
"Cordas" (José Ames)
"Transparência é a nova palavra de ordem, e nada tenho contra isso. Mas quem tem o poder, nomeadamente o Estado e as empresas privadas, sabe bem que "o segredo é a alma do negócio", diria eu, a fonte do poder."
"Como tornar-se doente mental" (J.L. Pio Abreu)
É interessante, a esta luz, interpretar a "Glasnost" de Gorbatchev como um hara-kiri do poder.
Seduzido pela montra das democracias ocidentais e, perdendo de vista o que valeria a pena ser salvo no meio da corrupção do regime e do esvaziamento moral da sua nação, Gorby terá sido, talvez, o mais revolucionário dos ingénuos.
Há filmes que valem por uma cena.
Quando Kim Novak, no simples vestido cor-de-rosa, despida a coroa e o arminho de rainha de beleza, começa o lento saracoteio de ancas e vem descendo lá do alto estalando os dedos ao ritmo de "Moonglow", atraída pelo homem com quem vai dançar, dentre o grupo sem graça que tropeça na pista, vagabundo inseguro que, magnetizado, encontra a perfeição, todos sabem que estou a falar de "Picnic".
O discurso do papa na Aula Magna da universidade de Regensburg é uma peça notável, um contra-ataque teológico à tendência espiritual do nosso tempo.
Ao proclamar a unidade da razão e da fé, levantando o pé-de-vento que se sabe com a citação de Manuel II, o Paleólogo, que vinha absolutamente ao caso na sua argumentação, a Igreja, na sua pessoa, vem, no sentido contrário do que chama as 3 deshelenizações (a Reforma, a auto-limitação da razão das "Críticas" de Kant e o moderna reapropriação multicultural das origens, em prejuízo da matriz grega), defender um alargamento do conceito de razão que vá para além da síntese actual "entre Platonismo (Cartesianismo) e empirismo, uma síntese confirmada pelo sucesso da tecnologia." Porque "este método exclui a questão de Deus, fazendo que ela nos surja como uma questão não científica ou pré-científica. Consequentemente, estamos confrontados com uma redução do raio da ciência e da razão (...)"
E conclui dizendo que só desta maneira "seremos capazes dum diálogo genuíno de culturas e religiões de que tão urgentemente necessitamos hoje em dia."
Infelizmente, dessa razão expandida pouco mais nos fica do que esta frase: "o elemento platónico traz consigo uma questão que aponta para além de si próprio e para lá da sua metodologia."
Defendendo que as visões interiores e a experiência religiosa das diversas culturas são uma fonte de conhecimento deixa, talvez, em aberto a ideia dum espírito universal que transcenderia, numa nova síntese, a razão pura e a razão prática (nos termos kantianos).
A verdade é que o espírito universal é a melhor definição da razão.
No texto sobre a questão do Rivoli que hoje li no "Público", acintoso, como um ajuste de contas com as suas próprias ilusões (o trocadilho com a palavra Revolução), Pacheco Pereira parece defender que a melhor política cultural por parte do Estado é a abstenção. Faça este o que fizer, por detrás da "cultura", esconde-se sempre a propaganda. Malraux é citado como um dos primeiros governantes a perceber que investir na "cultura" é garantir "boa imprensa, legitimidade, figuras de cartaz e "nome"".
Seria um pouco como o investimento das fundações para o capital: faz boa imagem e paga menos impostos. Não haveria, pois, cultura desinteressada.
Os críticos da chamada subsídio-dependência (que se poderia alargar a todos quantos dependem do Estado) só podem, de facto, defender o desinvestimento na cultura, quando pretendem restringir o papel do Estado na Segurança Social, na Saúde e na Educação.
Claro que o isolamento e o "solipsismo" dos ocupantes do Rivoli é um facto. E é verdade que a gestão privada não pode ser pior do que o que já temos com a actual política camarária.
O que não se pode é partir do desperdício e da falta de público para uma doutrinária abdicação do Estado.
Numa conversa que hoje li no "Nouvel Observateur", entre a Duras e Miterrand, este evoca uma jovem holandesa a quem o pensamento da morte e dos perigos que a ameaçavam ( e aos seus amigos e familiares ), nunca impediu a alegria de viver, momento a momento.
Etty Hillesum morreu em Auschwitz, em 30 de Novembro de 1943.
"Muitas pessoas me julgariam louca e totalmente estranha à realidade se soubessem aquilo que eu penso e o que sinto. No entanto, vivo com toda a realidade que cada dia me traz. O Ocidental não aceita o sofrimento como inerente à vida. É por isso que ele nunca é capaz de retirar do sofrimento forças positivas.
(...) É preciso saber saber viver sem livros, sem nada. Decerto que um pedacinho de céu permanecerá sempre visível e que eu terei sempre em mim um espaço interior suficientemente vasto para unir as mãos em oração." ("Journal-1941/1943")
A tentação de comparar este tão comovente testemunho com o de Simone Weil (abstraído deste a incomparável dimensão filosófica) é, para mim, quase inevitável.
E enquanto Simone me parece humanamente agreste e até intolerante (em primeiro lugar contra si própria), a pequena judia de Amsterdam tudo parece compreender e acolher no seu imenso coração.
Nunca o Porto teve tantas salas de cinema e tão poucas oportunidades de ver bom cinema, independentemente de ser americano ou um êxito de bilheteira.
Como metástases, um mesmo tipo de filmes prolifera de centro comercial em centro comercial, e um imenso tédio se apodera de nós, fazendo-nos voltar as costas às salas de projecção.
Depois que fecharam a Casa das Artes e o Nun'Álvares, o que nos resta?
Vi "Transe" na salinha do Campo Alegre.
Estamos reduzidos a isto?
Hoje, no "Público", alguém tratou de barbárie aquilo em que se tornou, em tantos casos, o ritual das praxes académicas.
Ao atravessar, esta manhã, o jardim da Praça da República, e ao ouvir os cantos e as palavras de ordem de alguns estudantes que as capas negras pastoreavam, com a seriedade dos grandes momentos, mas pacificamente, não pude deixar de encontrar naquela opinião um certo exagero.
É verdade que as tradições, por muito veneráveis que sejam, correm sempre o risco de degenerarem por influência dum meio que já não tem nada a ver com o espírito que presidiu à sua origem. O ritual de passagem, hoje, pode estar a ser desviado para uma comédia do senhor e do escravo.
Muita gente abomina a personalidade dos grupos, que pode chegar ao exclusivismo. Mas apesar dos abusos, que será sempre necessário corrigir e que, em primeiro lugar, devem suscitar a revolta dos "caloiros", não vejo muitos outros antídotos à atomização consumista e à massificação.
Nisto de tradições, de resto, quem pode decidir quais são as boas ou as más raízes?
"O prisioneiro, ignorando a sua prisão, está em sua casa."
Emmanuel Lévinas
Um homem pode sentir-se preso neste planeta e até na sua galáxia, se a pudesse conhecer mesmo de longe.
Por outro lado, nenhum cubículo o impedirá de se sentir livre e parte do mistério que o cerca.
Mas digam-lhe que ele é prisioneiro dos seus hábitos e das leis sociais, e logo ele sentirá que ter de comer todos os dias ou ter de respeitar a proibição do fumo é uma prisão.
A necessidade de se sentir em casa, porém, é mais forte do que o espírito inquisitivo, e ele fechará os olhos a tudo o que for preciso para se sentir chez soi.