sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

TRAUMAS


Sigmund Freud (1856/1939)


Que há de inverosímil no trauma infantil? Que ninguém tenha pensado nisso. Porque este ser tão plástico, tem de guardar as marcas de toda a violência. E o corpo sendo também memória deve revelar.

Mas a psicanálise fala-nos numa economia do sujeito consciente destinada precisamente a esquecer o trauma. E, nessa medida, é que um facto da memória censurado pode ser o princípio organizador da personalidade. Nenhuma cena do passado tem esse privilégio, a não ser o que é sentido pela criança como uma ameaça à sua vida. O amor dos pais e, sobretudo, o materno é uma condição do crescimento e da inteligência.

Se a violência fosse a norma dentro das famílias, a espécie chegaria ao fim rapidamente. O homem nasce nu e sem linguagem. O corpo da mãe e a sua fala são ainda placenta, porque o filho do homem sem protecção não vive.

Compreende-se que o perigo tenha de ser sempre exterior a este sistema para a flor de estufa que somos se desenvolver conforme a sua natureza. O trauma obriga a uma defesa interior e à interrupção do processo de adaptação ao mundo. O cérebro infantil tem de se fazer estratega e a lei da sobrevivência é que possa viver primeiro com a mãe. Sem recurso à duplicidade e à astúcia, a criança tem que vencer sobretudo a aversão, porque o amor e a confiança são obrigatórios. Mas essa contradição é fatal para a inteligência e para o equilíbrio da personalidade. O mal amado conheceu um mundo hostil que não era o mundo. A ambivalência dos sentimentos que não se podia exprimir põe em causa a síntese da consciência e exprime-se no adulto por uma das formas da histeria.

A reapropriação do passado significa desarmar e julgar o íntimo como o estranho. Compreender o trauma é por isso recomeçar a adaptação ao mundo e libertar a função da memória dum dispositivo que a vampirizava. A cura nesse sentido é possível. Mas adivinha-se que em todos haja matéria para psicanalisar e que a ambivalência dos sentimentos seja a lei geral. Daí que o sujeito consciente e normal possa ver a teoria de Freud como um oráculo e a resposta para os problemas da vida. É de novo viver segundo a ideia do destino. A psicanálise fora dos casos clínicos e de alienação da personalidade é uma especulação sobre a história do indivíduo e a noção de inconsciente.

Não é possível mudar o passado, mas está ao nosso alcance pensá-lo doutro modo, e isso é já mudar o presente. Esta é a verdade mais tangível da psicanálise. Contudo, é cair numa outra alienação que é a do político. Fazendo acreditar o absoluto da situação familiar e o determinismo dos complexos inconscientes, o homem regressa de facto à protecção original. Não espanta por isso que a vontade seja aqui uma excrescência do sujeito que se debruça sobre si mesmo. Todos nós podemos refugiar-nos do mundo, abrindo o espaço imaginário do inconsciente. E é isso que se vê nos homens descrentes da verdadeira religião. É o sonho escrito e comentado que os guia, ou seja o mito individual. Por medida.

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