terça-feira, 31 de agosto de 2010


Alcafache (José Ames)

PENSAR DURANTE O SALTO


Mr. Bean



Não há nada que nos faça sair mais depressa dum estado de devaneio do que um pensamento que nos perturba ou preocupa.

Melhor do que a decisão de me levantar fundada no hábito, é enfrentar um problema que me obriga logo a mudar de posição. Pre-ocupo-me, isto é, ensaio já a acção, e todo o corpo se põe em movimento, porque (como dizia Alain), não posso dizer sim com os punhos fechados.

Quando temos de agir (de resolver um problema), é necessário começar por sair do estado de repouso. Há, todavia, inúmeras situações em que o pensamento é contrariado pelo corpo. Nesse caso, temos o esgar, a falta de jeito, o fracasso.

Descrevi o tímido e o homem que pensa durante o salto mortal.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010


(José Ames)

O ANEXO SECRETO


Anne Frank (1929/1945)



No Anexo Secreto, em Amsterdam, Anne vive com a família e alguns outros judeus fora das vistas dos Alemães.

Aí conhece o fardo de viver com tantas pessoas num espaço fechado, mas também um amor adolescente.

O seu testemunho é vivo e cheio de humor, justificando o êxito mundial do seu Diário.

Racionar a comida, não fazer barulho, não puxar o autoclismo a certas horas do dia era a regra.

O que mais se admira é que esta proeza durou mais de dois anos e, apesar de tudo, o bom espírito tenha reinado sempre entre os que ali se escondiam.

Esta história é um exemplo para muitas outras situações insuportáveis. Quando o mundo parece enlouquecer, e nós com ele, abrir um anexo secreto, mesmo por detrás da fachada oficial.

domingo, 29 de agosto de 2010


Aquileia (José Ames)

EDUTAINMENT


Um Nativo Digital


Edutainment. Esta palavra é formada por education e entertainment. É a velha ideia de que se pode ensinar brincando, como quem joga. Marc Prensky escreveu até um artigo (http://www.marcprensky.com/writing) em que advoga as designações de Native Digitals (ND) e Immigrant Digitals (ID) para distinguir entre os que cresceram com a linguagem digital e as gerações mais velhas que têm um pé em linguagens anteriores e guardam sempre um sotaque.

A tese é de que o cérebro dos ND já se encontra estruturado, irreversivelmente, pelo uso dos computadores e da televisão, pelo que nunca poderão ser educados como dantes, no tempo dos livros e da rádio. Por outro lado, aos ID será muito mais difícil ainda ensinar de acordo com o paradigma digital.

É verdade que a atenção que requer, por exemplo, a leitura dum livro não é a mesma da que solicita um jogo de vídeo. Nem a inteligência num caso e noutro é igual. Daí, talvez, os deficits de atenção dos alunos no ensino normal e as dificuldades com o português e a matemática, por exemplo.

Mas a radical proposta de uma reconversão do ensino em função do digital e de se submeter a transmissão do legado cultural a uma espécie de caça ao tesouro, entre Indiana Jones e a Guerra das Estrelas, não significa apenas deitar ao caixote do lixo as competências e o saber da Escola, tal como hoje é, porque todo o passado sofrerá o efeito devastador duma colonização de bárbaros, sendo a civilização vencida nem sequer remetida para o museu da história que ninguém apreciará.

Entendamo-nos, ninguém poderá compreender e desfrutar o Dom Quixote através dum zapping aleatório pelas suas páginas digitalizadas. E o mesmo vale para toda a percepção que exija um tempo e um esforço de reflexão. A luz do ecrã intima a passar à frente. Elevadores e cliques de rato são fracos substitutos do virar de páginas e são perfunctórios.

Os novos bárbaros serão superficiais e incultos, embora extremamente dotados para o efémero e a velocidade. O saber ficaria confinado, por um tempo, a uma memória centralizada, sem ligação com a vida.

Se não se der um cataclismo resultante de tão grande desfasamento entre o que se pode e o que se sabe ou compreende, os novos conquistadores, cujo poder assentará sobretudo na supremacia biológica, não terão, como os Romanos, escravos gregos que os civilizem.

