quarta-feira, 23 de abril de 2008

SIMETRIAS


Poisson clown. Ces poissons monogames sont d'abord mâles
puis femelles. La femelle est plus grosse que le mâle
et inhibe son inversion sexuelle.


"Enquanto que, antes dela ter deixado o vestíbulo, eu conversava com a Senhora de Guermantes, ouvi uma voz de uma espécie que no futuro, sem erro possível, eu saberia discernir. Era, no caso particular, a do Sr. de Vaugoubert conversando com o Sr. de Charlus. Um clínico não tem necessidade de que o doente em observação levante a camisa, nem de escutar a respiração, a voz basta."

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


Antoine Compagnon, que anotou a edição que consulto, diz que o tema da traição dos invertidos pela sua voz é frequente em Proust, sendo, aliás, um lugar comum da psiquiatria do fim do século.

O que pode querer dizer esta adopção dum estereótipo sexual por um homem que sabia tão bem do que falava?

Em primeiro lugar, isso permite-lhe a imagem do clínico, mas que é uma razão apenas formal. Mais importante do que isso é uma ambígua identificação da inversão com a doença, pois que ao mesmo tempo se lhe dá a força de um instinto incontrolável que a voz trairia.

Proust coloca-se no lugar do acusador que, muito judaicamente, revela um certo zelo no condenar-se a si próprio.


(José Ames)

terça-feira, 22 de abril de 2008


Oceanário (José Ames)

A VAIDADE ESFARRAPADA


Diógenes (John Waterhouse)


Diógenes de Laércio conta que Diógenes, o Cínico, tendo sido, um dia, convidado à casa ricamente mobilada de um homem, e tendo-lhe este dito à entrada: "Sobretudo, não escarres para o chão!", como sentisse muita vontade disso, lhe escarrou na cara, com a desculpa que era o único lugar sujo que tinha encontrado para o fazer.

Esta anedota é citada por Cioran ("Précis de Décomposition") que reconhece no filósofo a quem chamaram o "cão", um homem que sabia abster-se de qualquer pose e que tinha a "coragem de aceitar a sua verdadeira imagem".

Eu não sei se temos de chegar tão longe para nos vermos e aceitarmos tal como somos. E, pelo contrário, a crítica que lhe dirigiam os contemporâneos de deixar transparecer a vaidade através dos buracos do manto parece-me pertinente.

Por isso, a negação de Diógenes é ainda uma atitude, muito afastada daquela tolerância que tudo aceita, "não só os abusos menores, mas os crimes e as monstruosidades."

No fundo, recusar as ilusões de absoluto da humanidade talvez seja contrário à vida. Como diz Cioran, essa "demência" protege-nos da ruína.

segunda-feira, 21 de abril de 2008


(José Ames)

O BÁSICO


http://matematica.com.sapo.pt/Image13.gif


"Enquanto tal homem apenas ensinar o alfabeto e a tabuada, que não despertam controvérsias, os dogmas oficiais não deturpam, necessariamente, a instrução por ele ministrada; mas mesmo quando ensina esses elementos, espera-se, nos países totalitários, que ele não empregue os métodos que lhe pareçam os mais capazes de produzir os melhores resultados didácticos, mas que inculque medo, subserviência e obediência cega, exigindo indiscutível submissão à sua autoridade."

"Ensaios Impopulares" (Bertrand Russell)


O aprender a contar, a ler e a escrever que era tudo quanto, segundo Salazar, o povo português precisava da escola, não terá sido muito influenciado pelas doutrinas oficiais. Mas é evidente que o regime, e deveríamos antes dizer a sociedade, visto que também a família estava inextricavelmente envolvida, não permitia qualquer flexibilidade quanto ao método de ensinar. O programa era pouco ambicioso, mas eficaz.

Hoje, aquelas competências básicas estão longe de ser ministradas com o sucesso desejado. Em contrapartida, os métodos tornaram-se voláteis, o que, não menos do que "antigamente", é o resultado dum dogma oficial e, sejamos justos, da própria sociedade que se organiza de outra maneira e em que a família permanece o dínamo essencial.

sábado, 19 de abril de 2008


Porec (José Ames)

OS OLHOS DO SILÊNCIO


Eyes of silence (Max Ernst)


Na praça da Liberdade deserta, à hora do almoço, a camioneta que serviu para o transporte da aparelhagem, debaixo do cavalo de D. Pedro, o "carro do som", os cartazes com grandes letras a vermelho e o silêncio ensurdecedor da "música de intervenção".

A Central prepara a manifestação da tarde. Antes de chegarem os manifestantes e a televisão, apenas a estátua equestre e o mendigo que dorme com a cabeça sobre a mochila.

A organização está nua e cobre-se de Abril transformado em decibéis.

sexta-feira, 18 de abril de 2008


(José Ames)

PALAVRAS DITAS



"Uma das ideias que eu tinha discutido em The Poverty (of Historicism) era a influência da predição sobre o acontecimento predito. Tinha-lhe chamado o "efeito de Édipo", porque o oráculo desempenhou um papel muito importante na sequência dos acontecimentos que levaram ao cumprimento da profecia."

