sexta-feira, 25 de abril de 2014

UM POETA EXTERMINADOR

Louis-Ferdinand Céline


O que é que podemos aprender sobre nós mesmos, lendo até ao fim a desesperada "Viagem" de Céline, em páginas como as que descrevem essa espécie de testamento de Robinson, antes de receber os dois balázios no estômago, disparados pela sua amante dentro do táxi e a consagração da sua renúncia à vida por parte de Bardamu?

Desgostado de tudo, mesmo dos prazeres, que ficaram reduzidos à manducação e a dormir o mais possível, com a morte sempre ao lado, mas sem nada para revelar, sem nenhum mistério, o narrador da "Viagem" encontra a perfeição do niilismo nas vociferações de Robinson contra o amor, o físico e o sentimental.

"Tu insistes, tu, em fazer amor no meio de tudo o que se passa?... De tudo o que se vê?... Ou será porque não vês nada?... Mas creio que estás-te é nas tintas!... Fazes-te de sentimental, quando és bruta como as que o são... Queres comer a carne podre? Com o teu molho de ternura?... Tu consegues?... Eu não!..." ("Voyage ao bout de la nuit")

A força deste texto vem-lhe, certamente, dum grande estilo, mas também de ser uma experiência vivida.

Mas creio que não é apenas a recusa das ilusões piedosas que explica esta incapacidade de viver.

A excepção que Bardamu concede, entre as coisas que conservam ainda algum valor, aos pequenos desgostos (como o de não ter visitado um tio enquanto ele vivia ainda) trai neste poeta exterminador um "absurdo desejo de sofrer".

Ora isso não é tão pouco comum assim.

 

2 comentários:

LSR disse...

Dado que eu nunca li o romance, a respeito do qual apenas oiço grandes elogios, a que se refere ele quando fala de carne podre? É metafórico ou literal?

José Ames disse...

Já Pessoa dizia que
sem um grão de loucura
somos cadáveres adiados.