Ao contrário dessa aculturação pela civilização superior dos vencidos, o tudo-digital pode deixar a sobrevivência do homem, tal como o conhecemos, nas mãos dos povos que tenham feito outras escolhas.

Chegou o tempo de decidir, em nome do futuro, contra a digitalização precoce, como a tradição o fez em relação à genitalização precoce das crianças. Nem tudo o que é espontâneo num universo de forças é bom.

sábado, 28 de agosto de 2010


(José Ames)

CARREGAR NO BOTÃO





O miúdo no bar da praia abraça o gelado gigante de plástico, radiante, e, à procura dum efeito mágico, logo carrega num simulacro de botão.

Se tudo é magia na infância, a começar pelo poder dos seus balbucios que levam os adultos a tentar adivinhar os seus menores desejos, nunca houve uma relação, pode dizer-se, tão infantil, com o mundo dos objectos, por parte do adulto, como hoje em dia.

A tecnologia habituou-nos ao maravilhoso e em qualquer novo invento, procuramos sempre o botão.

Fazemos a economia da compreensão e precipitamo-nos no efeito. Como se ensina hoje nas escolas com o uso das calculadoras.

O curioso é que isto se passe no mundo real, com seres humanos que conhecem, em princípio, o valor da experiência e sabem a que impasses conduzem as atitudes mágicas.

Temos assim, uma inteligência objectivada, e quase transcendente para a maioria, ao mesmo tempo que uma casta detém os seus segredos. Evidentemente, sem qualquer violência ou exclusivo. Vale a pena citar Musil: “Mas o dinheiro não é um meio de tratar as relações humanas tão seguro quanto a violência, e não nos permitirá ele renunciar ao demasiado ingénuo uso desta? Ele é violência espiritualizada; uma forma particular, flexível, refinada, criativa, da violência. Não se fundarão os negócios no engano e na exploração, na astúcia e na coacção, mas civilizadas, inteiramente transferidas para o interior do homem, travestidas em liberdade?” (“O homem sem qualidades”).

A divisão de tarefas faz-se naturalmente. De resto, tudo se passa como se cada força seguisse o seu impulso e cada estupidez individual se revelasse ao nível do conjunto inteligente.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010


Alcobaça (José Ames)

PASSIVIDADE


Cubículo da Cena Erótica (Piazza Armerina)


"Acusavam um liberto de ter sido complacente com o seu patrão. O seu advogado respondeu:'Num homem nascido livre, a passividade (impudicitia) seria um crime; num escravo, um dever absoluto, num liberto, é um dever moral.'"

"L'élégie érotique romaine" (Paul Veyne)


Esta passagem é uma pérola sobre a ausência do corpo, tal como o entendemos, na antiguidade clássica.

Apesar de conhecerem todos os prazeres e todos os excessos, vemos aqui em acção uma ideologia cuja força é não chamar a atenção sobre si própria que atribui plena jurisdição sobre o corpo à política e à moral.

Nesse contexto, uma posição tem menos a ver com o Kama Sutra do que com o Código Penal. Sade é o herdeiro directo desta tradição, e a sua maquinaria destruiu o amor idealizado por Rousseau.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010


(José Ames)

O DEDO



"Os Budistas Zen dizem que um dedo é necessário para apontar para a lua, mas que não nos devíamos preocupar com o dedo, uma vez reconhecida a lua."

(Fritjof Capra)


E se todo o nosso aparato linguístico e filosófico fosse, de facto, esse dedo? Porque, segundo Kant, apenas temos acesso aos fenómenos, devendo abdicar do conhecimento do que as coisas são na realidade, o que é verdade se a coisa em si fosse uma relação que convoca toda a teia universal, por definição fora do nosso alcance.

E não é isso como se apontássemos para as coisas para nos entendermos sobre elas? Desde o comentário escolástico a uma teoria como o estruturalismo, a análise digital é a regra. Porque não saberíamos responder à pergunta do ser, contentamo-nos com situar as coisas em relação a nós.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010


Gaia (José Ames)

O FIM DAS ESPÉCIES?


