sábado, 30 de abril de 2011

(José Ames)


UMA CARTA DA PRISÃO



“Desde 1848, nos países ocidentais, o processo de assimilação foi tão rápido e tão profundo que se tem o direito de pensar que só a segregação imposta impediu nos diferentes países uma completa assimilação; esta teria tido lugar se até à Revolução francesa a religião católica não tivesse sido esta única ‘cultura de Estado’ que precisamente exigia a segregação dos judeus porque eles eram, religiosamente falando, irredutíveis (…)”

“Lettres de prison”  (Antonio Gramsci)




Segundo Gramsci, a vida do gueto terá imposto algumas das características que passam  por raciais, havendo toda a diferença do mundo entre um judeu inglês e um judeu da Galícia, no Leste europeu.

A segregação modifica o olhar sobre o segregado, como se sabe. Mas a modificação também se dá no outro sentido. O judaísmo não seria tão “irredutível” se não fosse segregado.

O que se diz da religião do Livro, a sua portabilidade e a relação directa do leitor com Deus que tanto terá feito avançar a consciência individual (perdoe-se o pleonasmo), é provavelmente uma resposta a essa diferença imposta pelo Estado e pela religião.

Por muito ‘politicamente correcto’ que hoje se pretenda ser, não se pode anular o facto histórico dessa irredutibilidade a que as tensões políticas e religiosas de hoje, no Médio Oriente, dão uma espécie de sobrevivência mítica. O complexo de Israel não se desfaz pela racionalização, nem por nenhuma cura “psicanalítica”. Só a usura o poderá desfazer, uma vez resolvido o problema da segurança na região.

A assimilação dos judeus, com “saídas” para o “deísmo puro ou o ateísmo”, como diz o revolucionário italiano, seria em toda a parte a norma, não fosse o Estado de Israel e tudo o que ele representa terem virado contra a geo-política os fantasmas do gueto.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Caramulo (José Ames)

A MELHOR DEFESA É O ATAQUE




É uma ideia de Kant a de que têm maior força de convencimento as “teorias filosóficas dogmáticas” que refutam outras teorias do que aquelas que se justificam a si mesmas.

Não podemos pensar, neste caso, no conceito de refutabilidade das teorias científicas tal como foi definido por Popper, porque seria simplesmente lógico que uma teoria refutada tivesse menos força do que outra que ainda não o tivesse sido. E porque Kant se refere expressamente a uma dogmática. Em princípio, os dogmas não se discutem e são objecto de crença, por isso a refutação de que fala Kant não é uma verdadeira refutação. Corresponde , por exemplo, a um “ataque” político às posições defendidas por um adversário.

Mas então por que é que as oposições não são sempre mais convincentes do que os governos? Eu diria, por um lado, que a força dessa crítica ou ofensiva “dogmática” encontra, fora das situações de crise, o seu antídoto numa natural resistência à mudança por parte do eleitorado, e que, por outro, nem todos os governos de justificam. Só quando isso acontece, é que as “teorias dogmáticas” do governo são mais fracas do que as daqueles que o atacam. É por isso normal que, em vez de se justificarem, os governos simplesmente contra-ataquem.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

(José Ames)

QUANDO O PASSADO ERA SUPERIOR



Ao mesmo tempo que se arrastava, nas margens do Lago Constança, o concílio dos bispos começado em 1414, um secretário do anti-papa João XXIII, Poggio Bracciolini, descobre na abadia de Saint-Gall, a alguns quilómetros do Lago, um manuscrito completo das “Instituições Oratórias” de Quintiliano, um autor que viveu mil e trezentos anos antes. O texto era mais ou menos conhecido de alguns letrados, “mas o mérito de Poggio, no regresso do concílio, é fazer dele imediatamente uma grande publicidade. (…) Quintiliano será uma das grandes referências do Renascimento.” (Benoît Timmermans)

Estamos, feliz ou infelizmente, ao abrigo de grandes redescobertas como essa. Não podemos esperar de nenhuma Antiguidade Clássica o novo impulso para a filosofia, nem, sobretudo, para a ciência. A não ser que, como no “Planeta dos Macacos”, ainda venhamos a encontrar, nas nossas viagens, numa praia remota  a cabeça e o braço com o facho da estátua da Liberdade.

