quarta-feira, 26 de julho de 2017

A MUDANÇA DO SENTIDO





"(...) procedem à troca de nome de todos os conceitos de valor. À prudência chamam agora falta de virilidade, à moderação e à ordem, mesquinhez inculta; e desterram dali todas as virtudes. Sob roupagens sedutoras, entronizam entre gritos de louvor tudo o que é contrário ao que elas representam, e chamam a anarquia de liberdade, a dilapidação dos bens do Estado de magnanimidade, e a desvergonha de valentia."

"A República" (Platão)

Werner Jaeger diz que "Platão usa aqui para os seus fins aquele grandioso relato da obra histórica de Tucídides, onde este descreve a decadência dos costumes, baseando-se na mudança de sentido das palavras." ("Paidéia")

O que o historiador "apresenta para a Grécia inteira como consequência da guerra do Peloponeso", Platão transpõe para a alma do indivíduo. Também nesta uma espécie de guerra civil deu lugar a uma inversão dos valores e à alteração do sentido das palavras.

A "explicação médica do processo político", recorrendo, por exemplo ao conceito de crise e de remédio para ela, não nos deve fazer esquecer que se trata de uma ampliação metodológica (por se verem melhor (?) os efeitos no Estado do que no indivíduo) e que o essencial é a alma.

É por isso que, embora o filósofo antipatizasse fortemente com a democracia, não chega a refutá-la porquanto não é o Estado o verdadeiro objecto do seu estudo. É óbvio, além disso, que a ideia do rei-filósofo, sendo impraticável (e indesejável) em termos políticos, é a mais apropriada para representar o governo da alma e a unidade do sujeito.

E o que Platão diz sobre a mudança de sentido das palavras, como estratégia política dos inimigos do "Estado", encontra um eco inesperado na situação moderna, descontado o facto de não haver nenhuma estratégia. Digamos que o "sistema", através de mecanismos como a publicidade e os meios de comunicação de massa produz, espontaneamente, a desvalorização e a destruição do sentido das palavras.

Platão sabia que isso era um sintoma de crise e de metabase política. Mas nós já não podemos encontrar em nenhuma metáfora médica a explicação do que vivemos, a começar por hoje quase nem sequer fazer sentido falar em crise de sistema.

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