Alain Delon no papel de Barão de Charlus


"Era, aliás, só em relação aos homens que o Sr. de Charlus era capaz de sentir ciúme no que dizia respeito a Morel. As mulheres não lhe inspiravam nenhum. É aliás a regra quase geral para os Charlus. O amor do homem que amam por uma mulher é qualquer coisa que se passa numa outra espécie animal (o leão deixa o tigre em paz), não os incomoda e até os faz sentir mais seguros. Algumas vezes, é verdade, naqueles que fazem da inversão um sacerdócio, esse amor enoja-os. Censuram então o seu amigo por se lhe ter entregue, não como de uma traição, mas como de uma decadência."

"Sodoma e Gomorra" (Marcel Proust)


Este texto parece, em 2010, um século depois, tão estranho como os costumes bárbaros terão parecido ao heleno da grande época.

Não foi uma mudança progressiva, pode dizer-se. Foi uma espécie de degelo que mudou a paisagem em poucos anos. Parece já não haver diferença entre tigres e leões, e o "sacerdócio", quando existe, porque há fundamentalismo em toda a parte, já não vê uma barreira entre as "espécies".

Procurar-se-á sempre, por certo, nos costumes do mundo correcto, os traços do animal pré-histórico que inspirou monumentos como a "Recherche", quando tinha algum sentido dar vivas à diferença, pequena ou grande.

Sabemos, além disso, que não é o paganismo que está de volta. Mesmo se nos propõe o abandono dos tabus que restam, ele não é futuro nenhum. Porque as diferenças que podíamos assacar à Natureza e que considerámos outros tantos entraves à igualdade, terão, por certo, de ser substituídas por outras, artificiais, que salvaguardem a nossa capacidade de adaptação a um mundo cada vez mais complexo.

terça-feira, 24 de agosto de 2010


(José Ames)

DESCARTES


René Descartes


"No que toca à violação de estranhos, a dominância relativa entre pares torna-se um problema, especialmente na violação em gangue. Um anónimo violador de estranhos descreveu a sinergia de ter um parceiro predador: 'Ter um parceiro é como ter alguma coisa para beber. Senti-me mais valente. Senti-me mais forte. Isso deu-me coragem para fazer algo que poderia não fazer sozinho.' (citado em 'Men Who Rape: The Psychology of the Offender', N. Groth). Mas com o empossamento da camaradagem vem a pressão hierárquica da competição entre pares. Os homens que participam na violação em gangue são espicaçados para agir de forma mais drástica do que se estivessem sozinhos."

"Detecting a Common Interpretative Framework for Impersonal Violence" (Kathryn M. Olson)


Estar no lugar errado, no tempo errado, como se diz, é quanto basta para atrair a tempestade humana. Grandes pressões oriundas de causas psicológicas ou sociais provocam o raio que se abaterá sobre a vítima no descampado. O alvo não é uma pessoa, com uma história e uma densidade humana, mas a imagem que acciona o gatilho da pulsão violenta. Tal como no filme de Bergman, "Da vida das marionetas", o acto compulsivo desencadeia-se ao nível quase "enzimático" em resultado do detalhe verdadeiramente diabólico (que atravessa), quer ele assuma a forma eidética ou a de um outro sentido específico.

A vulnerabilidade do indivíduo à influência do grupo é um tema recorrente da moral desde Platão, que não está longe de a considerar como a origem de todo o mal, o que é uma consequência da sua teoria da alma.

É fácil comparar a violência humana e a pressão exercida pelo grupo ao mecânico e aos fenómenos da física. É porque o espírito não está ali. E um corte cartesiano entre a força e o espírito é a melhor higiene mental possível.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010


Elvas (José Ames)

FLUIDOS


http://www.allanbrito.com/


"Um dos sinais de identidade da natureza humana é o que situa os homens ante problemas que são demasiado difíceis para eles, sem que lhes reste a opção de os deixar sem abordar por causa dessa dificuldade. Esta provocação do ser humano por parte do inacessível, que é ao mesmo tempo o não-dominável, deixou desde os inícios da filosofia europeia uma marca inolvidável; ou melhor: talvez que a própria filosofia seja, no mais amplo sentido, essa marca."

"Regras para o parque humano" (Peter Sloterdijk)


Isso quer dizer que os problemas não têm nenhuma relação necessária com a "essência" das coisas ou com a verdade, se quisermos.