"Unended Quest" (Karl Popper)


E Popper refere explicitamente o caso da psicanálise e da admissão de Freud que os sonhos dos seus pacientes apareciam "coloridos" pelas teorias dos analistas.

Nesse sentido, a réplica de Hamlet a Polónio ("words, words, words") peca por subestimar a influência das palavras.

Aquilo que se diz não pode retroceder para trás da "barreira dos dentes". Entre os homens, as palavras estão muitas vezes na origem dos acontecimentos e onde se percebe isso melhor é no teatro, pois, como dizia Alain, aí nada se diz que não faça avançar a acção.

Ora, os oráculos estão por toda a parte e fazem predições, desde o desporto competitivo à economia e à política. Mas como são muitos e frequentemente se contradizem, nenhum deles tem a influência da esfinge.

Édipo não fugiu ao seu destino e quase que se podia dizer que ignorou a profecia toda a sua vida até que os factos lhe entraram pelos olhos dentro. Ao contrário de Laios, que tentou fintar o destino, mas em vão.

quinta-feira, 17 de abril de 2008


Aveiro (José Ames)

INTERPASSIVIDADE


Slavoj Zizek


"Neste sentido, o conceito analógico maior de Zizek é sem dúvida o da interpassividade. Ele designa, ao invés da interactividade, esse movimento da subjectividade que consiste em "externalizar" - no computador, no interface, no objecto e mesmo no outro sujeito - não a sua actividade subjectiva, mas o núcleo passivo do seu ser, a sua passividade mais fundamental. Ele permite analisar as novas possibilidades de alienação induzida pelo progresso tecnológico desenhando os limites da pretensão à emancipação do sujeito contemporâneo."

"Slavoj Zizek, un philosophe inclassable" (François Théron)


O conceito de alienação, através do marxismo, ao criar, concomitantemente, a ideia duma autenticidade de que seríamos privados pela alienação operou, na frente psicológica, a personalização que o consumo à la carte realizou na sociedade de massas.

À medida que a nossa actividade é influenciada pela tecnologia, essa autenticidade parece-se cada vez mais com um estado pretensamente natural.

Se pensarmos no que a passividade de que fala o filósofo esloveno quer realmente dizer, encontraremos a velha ideia do homem enquanto objecto. Desde o joguete do destino à presa das suas próprias paixões, o passado é rico em imagens dessa passividade.

O que a interpassividade talvez traga de novo é a forma social de nos tornarmos objectos das nossas próprias máquinas.

A emancipação possível seria, pois, em relação à própria tecnologia. Tem sete vidas a utopia do bom selvagem!

quarta-feira, 16 de abril de 2008


(José Ames)

O ELEVADOR E O PATAMAR


Cómodo (161/192)


"Entre o "fiel" e o "infiel", a fronteira poderia ser bastante indecisa e movediça... O fiel define-se pela crença ou pela ? Estes dois termos não designarão atitudes de sentido inverso? Toda a fé não implica um constante esforço de incredulidade, e a verdade de toda a descrença não reside na fé? É, enfim, possível conceber uma fé suficientemente ardente para não ser a todo o momento transida de credulidade, mais ou menos degradada em crença?"

"La foi d'un incroyant" (Francis Jeanson)


Suponhamos que a fé é um elevador movido pela força do nosso espírito. O esforço é demasiado grande para não procurarmos apoio, quase sempre, no travão que nos deixa num qualquer patamar, igual a todos aqueles pelos quais já passámos.

Subimos pela fé, mas descansamos na crença.

Quando julgamos ter alcançado o que procurávamos, o espírito torna-se esfinge, e nós tornamo-nos crentes.

O mundo dos fiéis é realmente outro Vale dos Reis. Só se contam os vivos entre os que duvidam no próprio momento em que se elevam.

Não há verdades feitas em lado nenhum. Nenhuma biblioteca nos dispensa de começarmos desde o princípio.

Cómodo, filho de Marco Aurélio votou ao desprezo toda a sabedoria paterna.

Um novo ser começa por pôr em causa as nossas certezas.

terça-feira, 15 de abril de 2008


Rebordões (José Ames)

A LÁPIDE NA CATEDRAL


Fénelon (François de Salignac de la Mothe -1651/1715)

"Vivendo bastante retirada em Combray num imenso jardim, para ela nada era demasiado doce e sujeitava a um adoçamento as palavras e os próprios nomes da língua francesa. Achava demasiado duro chamar "cuiller" (colher) à peça de prata que vertia os seus xaropes e dizia em consequência "cueiller"; teria receio de violentar o doce cantor de Telémaco chamando-o rudemente Fénelon - como eu próprio fazia com conhecimento de causa, tendo por amigo mais querido o ser mais inteligente, bom e corajoso, inesquecível para todos os que o conheceram, Bertrand de Fénelon - e dizia sempre "Fénélon", achando que o acento agudo acrescentava alguma moleza."

