pensa (se não pensar como governante) e o chefe da oposição também não.
Quando ouvimos alguém num cargo de representação ser contrariado, nas suas opiniões, por um outro representante, temos a ilusão de que ambos se referem à verdade, mas que cada um tem um ponto de vista diferente.
Seria, contudo, mais adequado dizer que o pensamento dum é condicionado pelo do outro, independentemente da verdade.
É por isso que o sistema de partidos, considerado fundamental para a democracia, precisa de ser compensado por um amplo espaço de reflexão livre.
Vi na 2 uma estupenda recriação do futuro selvagem do planeta. Qualquer coisa como 100 milhões anos longe de nós.
Quando a calote polar der lugar a uma exuberante floresta tropical e a Austrália encaixada na Ásia formar um planalto com 5 mil quilómetros de extensão e com uma altura superior à dos Himalaias.
A Evolução, quando não somos já o ponto de chegada, mas, desaparecidos com todos os outros mamíferos (à excepção dum qualquer roedor do planalto), formos um link perdido, uma estrela que brilhou um instante e se extingui no céu constelado, já não parece ter o mesmo sentido, se é que ainda tem algum.
Simone Weil dizia que "ver sem perspectiva é já uma compreensão". Pois bem, a primeira coisa que perdemos com esta extrapolação científica é precisamente a perspectiva.
Um actor de revista dos anos 60 apareceu na RTP-Memória, num dueto arrebicado com uma comparsa, enquanto num canto do ecrã, a cores, o homem que foi esse actor observa, parecendo guardar um sorriso entre o irónico e o compassivo.
Qual é a ideia? Um confronto com o passado, que nunca deveria dar-se em espectáculo, ou uma perversão do debate contraditório (ainda que sem palavras)?
Receio que seja pior do que isso. Qualquer coisa de tele-sentimental como: estamos todos muito felizes por ele estar vivo ainda e connosco poder ver o nosso arquivo. E, para além disso, tão bem conservado!
Apanhei, sem contar, na televisão mais um programa do que pretende ser a desmistificação do 11/9.
Com uma qualidade técnica razoável, o documentário vai acumulando dúvidas, pondo em questão, num ponto e noutro, a versão oficial, como se estivesse a fornecer ao espectador a chave dum imbróglio inaudito. A conclusão é que nada bate certo e que a "história foi muito mal contada".
É claro que o espectador não tem meios de verificar as inúmeras pistas, dignas dum script hollywoodesco, e os seus únicos aliados são o bom-senso ou uma fé indefectível.
Mas se se conseguir instalar a suspeita, a aposta dos patrocinadores do programa já está ganha. Diria até que, se o 11/9 não fosse o que parece ser, teríamos aqui um verdadeiro terramoto cultural e epistemológico, que faria esquecer a importância da tragédia real.
Ah! levar os americanos, eles em primeiro lugar, a diabolizar o sistema, a perder a sua fé nas instituições e nos valores da sua democracia, que triunfo para a contra-informação!
Para a Al Qaeda, isso seria muito mais importante do que qualquer dos seus atentados.
Quando oiço algumas teorias conspirativas pretendendo "criminalizar as vítimas" e transformar o 11/9 num trabalho dos Serviços Secretos americanos, ocorre-me logo o modelo desta suspeita delirante: o incêndio do Reichstag, em Fevereiro de 1933, que, tudo leva a crer, foi uma provocação montada pelos próprios nazis.
Mas só quem pode controlar a opinião pública e a investigação criminal, impor a censura sobre os media e dispor do poder judiciário evitaria que um acto tão estúpido desabasse sobre a sua cabeça.
A demonização do "imperialismo americano" vai ao ponto de ignorar as diferenças entre os tempos, os regimes e os homens.
O programa começou no Maine e visa ajudar as famílias a ultrapassar as longas ausências dos soldados que servem no estrangeiro.
O tenente-coronel Randall Holbrook está no Afeganistão desde Janeiro, no Grupo 240 de Engenheiros de Augusta (Maine), a sede da Guarda Nacional. Mas em Bangor, cidade onde habitualmente reside, continua a viajar no carro entre os filhos, Logan, de cinco anos, e Justin, de 14. "É reconfortante. E ajudou muito na adaptação", disse ao Bangor Daily News Mary Holbrook, mulher de Randall, a propósito do marido a duas dimensões e de cartão que adquiriu no âmbito de um programa da Guarda conhecido por Flat Daddy, qualquer coisa como "Papá Plano"."