Enquanto obstáculos que impedem a nossa prática de avançar ou a construção de ideias coerentes sobre o mundo, os problemas têm de ser ultrapassados e não podem existir verdadeiros problemas insolúveis.

Não sei se não será um pouco wittgensteiniano dizer que a filosofia se limita aos problemas e que, portanto, não pode estar à altura das suas reivindicações.

Se ela deve abdicar à partida perante o "inacessível" ou o "não-dominável", podia ser substituída pela moral ou por uma espécie de código de estrada (a fluidez do movimento é tudo).

domingo, 22 de agosto de 2010


(José Ames)

SECRETO DELEITE


O êxtase de Santa Teresa (Bernini)



"Em Agostinho, nem tudo vem à luz nitidamente! Porque se tornou demasiado sedutoramente forte no frui (desfrute), embora por dentro se fortificando!"

(nota preparatória de Martin Heidegger para um seminário sobre Santo Agostinho)


Não é essa "obscuridade" uma falta aos deveres do santo? Porque há uma espécie de deleite na fruição secreta que se perderia na comunicação.

Agostinho, que teve de transformar, retrospectivamente, as suas alegrias em tristeza e de se considerar culpado por ter dado ocasião à culpa e à tentação, não vai ao ponto de se recusar este prazer que, em Teresa de Ávila nos parece tão próximo da concupiscência…

A menos que essa reserva fosse uma condição da força (da palavra e do exemplo). Nesse caso, vemos como o corpo, apesar de tudo, retoma os seus direitos à custa da perfeição.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010


Areinho (José Ames)

MUDAR O MUNDO


Prometeu




"'A religião é a teoria geral deste mundo, a sua enciclopédia, a sua lógica sob a forma popular, o seu point d'honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene e a base geral para a consumação e a justificação deste mundo… O sofrimento religioso é ao mesmo tempo a expressão do sofrimento real e o protesto contra o sofrimento real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração dum mundo sem coração, tal como é o espírito de condições dele privadas. É o ópio do povo." (Karl Marx, 115 ´The Portable Marx´)'

Isto é dizer muito em louvor do ópio. A religião não surge como engano nem narcótico mas cabeça, coração e espírito. É filosofia aplicada, a expressão viva e popular duma única necessidade humana. Ele (Marx) acreditava que ela fosse a consciência da transcendência que nasce da necessidade real. O sofrimento sem sentido é inaceitável, portanto, a filosofia tanto quanto a religião procuram dar-lhe um sentido."

"Evil in modern thought" (Susan Neiman)


Numa única frase, Marx parece desmentir tudo o que disse atrás sobre a religião como teoria e expressão, coração e espírito.

A tarefa da religião e da filosofia de dar um sentido ao mundo torna-se suspeita, aviltante como a droga, porque acaba por ser uma justificação da ordem existente e do sofrimento que comporta.

O que interessa a partir de agora, em vez de tornar o mundo suportável, através do mito ou da ideologia, é "transformar o mundo" e torná-lo imediatamente legível. Um mundo, enfim, harmonioso e livre do mal.

A utopia começa por expulsar a complexidade e tornar desnecessária a mediação dos intérpretes e dos criadores de sentido.

Mas a "transformação do mundo" é muito mais do que a acção humana que, em todos os tempos, efectivamente, mudou o mundo. É um sonho de inteligência e de poder que pretende, na verdade, mudar o homem.

O verdadeiro castigo de Prometeu não é o rochedo no Cáucaso, mas a loucura.


quinta-feira, 19 de agosto de 2010


(José Ames)

ECONOMIA POLÍTICA


John Maynard Keynes (1883/1946)


"Desde há algum tempo, pode além disso observar-se um singular fenómeno de auto-referência. Interrogamo-nos sobre o significado que pode ter para um sistema a introdução de uma teoria deste sistema no sistema e o facto desta se tornar a base para uma acção prática no seu seio. Deverá isso então dar lugar a uma nova teoria susceptível de descrever um sistema que se funda sobre uma antiga teoria e que nessa medida desacredita tal teoria?"