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


Este amigo, um dos modelos de Robert Saint-Loup, era de facto descendente do abade Fénelon, autor do "Télémaque".

É a única vez, se acaso não me engano, em que Proust, o homem de sociedade, se sobrepõe ao Narrador. Bertrand de Fénelon não faz parte da galeria das personagens da "Recherche", a não ser através do seu avatar Guermantes, como ele morto na frente de guerra em 1914.

Desatenção do autor ou deliberada intrusão da biografia por impulso de generosidade?

É como se no meio da sua catedral, Proust, infringindo a lei do romance, colocasse uma lápide com o nome do amigo muito querido.

Mme. Pinson, pelo seu lado, é uma personagem que, com o seu gosto de modificar a língua, ganha um estatuto quase geográfico. A operação plástica a que o povo duma determinada região sujeita a língua nacional aparece aqui como função desta dama de outros tempos esquecida no seu jardim de Combray.

E esta é uma ideia parecida com a da descoberta das fontes.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

O CASO DO TEATRO ARGENTINA


O Teatro Argentina em Roma


No século XVIII, o nosso embaixador em Roma, junto da Santa Sé, convidou os portugueses residentes a um espectáculo gratuito no Teatro Argentina, bastando que à entrada as pessoas declarassem ser essa a sua nacionalidade.

Isso deu azo a que muitos oportunistas assistissem de borla ao espectáculo, fazendo-se passar por compatriotas nossos.

Essa história está na origem da expressão "fare il portoghese", ainda hoje viva entre os italianos, mas com o sentido contrário. Graças a um mecanismo que Freud explicou muito bem, são os portugueses que ficam mal no retrato, e todo aquele que tenta eximir-se ao preço do bilhete "fa il portoghese".

A fórmula é útil porque define um comportamento, pelos vistos, relativamente vulgar, mas porque feria o amor próprio nacional, a censura operou, como na comédia de boulevard, uma troca de papéis.


(José Ames)

O CINEMA PURO


Antonin Artaud (1896/1948)


"As imagens nascem, deduzem-se umas das outras enquanto imagens, impõem uma síntese objectiva mais penetrante do que não importa qual abstracção, criam mundos que não pedem nada. Mas deste jogo puro de aparências, desta espécie de transubstanciação de elementos, nasce uma linguagem inorgânica que emociona o espírito por osmose e sem nenhuma espécie de transposição nas palavras."

Antonin Artaud (K, nº 1-2 consacré à Antonin Artaud)


E Artaud conclui que os filmes mais perfeitos seriam aqueles em que reinasse um certo humor, como nos "Charlots menos humanos", em que a "realidade parece destruir-se a si própria.

Quando, precisamente, o cinema se mostraria como linguagem soberana, que nada devesse às outras. Segundo esta ideia, entrevista durante o período do cinema mudo, até o código narrativo é espúrio.

Pode-se imaginar uma arte visual do movimento, sem palavras e até sem sentido. E é evidentemente no exemplo da música que pensamos, como essa linguagem aparentemente autónoma.

O cinema puro seria para Artaud uma sucessão livre de imagens, com uma única cláusula: deveria de algum modo anular-se. E daí o humor e uma reminiscência da simetria.

sábado, 12 de abril de 2008

OS DEMÓNIOS À ESPREITA


http://people.rit.edu/andpph/photofile-c/sneeze-k-17.jpg


"Pessoas antiquadas ainda dizem "Deus o abençoe" quando alguém espirra, mas já esqueceram a razão de tal costume. A razão era que se pensava que as pessoas expeliam a alma ao espirrar, e, antes que a alma pudesse voltar ao seu lugar, demónios que se achavam à espreita podiam entrar no corpo que estava sem alma. Mas se alguém dizia "Deus o abençoe", os demónios afastavam-se amedrontados."

"Ensaios Impopulares" (Bertrand Russell)


Como nos poderíamos rir desta crença? Troque-se demónios por um vírus e já tudo parece actualizado.

Um espirro no autocarro pode não ser a oportunidade de um demónio, mas precisamos de sorte e de algumas defesas para não ficarmos contagiados pela gripe.

São tantos os riscos e tantas as fórmulas de esconjuro para tais ocasiões, que se asseptizássemos a linguagem limpando-a de todas elas ficaríamos com uma linguagem pouco mais do que artificial, onde já não se veriam, como na secção do tronco duma árvore, as várias idades.

Até um simples voto de bom dia encerra alguma crença no poder mágico das palavras...

sexta-feira, 11 de abril de 2008

A POLÍTICA FELINA


http://tn3-2.deviantart.com


"Robespierre, o sincero filantropo de 89, passara por coisas atrozes. Primeiro o riso unânime dos dois lados da Constituinte, dos Lameth e dos Maury. Ele, o galo da sua província, laureado de Louis-le-Grand e académico de Arras, era muito sensível. Foi para ele um banho de água-forte, secou-o cruelmente, e endureceu-o. E a vitória de 91 não o distendeu. Nunca mais voltou a ter a cara (ainda muito doce) que tinha em 89. Tornou-se cada vez mais um gato."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


Esta alquimia, justamente admirada por Roland Barthes, em que o galo se transforma em gato, desenha a fogo o processo duma educação política.

