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Matosinhos |
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"O escravo moribundo" |
"Sempre que a obra é de artesão, o modelo da obra está fora da obra; mas tanto quanto é obra de artista, é a obra mesma que é o modelo."
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António de Oliveira Salazar |
"é preciso afastar de nós o impulso tendente à formação do que poderia chamar-se o Estado totalitário", um "Estado essencialmente pagão", e portanto "incompatível por natureza com o génio da nossa civilização cristã."
(Salazar no I Congresso da União Nacional, 26 de Maio de 1934, in "História de Portugal" coordenada por Rui Ramos)
Carl Schmitt, um jurista alemão, havia cunhado o termo 'totalstaat' em 1920, advogando um tipo de estado que assumisse todas as funções da sociedade (conheci e conheço pessoas que acreditam que a politicização total do pensamento é o futuro da humanidade).
Salazar, que na altura deste discurso enfrentava a vaga do 'nacional-sindicalismo' de Rolão Preto, êmulo do fascismo italiano e germânico e que contestava a política do Estado Novo (seria detido dois meses depois do discurso do ditador), demarca-se do que ele chama Estado totalitário por causa do seu carácter 'essencialmente pagão'.
Segundo Ramos, o salazarismo não era o monólito que aparentava. Era o resultado de um 'equilibrismo' político entre as grandes tendências do antigo republicanismo, em que Salazar foi exímio. Tinha tudo menos de 'revolucionário' (ao contrário do fascismo ideológico europeu). A obsessão do ditador era o regresso aos bons e velhos hábitos que nunca existiram por muito tempo no Portugal contemporâneo.
De qualquer modo, o termo pagão aplicado ao nazismo ou ao regime de Mussolini não tem, evidentemente, a conotação do paganismo clássico, mas a da militância católica (nisso, Rolão Preto era mais um concorrente do que um adepto do 'paganismo').
O 'parti-pris' impede de ver em Salazar qualquer evolução, e o regime a que deu o nome (mas que não foi criado por ele) será invariavelmente um fascismo puro e duro. Para quem assim vê a história, quanto menos se revelar do homem e até da sua psicologia dita ruralista e clerical, melhor será.
Mas é precisamente essa atitude que nos está a impedir de fechar mais um capítulo da nossa história, e de fazer o necessário julgamento do passado.
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"Odysseus und Kalypso" (Böcklin) |
O nome da ninfa que seduziu e reteve Ulisses na sua ilha de Ogígia durante sete anos (Homero), Calipso, quer dizer, segundo a etimologia, 'que oculta o conhecimento', "o que justifica o "carácter hermético" da ninfa e da sua ilha. (Wikipedia)
Não sabemos se Ogígia e Calipso fazem parte do 'mundo real por dentro', como diria o poeta da 'Tabacaria'. O certo é que os poderes de sedução de Calipso não bastaram para fazer esquecer as saudades de Penélope, e Ulisses partiu ao fim dos sete mágicos anos.
O mundo dos deuses é o nosso mundo. E não posso deixar de pensar naquilo em que se tornou a mesma civilização que 'acreditou' (Paul Veyne põe a questão de se os Gregos acreditaram ou não nos seus mitos) em deuses e deusas, e em ninfas e sátiros. Foi uma 'evolução', foram idades do Homem, ou uma violenta adaptação a realidades completamente diferentes?
Imagina-se os assuntos públicos de hoje realmente debatidos num fórum, tem ainda sentido a palavra democracia, tal como a entendiam os Atenienses?
E como mudou tudo desde que não podemos designar uma ninfa como 'aquela que esconde o pensamento', que não é nada o mesmo que dizer de alguém que é dissimulado.
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"A vestimenta faz o homem. As pessoas nuas têm pouca ou nenhuma influência na sociedade."
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Whaling Off the Coast of California. c. 1858. Coleman.
"Essa imaculada hombridade que sentimos dentro de nós - tão fundo dentro de nós, que permanece intacta mesmo se todo o carácter exterior se pareça ter perdido - sangra na mais viva angústia perante o espectáculo nu e cru da ruína dos valores num homem."
"Moby Dick" (Herman Melville)
Melville chama de democrática a essa "abundante dignidade" que sem fim irradia do próprio Deus. "O centro e a substância da democracia! A Sua omnipresença, a nossa divina igualdade!" (ibidem)
Esta fé na igualdade entre os homens e na nobreza interior de cada um parece ingénua, quando vemos, hoje, a pátria de Melville tão afastada desse ideal.
Mas não há ideia que não morra por ter alcançado o sucesso. A democracia não está feita, nem pode estar feita. O que temos é a carcaça.
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Leon Trotsky |
A paisagem é a da planície em que habitualmente se desenrola o drama faulkneriano, onde se mistura a poeira e o calor que tudo confundem e as histórias de incesto caladas até à morte, mas consabidas.
"August: Osage County" (John Wells) nasce desta conjuntura. Podia ser uma peça de teatro num espaço confinado em que a família dispersa se reúne por altura em que o patriarca (Sam Sheppard), depois de contratar uma 'americana nativa' para cuidar da mulher, Violet (uma superlativa Meryl Streep) que tem um cancro, se despede da vida e do remorso impenitente, deixando-se afogar (são tantos os suicídios e os crimes de lago que parecem todos ter lugar nas mesmas águas, as de "Aurora" de Murnau.)
Todas as filhas de Violet sofrem da maldição das planícies desoladas. Não são apenas falhanços, como o dos outros compatriotas vivendo em cidades trepidantes e em lugares bafejados pela sorte. Ivy (Lilianne Nicholson) que ficou com a mãe, ama o primo Little Charles (Benedict Cumberbatch num papel de criança grande, nos antípodas do brilhante Sherlock Holmes da BBC) que Violet e a mãe dele sabem ser de facto irmão. Na hora do abandono geral, e em face da revelação, Ivy gritará um desesperado:"-it makes no difference!" (que é o contraponto, no registo dramático, do final de "Quanto mais quente, melhor": "-Nobody is perfect", em que Jack Lemon grita para o seu apaixonado milionário que é um homem).
Violet fica sozinha com o seu cancro na boca que parece o 'castigo divino' de uma verve cínica imparável. E dir-se-ia uma solução justa porque ela acaba de confessar que é de todas a mais resiliente. Ainda assim, quando se dá conta da sua solidão, que todas as aves visitadoras voaram para longe da terra pestiferada, refugia-se nos braços da sua índia Cherokee.