"Politique et complexité" (Niklas Luhmann)


Luhmann dá o exemplo duma economia regulada pelas ideias keynesianas, que se prepara para "perspectivas de inflação contínua nessa base". Quer dizer, o facto de não ser apenas uma nova descrição do sistema, mas também uma prática macro-económica, implica a desactualização duma teoria anterior com sucesso até então. Foi o que aconteceu, nos anos oitenta, com o monetarismo cuja prática trouxe o descrédito às concepções de Keynes, até o momento em que, pelos excessos do liberalismo, criou, de facto, as condições para um regresso a Keynes.

Com isso, foram as duas teorias que ficaram desacreditadas enquanto descrições fiáveis do sistema, e a distinção entre o político e o económico que se tornou ainda mais difícil de deslindar.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010


Alvoco (José Ames)

PIROCRACIA



O que é que pode arrancar um homem à sua "apagada e vil tristeza", sem consultas de psiquiatria, nem mais esforço do que um passeio pelo bosque, que outra coisa o pode redimir de ser um Zé-ninguém, desprezado por cão e gato, e, com um pequeno gesto, desencadear as Fúrias, castigando o país modorrento das férias de verão? Com esse quase estalar de dedos – porque a floresta está ali, passiva e à mercê, como a paisagem urbana para os taggers – obrigar à luta estrénua de centenas ou milhares de homens, que pode levar à morte de alguns, enfim até à tragédia? Que poder é mais fácil e descomplicado do que este que durante umas horas ou, no melhor, uns dias, põe tantos em sobressalto e, como é merecido, tem o primeiro lugar nas páginas da imprensa escrita e do telejornal?

É isto o sinal de alguma coisa para além do desequilíbrio mental? É isto um caso de polícia ou, como diz o articulista no "Público" de hoje, simples ineficiência económica: "Os fogos são um problema de ineficiência da economia, não são um problema de polícia. A actual severidade dos fogos resulta da falência das economias que usavam a biomassa que produzimos abundantemente: a agricultura que usava o mato para estrumar a terra e a pastorícia que removia a biomassa através de animais, com o apoio de queimadas de baixa intensidade." (Henrique Pereira dos Santos)?

O certo é que nenhuma reprovação moral funciona, nem parece haver meios para defender o que arde. A situação é ideal para aqueles que se julgam vítimas da sociedade tirarem a sua cobarde desforra.

Quanto aos interesses económicos – que os há, evidentemente – não é crível que não ofereçam pistas à polícia, se esta estiver apostada em descobrir o crime. Devia ser tão óbvio como, noutros casos, aquela famosa dica do "cherchez la femme".

terça-feira, 17 de agosto de 2010


(José Ames)

ZÓPIRO



Heródoto conta que um chefe persa, Zópiro, para julgarem que traía, cortou o seu próprio nariz e as orelhas e assim conseguiu entrar em Babilónia, capital inimiga.

O que é que suscita neste caso a admiração do historiador grego: a crueldade do pretenso castigo, ou que ele pudesse ter sido infligido por Zópiro a si próprio para ganhar uma guerra?

Hoje, que todos temos presente o modo como os "estudantes de teologia" pretendem dissuadir a traição ou o desvio da norma religiosa, parece-nos que o persa talvez fosse bom chefe militar, mas era certamente um mau crente. Ele desviou a arma religiosa para um outro fim e, com isso, como que a privou do terror.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010


Setúbal (José Ames)

NAS ASAS DO DESEJO


(José Ames)



“A possessão por um deus – o entusiasmo – não é o irracional, mas o fim do pensamento solitário (...) – já Desejo.” Emmanuel Levinas (in “Totalidade e Infinito”)


Quando se vê o que as pessoas pensaram e fizeram num período (como achar um adjectivo sem lhe dar ao mesmo tempo uma conotação?) tal como foi entre nós o 25 de Abril e os meses que se lhe seguiram e se compararmos isso com o que dizem e fazem hoje em dia as mesmas pessoas, torna-se evidente que não podemos levar tudo à conta do envelhecimento ou da perda de significado dos ideais. Novos e velhos, e de todos os credos, naqueles tempos estávamos, de facto, possuídos. Mas o Desejo de que fala Levinas, da transcendência, não pode ser satisfeito por nenhum governo nem nenhum regime.

Se os cravos murcharam foi, pois, por uma inelutável necessidade.