O orgulho ferido que aprende a dissimular-se. No gato, encontramos a explicação "anatómica" dos movimentos do grande tribuno. Algumas ausências inexplicáveis na altura do perigo extremo, as alianças contranatura com os "enragés", ao mesmo tempo que professava as opiniões mais conservadoras, senão monárquicas, com uma técnica de camuflagem que faria a inveja dos seus herdeiros.

E, sobretudo, o que é mais próprio do felino, a imprevisibilidade do seu salto, a falta de confiança que inspira o seu olhar amarelo.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

SE EXISTIR UM PARAÍSO


O manuscrito de Proust

"E eu não pedia mais nada a Deus, se existir um paraíso, que poder bater contra esse tabique as três pancadinhas que a minha avó reconheceria entre mil, e às quais ela responderia com esse outro bater que dizia: "Não te agites, ratinho, compreendo que estejas impaciente, mas eu já vou." e que ele me deixasse ficar com ela toda a eternidade, que não seria demasiado longa para nós dois."

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


A mãe e a avó trocam de lugar frequentemente em Proust. Mais ainda nesta passagem em que "o morto agarra o vivo, que se torna o seu sucessor e parecendo-se com ele, o continuador da vida interrompida".

Esta sensibilidade que confundiríamos se lhe chamássemos feminina, visto que vem directamente da infância dentro de nós, é o órgão maravilhoso que nos permite trazer do passado o filão mais puro.

Mas, ai de nós! pagamos essa presença e o demorar-se nela com o castigo de Orfeu. A sombra regressa ao Hades e só a arte permanece.


Terceira (José Ames)

quarta-feira, 9 de abril de 2008

A DIFÍCIL LIBERDADE


Alistamento de voluntários

"Enquanto que nenhuma construção teórica consegue torná-lo sensível (o problema da liberdade), fazer-nos experimentar a sua realidade densa e contraditória, uma intuição privilegiada instala-nos no próprio coração da liberdade, a despeito de todos os argumentos inventados contra ela. E nós temos medo; - temos medo da imensidade do possível, não estando preparados para uma revelação tão vasta e tão súbita, a esse bem tão perigoso ao qual aspiramos e diante do qual recuamos."

"Précis de décomposition" (Émile Cioran)


É preciso acreditar que, mesmo na situação do Comité de Salvação Pública, a "imensidade do possível" não era uma simples frase.

Mas como diz Cioran, nós temos medo e recuamos. Homens de pouca fé! diz o evangelho.

O medo está por detrás de todas as ditaduras, sendo o tirano o principal prisioneiro. E muitas vezes só se consegue vencer o medo pela inconsciência.

Houve um tempo da Revolução Francesa em que ninguém sonhava que os comités estivessem no fim do caminho.


(José Ames)

A SABEDORIA DO COMITÉ


Carnot no Comité de Salvação Pública


"A situação de Carnot, Lindet, Prieur, La Vicomterie, etc., nos dois comités, era horrível. O último estremecia de lá estar. Quase que se sentia mal ao ver Robespierre. Carnot, Lindet, homens tão necessários, guardados pela vitória, eram todavia forçados a assinar as provas sangrentas que Couthon e Saint-Just enviavam, e que ele próprio, Robespierre, geralmente não assinava. É frívolo e até injurioso para eles dizer que assinaram provas tão importantes sem as ler. Digamos as coisas como elas se passaram. Se tivessem recusado, se se houvessem retirado, a França ficaria em perigo. Sem o seu trabalho, a sua sábia orientação, a imensa tagarelice não teria servido de muito."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


Estamos aqui no momento da verdade de todas as crises. Felizes aqueles que não se viram assim, entre a espada e a parede.

Robespierre, de início, não queria a pena de morte, nem enviar homens como Danton e Desmoulins para a guilhotina. Lenine não queria meter os socialistas revolucionários todos na prisão, até o atentado sobre a sua própria vida ter mudado tudo.

Michelet diz que este foi um período de ditadura.

Apesar da festa, que foi grande, por um momento, apesar da generosidade, dos grandes princípios, foi uma ditadura.

Com o exército prussiano em solo francês, a divisão era um crime, a hesitação, um erro fatal. Mas era a isso que conduzia a guerra dos partidos e o carácter dos principais dirigentes. Os jacobinos desconfiavam de tudo e de todos, e eram mais céleres a denunciar do que a agir. O Terror saiu desse espírito, como um demónio que se impôs a todos. Havia uma lógica que matava tanto como a guilhotina e um poder cada vez mais isolado que só podia fugir para a frente.

Esta ditadura destruiu os seus fundadores e continuou com Napoleão, que é uma criatura sua, com o seu rasto de morte pela Europa fora. Mas não pôde evitar que ao cabo de vinte anos os cossacos entrassem em Paris, nem que a Restauração se lhes seguisse.