A grandeza dos vestígios desse passado milenar que chegou à Europa da Idade Média, através de Bizâncio e do mundo árabe, não podia ter deixado dúvida nenhuma. Foi uma cultura superior, mas vencida pelo tempo, que se impôs aos europeus de então, como a Grécia se impôs ao império romano. Não ter perdido esse reencontro ficou a dever-se, por certo, ao facto daquela Europa ter de algum modo dado continuidade à cultura antiga. Não foi o choque da novidade, mas a recuperação duma amnésia.

Talvez que a Física que há-de suceder  a Einstein  e a outras estrelas já seja passado algures. Ninguém o pode dizer, e essa crença não tem nenhuma actualidade. Mas deverá ter sido esse o sentimento dos homens do Renascimento ao poderem ler Platão, na íntegra e na sua língua.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Moscovo (José Ames)

O EXÉRCITO VERMELHO



No filme de Kôji Wakamatsu, “United Red Army” (2007), podemos assistir à transformação dum grupo de jovens radicais, chegados directamente das lutas estudantis dos anos 60, no Japão, em carrascos de si próprios. No isolamento da sua base na montanha, como num outro castelo de Silling sadiano, a preparação para o que chamam de “guerra de extermínio” contra os EUA e o capitalismo, leva-os a uma intensa preparação psicológica com o fim de cortar todas as pontes com o seu meio de origem (perigosos, acima de tudo, são o desejo de viver e qualquer sensualidade), de modo a que só o cumprimento da sua missão e uma morte gloriosa tenham sentido.

A ideologia da crítica e da auto-crítica  que, noutro contexto, poderia ser útil na obtenção do máximo rendimento da organização (uma espécie de controle e de auto-avaliação no seio do grupo) e que, de qualquer modo, não se pode confundir com a tradição ascética, por tornar o juízo sobre os outros um dever, na base clandestina, torna-se uma verdadeira máquina assassina (dos 29 membros do partido, 14 foram executados pelos seus companheiros – até o fim acusados de “derrotismo”). O processo começava pelas pressões de uns sobre os outros para o aprofundamento da auto-crítica. Ao menos os congressistas de Staline não eram ingénuos ao ponto de “fornecerem lenha para se queimarem”. A auto-crítica ritual que revelava não só as potenciais defecções como os que poderiam contestar o poder do chefe levava quase imediatamente ao assassínio. O clima de intimidação psicológica era tal que mesmo os mais audazes e com as melhores provas durante a revolta estudantil e no próprio partido deram mostras duma paralisante cobardia diante do chefe, investido do poder de exigir a crítica e a auto-crítica aos outros. Mori (Gô Jibiki), o chefe, de resto, começara a sua “carreira” com uma deserção e tinha iniciado uma ligação com Hiroko Nagata (Akie Namiki), a fúria que “extorquia” as confissões às mulheres do grupo, e, sem dúvida para o fazer esquecer refugiara-se no mais extremista dos discursos e na “língua de pau” revolucionária, o que lhe granjeara o ascendente e um simulacro de força.

Depois de serem obrigados a mudar de local e a se separarem, Mori e Nagata foram presos e um último punhado resistiu durante dez dias, numa estância de férias, ao cerco da polícia, sem nunca terem, porém, a coragem de libertar uma mulher que mantiveram refém durante esse tempo.