Se perguntarmos agora onde se encontra hoje esse Desejo, eu diria que ele regressou ao coração de cada indivíduo e alimenta, como sempre, os seus sonhos, sem a ilusão da coincidência (com o desejo dos outros).

Podia dizer-se, então, que os homens fazem a história nas asas do Desejo, mesmo quando pensam voar com todos os seus meios aéreos ou cavalgar as forças.

domingo, 15 de agosto de 2010


(José Ames)

"A MÁSCARA" DE INGMAR BERGMAN


Bibi Andersson e Liv Ullmann



A actriz, no meio da sua deixa, em “Electra”, emudece. Electra que é a filha duma má mãe, Clitemnestra, sendo Elisabete a mãe dum rapazinho feio e de lábios grossos.

Uma enfermeira, chamada Alma, procura arrancá-la a esse silêncio. Mas ela própria, com uma história de aborto mal assumido, não resiste a confiar-lhe a sua solidão, tomando a bondade da escuta pelo que não é. Quando, através da leitura duma carta mal fechada, conhece o pensamento de Elisabete, fecha-se por sua vez, opondo uma máscara à outra máscara.

A actriz que se protege dos sentimentos (ela recusa a sua maternidade), impedindo-se o acesso à fala e encerrando-se num mundo sem alteridade, encontra-se agora diante dum espelho (Alma identificou-se consigo a ponto de halucinar a sua culpa (invocação da presença de Björnstrand ), em que a palavra vai estilhaçar a sua defesa e arrancar-lhe a voz, no final.

Persona, o título original do filme de Bergman, é uma palavra de origem etrusca que significa a máscara usada no teatro, ou a personagem. Não se compreende a máscara sem a linguagem que a confronta com as outras personagens. Quando o Outro que é posto pela linguagem é negado, resta a esquizofrenia do Mesmo.

Electra cala-se no palco porque um mundo deserto é um mundo do silêncio. A tragédia desenrola-se atrás da máscara, sem saída.


sábado, 14 de agosto de 2010


Bastide (José Ames)

SIC TRANSIT CENSURA


"O pecado mora ao lado" (Billy Wilder)


“Censura, mãe das metáforas”, diz Borges.

Todos experimentamos, na primeira ideia que vem à cabeça, a facilidade e o lugar-comum. Temos a seguir que filtrar, voltar à ideia que entretanto envelheceu e que já não podemos ver da mesma maneira.

Esse poder está pois, dentro de nós, sem lápis azul, mas mais eficaz ainda, porque nada lhe escapa.

A metáfora é, assim, uma espécie de contrabando que recorre à astúcia de Proteu para atravessar uma fronteira política, moral ou estética. Supõe que uma regra seja infringida em nome dum princípio superior.

Quando as crianças são educadas segundo o espírito não-directivo (em voga nos finais dos anos sessenta) não podem adquirir a noção de lei e com isso conhecem apenas uma caricatura da liberdade, em que vigora um culto supersticioso do espontâneo, que redunda no mais completo conformismo.

Sem o código Hayes veríamos as pernas de Marilyn Monroe, mas não o obscuro objecto do desejo sobre a grade do metro.

Se a lei é essa, quais são as formas da moderna censura que actualmente viverá, sem dúvida, o período da sua boa-consciência, até se juntar no caixote do lixo da história ao código Hayes?

sexta-feira, 13 de agosto de 2010


(José Ames)

PERSEGUIÇÃO IMPIEDOSA


"The chase" (Arthur Penn)



Em “The chase”, que Arthur Penn dirigiu em 1966 com argumento de Lillian Hellman, uma pequena cidade do Texas transforma-se, de carambola em carambola, numa multidão enlouquecida, dando largas aos seus mais primários instintos.

Mas, diferentemente dum filme expressionista como “Fury” (Fritz Lang), não se trata duma massa indistinta de que sobressaia um ou outro rosto mais exaltado. Há um desenho preliminar, de alguns indivíduos, psicologicamente credível, o que fará que todos ajam mais tarde segundo uma lógica do rapto e da possessão colectiva.

No desfecho trágico, aguardado desde o início, pela má estrela do fugitivo, assumirão, como as figuras dum coro grego o papel do destino, ao mesmo tempo cegos e infalivelmente certeiros.