Por isso, Michelet ao referir-se às "sábias orientações" do Comité de Salvação Pública está no mínimo a mostrar-se sentimental.

terça-feira, 8 de abril de 2008

PANDORA


Louise Brooks (1906/1985)

"A girl in every port" (1928) foi o filme que revelou Louise Brooks como a mulher fatal que espalha o caos à sua volta, com a frieza dum astro. E qualquer coisa de autodestrutivo, como viu Wilhelm Pabst, para quem fez o seu "A boceta de Pandora".

É preciso vê-la subir a escada no espectáculo de circo, como uma encarnação da noite, donde se vai precipitar num charco mesquinho.

Victor McLaglen é o contraponto desta lógica, a vítima predestinada duma tal mulher.

Mas este é o cinema de Howard Hawks, e já aqui a amizade é o valor supremo, mesmo se à custa da misoginia, de resto, sem complexos.


Porto (José Ames)

OS MIL OLHOS DO SENTIDO


O cão Argos

"Muito mais tarde, já em Munique, fiquei encantado com um espectáculo inesperado, surpreendido no meu próprio atelier. Era quase o crepúsculo, eu voltava a casa com a minha caixa de tintas, depois dum estudo, ainda mergulhado no meu sonho e na recordação do trabalho acabado, quando me apercebi de súbito na parede dum quadro duma extraordinária beleza, brilhando dum raio interior. Fiquei interdito, depois aproximei-me do enigma, em que não via mais do que formas e cores e cujo conteúdo me permanecia incompreensível. Encontrei rapidamente a chave do enigma: era um quadro meu que eu tinha dependurado ao contrário na parede."

"Regard sur le passé" (Wassily Kandinsky)


Há nestas palavras uma revolução. Kandinsky diz que aprendeu a ir mais longe do que o objecto representado pela pintura, objecto que, desde Cézanne, tinha entrado num processo de desagregação.

A arte abstracta é este abandono da imitação das formas que são por nós percebidas enquanto as ligamos a um objecto.

O quadro ao contrário, ele próprio, uma vez percebido o erro de orientação tinha-se de novo "colado" ao objecto, era o objecto, mas ao contrário.

Kandinsky nunca mais voltou a encontrar a impressão inicial.

Iludir o Argos do sentido e encontrar, por assim dizer, a impressão nua é quase um trabalho pítico.

Por isso, foi sempre mais fácil partir do acaso e pintar numa estratégia de fuga em relação ao objecto.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

LUZES INACTUAIS


"La Chambre Verte" (1978-François Truffaut)


"Em França, o número dos filiados em clubes de ténis passou de 50.000 em 1950 para 125.000, em 1963, atingindo mais de 500.000 em 1977, tendo quadruplicado assim em menos de oito anos. O dos praticantes de ski triplica entre 1958 e 1978 para atingir hoje mais ou menos - o que não é inteiramente por acaso - 600.000. Simultaneamente, o número dos que jogam futebol permaneceu mais ou menos estável (cerca de 1.300.000), bem como o dos adeptos do rugby (147.000). A preferência pelo tipo individual de prática afirma-se também nos desportos populares."

A. Cotta ("La Société ludique", citado por Gilles Lipovetsky)


É o mesmo movimento que esvazia as salas de cinema, em benefício da visão individual do vídeo ou do DVD.

Lembram-se do filme "Denise telefona" (1995-Hal Salwen)?

É possível a comunicação instantânea, urbi et orbe, sem a comparência do outro. Acabou-se, com isso, o risco das relações decepcionantes. É a felicidade por exclusão de partes. Só nos podemos desiludir a nós mesmos.

No limite, poderíamos manter uma conversa ininterrupta com um número indeterminado de personae, afectadas pela pequena anomalia de já todas "terem sido".

O céu estrelado fornece-nos a metáfora adequada, quando sabemos que essa luz maravilhosa não corresponde, em muitos casos, já a nada de actual.

A tecnologia está, assim, a realizar o sonho de Auguste Comte duma religião da Humanidade, em que os vivos e sobretudo os mortos, cuja "massa" é muito mais impressionante, têm uma presença o mais possível influente e absolutamente real (mas não actual).


(José Ames)

domingo, 6 de abril de 2008


Porto (José Ames)

O JUSTO MEIO TERMO


A Paideia

"Libertar a criança das sensações de medo é o primeiro passo no caminhar da sua educação para a valentia. É este o objectivo que Platão visa com a ginástica do recém-nascido. O descontentamento e o mau humor contribuem para a sensação de medo. Platão preconiza o justo meio termo entre a brandura e a opressão. A primeira torna a criança hipersensível e excessivamente caprichosa, a segunda mata nela a liberdade e torna-a hipócrita e misantropa."