Mori, arrependido das suas atrocidades, suicidou-se na prisão, o que considerou a sua “primeira tentativa revolucionária para o grande salto”. Poder-se-ia dizer que a morte esteve sempre ao seu alcance. Mas, na verdade, estamos aqui a falar de “salvação”, que é o contrário da morte. É esse aspecto religioso da luta revolucionária que, apesar dessa luta parecer anacrónica no Japão, quarenta anos depois dos acontecimentos narrados neste filme,  a torna actual e universal.

terça-feira, 26 de abril de 2011

(José Ames)

A SOCIEDADE DE DEBATES




“A  centralização desapareceu ao mesmo tempo que as organizações de partidos republicanos crescentemente estabeleceram as suas agendas a partir de 1989, enquanto que a ausência de argumentação política aberta (no que era distinta duma argumentação altamente esotérica), que tinha sido tão característica da vida dentro do partido, deu lugar a um tal choque de opiniões entre os membros do próprio partido sobre problemas de importância fundamental que alguns Comunistas conservadores (e mesmo Gorbachev em raras ocasiões) se queixavam de que o partido se tinha tornado uma sociedade de debates.”

“The Gorbachev Factor” (Archie Brown)



É o “em tempo de guerra, não se limpam armas” contra outro lugar-comum: “da discussão nasce a luz.”

Nos tempos de crise, os perigos deveriam ser suficientes para moderar a discussão entre as várias opiniões. E, normalmente, verifica-se que o medo assume, nessas alturas, a função do bom-senso.

Outra coisa se passa com as facções, que podem engrenar num discurso paranóico mesmo no meio duma crise. Ora, os partidos não têm a vocação do auto-sacrifício. Não abdicarão da demagogia em tempo de eleições, nem aceitarão pacificamente que as ideias dum concorrente são as que ele próprio defende, só que sob outra roupagem. Porque perder o que o distingue é a morte de qualquer partido. Como se vê na presente desgraça, mesmo quando está à vista de toda a gente que o futuro governo só pode alterar as vírgulas dum programa imposto do exterior, cada partido insiste em que é o mais competente para isso e que o outro, ou os outros são o fim do mundo.

Quanto à “sociedade de debates”, ela é um custo necessário da liberdade de opinião, sem a qual não pode existir verdadeiro progresso. O parlamento é o altar dessa liberdade. Tudo o que aí se passa parece quase só ritual. Porque o que realmente interessa passa-se fora do hemiciclo e é fora dele que se travam as verdadeiras discussões.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Roma (José Ames)

O CORPO É QUE RESPONDE

(Isócrates, 436–338 AC)


“Porque vocês sabem todos que se Cittus falasse contra o seu patrão, provavelmente sofreria, às mãos dele, para o resto da vida e da forma mais cruel, mas que se se mantivesse nas suas negações, ficaria livre e receberia uma parte do dinheiro que o seu patrão me tinha tomado.”

“Trapeziticus” (Isócrates)



O escravo devia ser chicoteado e torturado até que os juízes se convencessem de que ele dizia a verdade. Perguntava-se (a palavra question (do latim quaestio), é a mesma, em francês, para perguntar e torturar) ao corpo supliciado e este respondia com a verdade.

Por isso é que “A recusa de um patrão acusado em submeter o seu escravo à tortura para testemunhar era usada por um adversário como praticamente uma confissão de culpa.” (nota de George Norlin in “Trapeziticus”)

Este costume parece indicar que se presumia sempre que aquilo a que hoje chamaríamos de sentimento de classe não daria qualquer motivo ao escravo para sofrer pelo seu patrão, para lá do estritamente necessário (porque tinha sempre que convencer o júri, à custa do seu corpo).

Este é o exemplo mais claro possível do que significava ser destituído da cidadania. A um cidadão podia-se pedir um juramento sobre os deuses ou a sua honra. O escravo estava fora de qualquer contrato e não se esperava dele qualquer lealdade.

domingo, 24 de abril de 2011

(José Ames)

A FORÇA DO CASINO



“Chi è quel grande, che non par che curi l’incendio?”
“A Divina Comédia” (Dante)


Por certo, um economista. Eles sabem o caminho por onde vamos e o fim que nos espera. Já foram muitas as vezes que nos anunciaram o que aí vinha e que alertaram o governo, que fez orelhas de surdo.