Todos esses homens estão fora de si e no âmago do ser.



quinta-feira, 12 de agosto de 2010


Braga (José Ames)

ABSTENÇÃO


Peter Sloterdijk



"É o sinal dos tempos da técnica e da antropotécnica que, cada vez mais, os homens vão parar por casualidade à parte activa ou subjectiva da selecção, inclusivamente sem terem tido que esforçar-se intencionalmente para alcançar o papel do que escolhe. Cabe além disso afirmar o seguinte: existe um mal-estar no poder de escolher, e depressa chegará a ser admissível como opção para a inocência que os homens se neguem explicitamente a exercer o poder de escolha depois de terem lutado realmente por consegui-lo."


"Normas para el parque humano" (Peter Sloterdijk)


O poder de escolher só existe enquanto não soubermos tudo, enquanto o resultado for incerto. É esse o espaço da liberdade humana e o que permite a vida moral.

Mas o que se passa quando percebemos que na realidade somos comandados pelo acaso e que, cada vez mais frequentemente, somos levados a "escolher" aquilo que não podemos pensar, nem quereríamos acaso soubéssemos?

É então defensável que o homem se recuse o falso poder duma escolha (já é o que se passa com muito da abstenção nos sistemas eleitorais). Mas será sempre uma inocência difícil de provar aos que crêem. Dirão: pela tua omissão fizeste com que acontecesse.

Quer dizer, o sistema moral não deixa ninguém de fora: uns pensando que agem mesmo para os fins que não quiseram; os outros julgando que não contribuem para esses fins quando se abstêm.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010


(José Ames)

CHURRASCOS


Foz (José Ames)


Está tanto calor que as meninges esturricam e só apetece procurar o fundo duma gruta. Nem junto ao mar corre uma brisa benfazeja.

Ora a praia está pejada de corpos que se expõem em toda a sua superfície. Um ou outro sacrifica a Esculápio, besuntando-se com um creme protector. Mas a maioria oferece-se sem defesa aos raios de Apolo, como os nicotinómanos aos malefícios do tabaco, apesar de todas as campanhas contra o cancro.

No que vejo que a força dos mitos depende menos da nossa credulidade do que do que vemos os outros fazerem.

Assim, quando as praias podem ser gozadas sem dano para a saúde, enchem-se os centros comerciais. Mas quando a canícula faz cantar as cigarras, uma espécie de tropismo encaminha-nos para esse espectáculo à beira-mar em que a saúde e a juventude se celebram, como num ginásio em que o único exercício fosse suar.

terça-feira, 10 de agosto de 2010


Edimburgo (José Ames)

HEMISFÉRIOS


Safed (1908)


"As tradições da textualidade, do respeito das santas escrituras, da memorização e do comentário no coração do judaísmo depois da destruição do Segundo Templo estão largamente erodidas. Perduram na ortodoxia e os seus Yechivot (1), assim como nos confins do conservadorismo. Safed (2) é um lugar isolado. O "povo do Livro", nos nossos dias, é sem contestação o Islão. A ausência geral de cultura profana, de ensino superior e de sistemas de valores científicos e técnicos dão aí ao Corão uma centralidade, um poder na vida quotidiana, um monopólio referencial quase obsoleto no judaísmo do fim do século XX."

"Les Logocrates" (George Steiner)

(1) centros de estudo da Tora e do Talmude; (2) uma das 4 cidades santas do judaísmo.


O mundo caminha a várias velocidades e um dia o islamismo encontrar-se-á na situação de julgar o seu livro sagrado como um referência entre outras?


Steiner diz que oitenta anos depois da invenção de Gutenberg, ainda se faziam manuscritos. A era electrónica não tem essa idade. Não sabemos de que modo a sorte dos livros será traçada, mas sabemos que a expressão "povo do livro" já não se aplica a ninguém no Ocidente, porque os intérpretes e a classe sacerdotal de há muito perderam a sua influência, graças ao acesso directo aos textos.

O espírito crítico não é tão universal como pensamos e a diferença de velocidades é mais uma complementaridade desconhecida, qualquer coisa como a dos hemisférios do nosso cérebro?