"Paideia" (Werner Jaeger)


Dos 3 aos 6, jogos. A partir desta idade, "Platão estabelece a separação dos dois sexos. A formação da criança deve adestrar tanto a mão esquerda como a direita e não uma só, como hoje acontece." (ibidem)

Já se sabe há muito tempo, como se vê, que a correcção a menos torna a criança caprichosa, o que ainda hoje é considerado um defeito (não sei se a hipersensibilidade, com o actual desprestígio do viril - que se toma na sua acepção machista e mais grosseira -, o será ainda).

A brandura, por outro lado, tem toda a relatividade da cultura. Ser brando hoje é talvez a demissão completa do educador e um puxão de orelhas é o começo da opressão.

A separação dos sexos parece fundamental para uma verdadeira paideia. Muitas vantagens teve, sem dúvida o ensino misto e uma desvantagem que as sobreleva a todas: a tendência para uma indiferenciação na linguagem e no gosto que pode estar na origem duma alteração dos costumes sexuais de grandes consequências.

Mas não sei se essa ideia, em Platão, não é contradita pelo preconizado adestramento das duas mãos.

A educação separada é, de qualquer modo, uma especialização; supõe-se que todo um espectro de qualidades ficaria assim, voluntariamente, por desenvolver. Enquanto que no ambidextro o ideal parece ser o contrário disso. E talvez a razão esteja na utilidade do guerreiro saber atacar e defender-se com os dois lados.

sábado, 5 de abril de 2008


Museu (José Ames)

sexta-feira, 4 de abril de 2008

TELEMOVELMAQUIA



A imprensa, a propósito da luta pelo telemóvel que andou na Internet e na televisão, tem evocado outras peripécias de violência nas escolas, desde o fundo dos tempos.

Mas a escola está diferente e tudo o resto, a família já não é a mesma, nem as mentalidades, que dos mais jovens aos menos jovens, não interiorizam já a antiga hierarquia de valores. Não há pai severo que chegue, nem pátria, nem sequer Deus.

A grande mudança não nasceu da revolução social, mas da microeconomia, duma coisa comezinha que afectou a vida de todos: o consumo à medida de cada um, possível, graças à tecnologia. A implosão da hierarquia vem desse grande empreendimento de sedução que é o consumo personalizado. O resultado é que cada pessoa vive mais para si do que para os outros e que os laços sociais, as crenças colectivas enfraqueceram na mesma proporção.

A professora que tentou arrancar o telemóvel da aluna insubordinada infringiu o mais sagrado dos princípios do narcisismo moderno. O direito às coisas pessoais, ao estatuto, ao modo de vida são incondicionais. Não se discutem, como a pátria de Salazar.

A escola está no centro do remoinho. Ela vai contra a tendência geral da cultura que é a busca do prazer, o hedonismo. Para sobreviver, deverá sacrificar os critérios de rigor e as provas de esforço. Poderá, graças ao apoio da lei e a um reforço dos poderes disciplinares voltar a ter a missão que já foi a sua?

Talvez, se for estabelecido na escola um mundo à parte, como um claustro, com um direito especial que a democracia não está preparada para aceitar. Mas resta-nos a utopia. Se as tendências desagregadoras se cumprirem, é possível que a família, apoiada na tecnologia, substitua a função escolar, com prejuízo embora duma certa socialização.

Nessa altura, porém, seremos ainda mais narcisistas do que somos.

EFÉMERAS INSCRIÇÕES


Cemitério de Valongo

Os versos na pedra tumular de Cândida Inocência apagam-se mais rapidamente do que eu pensava.

O anjo de seis anos que, segundo as palavras doloridas dum pai, subiu ao Céu em 1849, um ano depois do "Manifesto Comunista", há muito perdeu nesta Terra quem o lembre.

A velocidade da comunicação, nos nossos dias, torna também rapidamente ilegível o que ainda há pouco tinha sentido. A memória piedosa corre para salvar as efémeras inscrições.

Aqui relembro os versos, já interrogados:

Sob esta lousa que o meu pranto lava,
A estes cansados olhos te escondeste,
Filha chorada sempre em que eu achava
Meu porvir que morreu quando morreste.

Tu por quem eu só a vida amava (?),
Anjo pede p'ra mim ao Pai celeste
Em paga deste amor, desta saudade,
Um lugar junto a ti na eternidade.


Lisboa (José Ames)

O BURACO NA CABEÇA


Um Acelerador de Partículas


"None of this nor the rest of the grimness on the front page today will matter a bit, though, if two men pursuing a lawsuit in federal court in Hawaii turn out to be right. They think a giant particle accelerator that will begin smashing protons together outside Geneva this summer might produce a black hole or something else that will spell the end of the Earth — and maybe the universe."




É claro que a enormidade da coisa levaria a que quase ninguém a levasse a sério, contudo, ela não é mais absurda do que a teoria dos universos paralelos, que muitos cientistas de renome defendem.

Que algures nos arredores de Genebra se esteja a criar o feitiço que se volta contra o feiticeiro, com um "buraco negro" que pode vir a engolir o planeta e este aqui presente universo, como o temem os críticos do CERN (European Center for Nuclear Research) é talvez mais verosímil, para o senso comum, visto que se gerarão energias nunca antes alcançadas pelo homem (sete triliões de electrões-volt), do que supor um outro universo, ao lado deste, em que Napoleão tivesse ganho a batalha de Waterloo.