"O Público" de 13/9/2006
À primeira vista, parece mais um daqueles exageros a que nos habituámos, vindos do outro lado do Atlântico.
Depois, pensamos que, afinal, o que é uma fotografia que se traz na carteira senão um sucedâneo, uma ilusão que mitiga em nós a dor da ausência?
Mas não há aqui um qualquer limite transposto sem se dar por isso? Um limite do bom-senso, da sanidade mental, da auto-ilusão, o que seja?
Imaginemos, na mesma direcção, em vez do pai de cartão, um pai robot ou um pai virtual. Tudo para não enfrentar a realidade.
A ideia é, tipicamente, não crescer, não sofrer e não morrer.
Bénard da Costa, comentando no "Público" o triste destino dum dos mais belos lugares da Europa, pasto dos incêndios e das hordas domingueiras, brandindo o direito à sua parte do paraíso, diz que a Arrábida não foi feita para o turismo de massas, porque é "uma varanda de frades".
Muitas vezes me perguntei como é que se poderia compatibilizar a democracia e a igualdade com o usufruto do que é raro e frágil e tem de ser salvo das multidões para continuar a existir.
A Serra da Arrábida é um bom exemplo. As praias não lhe dão sossego. E não se pode transformar a Serra como a Cova da Iria e construir um adro gigantesco para conter a multidão de adoradores do sol.
De mais democrático, só vejo o sorteio ou a proibição a todos do acesso.
Uma portagem, por outro lado, sem ser uma medida cega, nem radical, permitiria, talvez, preservar um bem que é de todos. Porque é um bem de todos, mesmo se não for gratuito.
Como se percebe, não é a igualdade que está aqui em causa, mas o direito ao que é nosso, sem dar para todos.
Se a poesia é realista, o seu mundo não é o mundo em que nos movemos no dia a dia. Este está sujeito a rotinas e a mapas em que todos se reconhecem, e ela lança pontes para o desconhecido e abre secretas veredas.
Os tolos apropriaram-se dum dos seus nomes para chamar "lírico" àquele que não vive neste mundo.
Mas porque o mundo desses é fechado e estreito é que se enganam redondamente.
Gary Cooper é o anti-Mitchum. Tudo nele é tensão e ranger de dentes.
No outro, o underacting é de rigor. Dir-se-ia que o actor não está ali para se esforçar demasiado, mas o efeito vai de encontro aos gostos de hoje, em que se procura, muitas vezes, o máximo de sentido através do que parece um anti-expressionismo.
Os caprichos do zapping levaram-me a um filme de 1959 ("The wreck of the Mary Deare" de Michael Anderson), em que Gary, nos antípodas do herói problemático de Conrad, enfrenta o dilema de Lord Jim.
Como não podia deixar de ser, tanto sofrimento virtuoso, é, para gáudio da Lloyds, recompensado pelo desmascaramento duma sabotagem.
"A defesa contra o niilismo é a verdadeira guerra ideológica da modernidade. Se o fascismo e o comunismo lutam em qualquer parte numa frente comum, é decerto na do "niilismo" que se imputa à "decadência burguesa".
(...) Um e outro garantem um fim último que justifica todos os meios e que promete um sentido à existência."
Peter Sloterdijk ("Critique de la Raison Cynique")
Quando os dois contendores mergulharam na sombra, quer a sua Nemesis tivesse adoptado a forma dum descalabro moral e militar ou a duma implosão nunca vista, fica-nos a desoladora questão:
foi então tão completo o triunfo do niilismo que só nos resta a razão cínica?
A Frauenkirche de Dresde, reconstrução até ao pormenor do edifício original destruído pelos bombardeamentos de Fevereiro de 1945 de Ingleses e Americanos, quando a sorte da guerra estava já decidida e o pano de cena caía sobre o último acto da demência nazi, dá um belo perfil à cidade e a sua cúpula cor de mel parece guardar as relíquias do tempo. Mas transposto o seu portal, a decepção não podia ser mais completa. Chocam-nos as cores, a decoração, a insignificância do seu mamutíco interior.
Ao percebermos que nos encontramos dentro dum cenário, onde a antiga exibição da riqueza é trompe l'oeil e o mármore imitado, não sabemos já se teria valido a pena encarecer a obra em busca duma autenticidade que nunca existiu.
Augusto o Forte (1697-1733), femeeiro e amante das artes construiu ali o mais feio dos seus palácios, pese embora a magnificência do seu exterior que faz jus ao título de mais bela igreja luterana da Alemanha.