Mas o espectáculo que essas vozes críticas nos oferecem quando passam da oposição ou da “cátedra” para o governo é-nos por de mais familiar, porque eles, lá chegados, só sabem fazer o que os outros fizeram até ali.

O governo, entre nós, mesmo o mais bem intencionado, administra a crise, a pressão dos interesses instalados e dos grupos mais organizados ( os quais, por exemplo na CP, com o seu cíclico programa de greves até se pode dizer que co-governam). Foi assim que a dívida cresceu o dobro do que cresceu o PIB. Os administradores não têm tempo nem fôlego  para mais, por  muito exorcismo que praticam os que estão de fora.

Governar é cortar um nó a seguir a outro, sem pensar naqueles a quem se devem os cargos. Será, então, possível ir tão longe contra o que parece o espírito da democracia?
Mas a nossa liberdade não é sempre escolher entre uma coisa boa e uma coisa má. Muitas vezes o dilema é entre duas coisas desigualmente más.

Por não se ter ido contra a lei da demagogia, vamos ter de violar mais seriamente a democracia, entregando-a a uma tirania externa ordenada pelos donos do casino que nos trouxe até aqui.

sábado, 23 de abril de 2011

Ericeira (José Ames)

ENCRUZILHADAS

Thomas Carlyle (1795/1881)



“Sempre que Carlyle, na sua vida e no seu trabalho posteriores, pregava este novo evangelho do ‘Eterno Sim’ (Everlasting Yea), nunca se esquecia de mencionar o nome de Goethe. Sem este grande exemplo, declarava, não poderia ter encontrado o seu próprio caminho. O ‘Wilhelm Meister’ de Goethe havia-o convencido de que ‘a dúvida, de qualquer espécie, só pode terminar através da acção’. Acção e não pensamento especulativo, ética e não metafísica são o único meio de superar a dúvida e a negação.”

“The Myth of the State” (Ernst Cassirer)



A acção parece fechar caminhos, porque quando, na encruzilhada, se escolhe um, os outros são abandonados ao “que poderia ter sido”. Mas é para abrir outros caminhos em novas encruzilhadas, e a primeira decisão nunca é suficiente. Claro que a acção termina a indecisão com um decreto que suspende todas as indagações.

É por isso que o observador, pela ilusão de tudo está ainda em aberto, quando não se começa nada, ou o que escolheu outro caminho, por ter encontrado uma paisagem diferente, não podem ser bons juízes.

Por outro lado, querer “saber tudo” tem o efeito paradoxal de paralisar a justiça, e esta só se exerce “mostrando o posto”. Nunca se viu um juiz que pudesse prescindir de se rodear dos símbolos do poder para exercer a sua função. Há um abismo entre o tribunal e o espírito da justiça, e não pode ser de outra maneira.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

(José Ames)

RACIONALIDADE RETÓRICA



“(…) porque o domínio da acção é o do contingente, que não pode ser regido por verdades científicas, o papel dos raciocínios dialécticos e dos discursos retóricos é inevitável para introduzir alguma racionalidade no exercício da vontade individual e colectiva.”

(Ch.Perelman, “L’Empire Rhétorique”, citado por Michel Meyer)


Que racionalidade é esta que não se refere aos factos e às provas científicas, mas seria “inevitável” no exercício da vontade? Creio que poderíamos dizer que estamos a falar da lógica, que é racional, mas independente da verdade.

A lógica (de logos) é relativa à palavra e ao pensamento. Pelo menos enquanto devem ser formuladas, as próprias demonstrações científicas  relevam da lógica. Não se poderia compreender uma verdade científica que fosse ilógica no seu contexto discursivo.

No domínio da acção, não podemos ser “científicos”, isto é, não podemos estar certos, por exemplo, de que o objecto da nossa análise e da nossa prática é real, ou que o resultado da nossa acção corresponderá às expectativas. Mas podemos ser “coerentes” e trabalhar para uma finalidade ideal ou simplesmente prática.