Encontramo-nos aqui a um nível especulativo que deixa a perder de vista o famoso "Credo quia absurdum".

De qualquer modo, a situação é muito reveladora duma certa idolatria da ciência. Porque, neste caso, deixou-se já o plano da teoria pura para o plano prático, catastrófico ainda que remotamente, sem que em nome da humanidade se levante uma sombra que seja da questão ética e da questão dos fins.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

POSSESSÃO


George III (1738/1820)


"Havia, até o fim do século dezoito, uma tradição que afirmava ser a loucura devida a possessão por demónios. Inferia-se que toda a dor sofrida pelo paciente era também sofrida pelos demónios, de modo que a melhor cura era fazer com que o paciente sofresse tanto que os demónios resolvessem abandoná-lo. Os dementes, de acordo com tal teoria, eram submetidos a violentas pancadarias. Tal tratamento foi experimentado, sem resultado, no rei George III, quando ele se achava louco."

"Ensaios Impopulares" (Bertrand Russell)


A teoria era muito mais radical do que, por exemplo, o aforismo "o que arde, cura" deixa supor, mas era coerente com a ideia da possessão.

A loucura significava que o corpo e o espírito do doente eram "ocupados" pelo demónio que, assim, o fazia comportar-se do modo estranho que caracteriza a demência. Era por isso bastante lógico pensar-se que bater no doente era o mesmo que bater no seu "inquilino".

Modernamente, já não se acredita no demónio e a loucura é apenas uma doença do "foro psíquico".

É claro que se pode dizer ainda que a loucura "possui" o louco. E até que o demónio se tornou inteligente, fazendo de tal maneira, que todo o tratamento, com colete de forças ou não, seja unicamente sofrido pelo doente.


(José Ames)

O OLHAR DA ÁGUIA


La Grande Armée en 1807


"Eu cri então que a guerra estava declarada. Desde há muito tempo que não estava habituado a um tom desses. Nem tinha o habito de me deixar ultrapassar! Podia marchar sobre a Rússia à cabeça do resto da Europa, a empresa era popular, a causa europeia; era o último esforço que restava fazer à França. Os seus destinos, o do novo sistema europeu estavam no fim da luta. A Rússia era o último recurso da Inglaterra; a paz do globo estava na Rússia, e o sucesso não podia estar em dúvida. Parti; todavia, chegado à fronteira, eu, a quem a Rússia tinha declarado guerra retirando o seu embaixador, julguei dever enviar o meu (Lauriston) ao imperador Alexandre em Vilna; foi recusado, e a guerra começou."

"Mémorial de Sainte-Hélène" (Emmanuel de La Cases)



Assim começou uma guerra devastadora, com uma "desinteligência": "A França censurava à Rússia a violação do sistema continental. A Rússia exigia uma indemnização pelo duque de Oldemburg e erguia outras pretensões." (Ibidem)

Alguém já disse que um chapéu impõe certos pensamentos, pela sua forma e o seu peso. Desde a coroação, Buonaparte só podia pensar em grande. Veja-se como dá de barato o último esforço dos Franceses e como uma nota do embaixador russo é considerada uma insolência. Ele, Napoleão, não estava habituado a esse tom.

Para explicar que razões tão fúteis tivessem estado na origem da destruição da Grande Armée, nas estepes geladas, ele diz que: "não há pequenos acontecimentos para as nações e os soberanos: são eles que governam os seus destinos."

Na verdade, o pensamento imperial é que estabelece a importância das coisas em função dos seus desígnios.

Mas estamos no século XIX e o império tem de esconder-se sob o eufemismo do "novo sistema europeu".

quarta-feira, 2 de abril de 2008

O SENTIDO DA VIDA



"Nas sociedades mais crispadas, uma tradição viva apoia-se nas anedotas com alvos relativamente precisos (os loucos, o sexo, o poder, certos grupos étnicos): hoje o humor tende a desligar-se destes moldes demasiado rígidos e sólidos em benefício de uma boa disposição sem ossatura, sem cabeça de turco, e de um gracejar vazio que se alimenta de si próprio."

"A Era do Vazio" (Gilles Lipovetsy)


Fim do "esprit" à francesa e triunfo do humor à Monty Python. Não reflecte esta situação o "imperialismo" do anglo-americano básico?

Entre nós, resquícios de "crispação" ainda subsistem (anedotas sobre o sexo e os alentejanos).

Além disso, o trocadilho está, como sempre esteve, em alta. É raro que apele à cumplicidade elitista e normalmente esgota-se numa saborosa destruição do sentido da linguagem corrente.

Nada de crítica pessoal ou social. O trocadilho é um exercício relaxado e convivial.

E o humor é cada vez mais importante numa cultura sem hierarquias rígidas, onde tudo se pode converter no seu contrário.

