quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A FOGUEIRA DOS CORPOS

 

"-'Não estou bem desenhado', pensou o rapaz de treze anos com séria concentração. 'A minha cabeça não tem regra, com a testa sobrepesando a minha boca e o queixo. Alguém devia ter usado um fio de prumo."

"The Agony and the Ecstasy" (Irving Stone)


A imperfeição é a melhor herança, porque traz consigo o desejo de nos ultrapassarmos. Assim esta novela biográfica dedicada a Miguel Ângelo começa da melhor maneira. Esse impulso estético não podendo resolver-se no próprio corpo 'sem regra' terá inspirado a perfeição da obra. Uma perfeição que atinge a sua maior altura quando se revela no tosco e no inacabado.

Que é essa cascata do 'Juízo Final' senão a estatuária grega destituída, sem o polimento e o orgulho da forma? A carranca do demiurgo anuncia um outro ideal de perfeição que pertence já à religião cristã. Os episódios de censura eclesiástica sobre esses nus gloriosos decorrem de uma leitura desfasada, que não vê o óbvio: o artista despede-se naqueles nus do antigo ideal, imola a sua própria natureza, a sua sexualidade na fogueira do corpo clássico e da perfeição exterior.

Se esta interpretação é legítima, podemos ver nesta encomenda papal e no seu futuro, espantosamente salvo do 'escândalo', mais uma das astúcias da Razão histórica, como diria FWG Hegel.


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