A retórica seria, assim, a técnica, a arte de introduzir a necessidade possível nos nossos raciocínios e no nosso discurso. De transformar a contingência e a falta de certeza numa cadeia de imperativos lógicos.

Ou seja, a retórica participa ainda do mito que ordena o mundo a partir dos desejos individuais ou colectivos e já tem qualquer coisa da ciência através do seu rigorismo lógico.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Covilhã (José Ames)

A CLIQUE

http://www.boston.com/bostonglobe


“A pior parte desta história é que estas decisões fundamentais sobre política económica são tomadas por uma pequena e secreta clique operando largamente fora do escrutínio público. As decisões do banco central sobre os juros terão provavelmente mais impacto no emprego e no crescimento do que qualquer das políticas interminavelmente debatidas em parlamentos eleitos.”

“The tiranny of the Central Banks” (Dean Baker in “Real-World Economics”)



Baker prossegue atribuindo esta situação, em larga medida, aos próprios políticos que “estabeleceram estruturas institucionais que colocaram os bancos centrais fora do controlo democrático”, ao ponto de “em muitos países, eles se terem tornado ainda mais independentes do que o sistema judicial.

O conhecimento (ou o pseudo-conhecimento), a linguagem codificada, os protocolos (o desconhecimento da etiqueta condenaria ao ridículo, na Versalhes do Rei-Sol, o mais digno e mais honesto dos cidadãos) têm sempre a mesma  função, ao mesmo tempo técnica e político-social de segregação.

Mas a alta finança e a casta que joga no casino bancário ficaram tão expostas nesta crise internacional que se criou uma situação perigosa para todos. Só falta que a demagogia identifique essa casta com uma religião ou uma raça.

Mesmo a esquerda que se quer radical parece ter abandonado os chavões sobre o capitalismo (palavra que já pode servir para os “dois” sistemas), para denunciar os “mercados” e a Banca, e por todo o lado é, cada vez mais, a mesma coisa.

É a hora da verdade para as democracias que conhecemos. O poder do povo nunca se mostrou tão retórico e vazio de conteúdo. Como diz Cassirer, se calhar por causa da velocidade em que vivemos, não nos soubemos libertar dos mitos políticos arcaicos que nas grandes crises poderão fazer de novo retrogradar a civilização.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

(José Ames)

FATUS


A Adoração dos Pastores (Lorenzo Lotto)


A virgem e os pastores, com S. José na sombra e dois anjos que testemunham a cena, formam uma abóbada de fatus sobre o que parece uma brincadeira de criança, mas que, na verdade, é o símbolo do sacrifício pascal. O cordeiro presta-se à manipulação do bebé, ao mesmo tempo que projecta uma sombra no seu rosto.

Ao contrário do que acontece com um bebé verdadeiro (este seria a pomba estúpida de que fala Alberto Caeiro), o seu jogo e as risadas que podemos imaginar não desanuviam a fronte dos assistentes. É como se diante do menino e do manso animal estivessem todos a ver a Cruz.

O olhar deles vem do futuro e anula aquela infância e aquele tempo de crescer. A gravidade do futuro sucede sem interrupções à gravidez da Virgem. Tudo é símbolo, tudo é real, mas nada é actual.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Claustro de San Lorenzo Fuori Mura

O FRAGMENTO Nº 349




Entre centenas de veneráveis fragmentos, na parede daquele ocre avermelhado tão característico da urbe romana, o número 349 que mostra quase só o rosto de dois putti com as asas despontando e aquele gesto de ternura que não me recordo de ter visto em mais lado nenhum, na espécie dos anjos.

Por um lado, esse afago nada tem de infantil e parece testemunhar duma amizade bem terrena, mas, por outro, se nos lembrarmos de que o deus do amor, filho de Vénus e de Marte, era representado como uma criança, o gesto já nos parece narcísico.

Nos destroços alinhados do claustro de San Lorenzo Fuori Mura, de frisos, estátuas e sarcófagos, o fragmento parece desafiar o seu estatuto de ruína e empolga-nos imediatamente numa corrente de vida.