O conselho de que não nos devemos levar a sério estende-se a toda a sociedade, e isso facilita os movimentos do capital simbólico. "Os valores superiores tornam-se paródicos". A política torna-se irremediavelmente ridícula pelo gesticular permanente. As imagens, repetindo-se, perdem o som.

Porreiro, na nossa língua, define bem o espírito da coisa. É o cool de Lipovetsky.


Porto (José Ames)

A GAZELA IMPENSÁVEL


Públio Virgílio Marão (70/19AC)


"Uma vez, tentei fazer-lhe compreender que era preciso distinguir entre o pânico e a fuga de massa, que o pânico implicava com efeito a desagregação da massa, mas que existiam também, como se podia verificar, por exemplo, observando rebanhos de animais, massas em fuga que, longe de se deslocarem, permaneciam unidas e encontravam nisso um reforço do seu sentimento de massa. "Como é que sabe isso? disse ele então. "Você já foi uma gazela num rebanho em fuga?"


"Histoire d'une vie" (Elias Canetti)


Canetti nunca conseguiu convencer Hermann Broch sobre este ponto. Ele podia meter-se na pele dum poeta latino que foi morrer a Brindisi, há mais de dois mil anos, mas recusava a possibilidade duma psicologia da massa.

Com boas razões, porque um homem na massa não tem psicologia. A sua é aspirada por um outro ser cuja natureza se aproxima muito da mecânica.

Depois há esse outro paralelo, igualmente arrojado, com o mundo animal. O primeiro a usar essa metáfora foi Platão, com o seu Grande Animal. Mas a massa nada tem a ver com essa figura.

O povo platónico é mais ventre do que coração ou cabeça, mas nunca deixa de ser político.

A experiência "traumatizante" que levou Canetti a escrever "Masse et Puissance" é, evidentemente, de outra ordem.

E percebe-se como faz falta uma teoria que explique como em certas circunstâncias os homens podem comportar-se independentemente quer da razão e dos sentimentos, quer dos instintos.

terça-feira, 1 de abril de 2008

A PERSONALIZAÇÃO COOL


Emmanuel Mounier (1905/1950)


"A perfeição do universo pessoal incarnado, então, não é a perfeição de uma ordem, como o querem as filosofias (e todas as políticas) que pensam que o homem poderá um dia totalizar o mundo. Ela é perfeição duma liberdade combatente, e combatendo cerrado. Assim subsiste ela nos próprios fracassos."

"Le Personnalisme" (Emmanuel Mounier)


Curiosamente, num mundo em que a esfera individual e o narcisismo parecem ser o fruto prometido do consumo à medida, a doutrina de Mounier não tem lugar.

Porque há nesta filosofia todo um agonismo ( a pessoa já não sofreria "a natureza da qual emerge", nem saltaria "sob as suas provocações") e um ambiente de tragédia propício a relevar a grandeza do combatente.

Mas, como diz Lipovetsky, "Todos os "cumes" se abatem pouco a pouco, arrastados pela vasta operação de neutralização e banalização sociais. Só a esfera privada parece sair vitoriosa desta apatia; zelar pela própria saúde, preservar a sua situação material, perder os "complexos", esperar que cheguem as férias: viver sem ideal e sem fim transcendente tornou-se possível." (A Era do Vazio)

Está, pois, nos antípodas um Personalismo que nos olha por debaixo das sobrancelhas de Nietzsche.


(José Ames)

NEUROSE GLOBAL


Florbela Espanca (1894/1930)
(na sua certidão de óbito: nevrose)


"Um doente não é um neurótico em si, mas torna-se um porque está envolvido numa situação dada à qual é incapaz de fazer face. A nossa civilização complexa confronta-nos com uma grande variedade de situações. Mesmo um indivíduo que tenha tido uma infância infeliz pode adaptar-se a um certo modo de vida e, se consegue nele manter-se, nunca fará uma neurose. Um jovem sensível virado para a vida interior, interessando-se pela música e pela literatura, teria estado completamente desadaptado numa cidade da fronteira americana do século passado. Teria sido um objecto de ridículo e não teria podido satisfazer os seus interesses. A mesma pessoa na sociedade literária de fim de século de Paris teria gozado duma grande estima e de altas protecções..."

"Principes de Psychanalyse" (Franz Alexander)


Se a neurose é uma resposta à desadaptação, devia ser tão antiga como homem. E nesse sentido abundam os que pensam ser a religião uma neurose colectiva.

Mas a palavra é moderna e os homens de antanho não pensariam decerto que houvesse tal coisa como uma desadaptação. Para isso, foram precisos alguns séculos de elaboração da "natureza humana", culminando no sujeito ocidental.

Quando o homem mal se distinguia do social, que é a sua natureza, é provável que só conhecesse as doenças do corpo e que todas as doenças psíquicas fossem apenas pecados ou manifestações da presença gloriosa de um deus.

A epilepsia de que sofria Júlio César não o diminuía aos olhos dos outros. Era a posse pelo deus que a tornava o mal sagrado, ao mesmo tempo privilégio e terror.