quinta-feira, 30 de abril de 2015


(Afurada

O PANTEÃO

(Le Panthéon de Rome sur une gravure du XVIIe s.)

"Sem, no momento adequado e graças a certas circunstâncias históricas, uma burocracia eclesiástica e politicamente eficaz, dificilmente teríamos hoje quaisquer traços do cristianismo..."


" O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)



Um romance coral como este permite ao seu autor harmonizar o que, à primeira vista,  poderia parecer uma contradição entre o homem e a obra. Ou, por outras palavras, manter a tensão entre os dois pólos, quando ambos são verdadeiros.

O pensamento citado é expresso por Tuzzi, um conselheiro de Estado nos antípodas do nosso Acácio, que leva muito a sério o poder que exerce e o funda numa perspectiva histórica que não pode reunir o consenso. Tuzzi dirige-se a Ulrich, o 'homem sem qualidades', que o 'compreende', como 'compreenderia' quem pensasse o contrário.

A burocracia que teria 'transportado' o Cristianismo até aos nossos dias não corresponde inteiramente à imagem material de um vaso (como na 'Viagem ao centro da Terra', de Henry Levin, quando é expulso pelo Etna) ou de uma nave espacial. A razão disso é que (McLuhan dixit) o 'medium' é a mensagem.

Se a ideia cristã não tivesse sido salva fora do 'aparelho', o que provavelmente teríamos seria um império de um tipo especial (pois se reclamava do espírito), vencido pelo tempo e soterrado para sempre.

O verdadeiro guardião do templo tampouco terá sido o culto e os costumes tradicionais, pois sabemos bem de mais quanto é fácil mudarmos pelas novas ideias e técnicas e, até, pelos novos hábitos...

Pensando bem, a sobrevivência do Cristianismo na 'Era da Técnica' devía de facto maravilhar-nos e causar o mesmo espanto que em nós provoca o Panteão de Marcus Agripa, quase incólume, no centro de Roma, ou Santa Sofia, em Istambul.


quarta-feira, 29 de abril de 2015

(José Ames)

RESISTIR




"É da América que deriva o dito de Lafayette que criou uma comoção ao tempo, que a resistência é o mais sagrado dos deveres."
(Lord Acton)

Um país sem raízes inspira uma velha nação europeia no momento em que os seus filósofos põem em causa a ordem antiga e uma nova classe vai substituindo no poder uma decrépita aristocracia.

Também a guerra da Independência americana não era uma revolta qualquer. Não havia um mundo antigo a que derrubar muralhas com a trombeta de Jericó. Só a potência colonizadora. E a embrionária divisão interna que iria levar à Guerra Civil.

Algumas abstracções filosóficas em França receberam do exemplo do outro lado do Atlântico como que a prova do seu realismo. As situações eram, contudo, muito diferentes. Em França, a Revolução não se pôde 'consolidar' porque encontrou a resistência dos antigos senhores, apesar  das defecções de muitos nobres  (como é o caso do próprio Lafayette) e, sobretudo, a fúria popular, na província, por causa do seu programa ateísta.

Só para um aristocrata 'progressista' (como se diria mais tarde), a resistência podia ser 'o mais sagrado dos deveres'. Para um povo educado pela Igreja Católica, isso não fazia sentido ('dai a César o que é de César'). Mas é preciso atender ao contexto da antiga colónia americana, resistir visa aqui um país estrangeiro. 

Mas a quem se deveria resistir na 'melée' tevolucionária? A Revolução esgotou-se no drama das assembleias que de populares passaram a depender de uma guarda pretoriana e de um poder frenético, em fuga para a frente. Foi à própria Revolução que se tornou um dever sagrado resistir, com o desfecho trágico do Terror.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Sem título

Amarante

 

A HISTÓRIA REPETE-SE

Roger Silverstone

"É precisamente por os 'medias' operarem um desenraizamento da vida quotidiana, uma extirpação da experiência, que a transcendência reivindicada como ainda possível na sociedade contemporânea perde a autenticidade. Por isso, a nossa aptidão para nos interessarmos por universos e indivíduos para além dos que nos estão próximos é - com algumas raras mas inevitáveis excepções - totalmente canalizada e limitada pelos quadros específicos dos 'media'. Estes universos e indivíduos não sobrevivem para lá da difusão das suas imagens. A difusão faz com que sobrevivam apenas através desses quadros."

"A Mediatização da Catástrofe" (Roger Silverstone)

Em relação à transcendência, estaremos mais limitados agora pela difusão dos mídia, ou ganhámos consciência de que não podemos 'saltar a própria sombra' (Steiner)?

Entre nós e o Outro sempre se interpõe o cérebro localizado e 'em rede', ou alguma das suas extensões ou próteses. Fora do seu 'quadro', ou da sua 'caixa", só existe a esperança de que a intuição, a 'visão' ou a revelação não sejam elas próprias 'determinadas' ou sobre-determinadas como diziam os marxistas pela última instância (no caso, o económico). Mas podemos estar certos de que todos os nossos micro ou nanoscópios e todos os nossos Hubbles ou super-telescópios permanecerão assestados para encontrar uma lei no último vestígio metafísico.

Bertrand Russell, o eminente matemático, dizia que a Metafísica foi sempre uma tentativa de compreender o mundo como um todo e que dois impulsos eram fundamentais para isso: o impulso para a ciência e o impulso para...o misticismo.

A lógica não nos permite compreender a transcendência. Mas o 'misticismo' depende da fé que nele depositemos. No melhor dos casos, parece que devia permitir a esperança de compreender ou vir a compreender. No pior, seria só mais uma ilusão a juntar às outras.

Dá a ideia que estamos muito longe dos mídia e da sombra que nos segue por toda a parte, mesmo quando lhe pedimos o distanciamento 'científico'.

Contudo, lancemos um olhar sobre o fenómeno do fanatismo no mundo de hoje. Haverá nele alguma coisa do misticismo de que fala Russell? Ou é a lógica mais primária de um mundo reduzido como uma cabeça jívara?

Esta redução é bem mais mediática do que parece. Porque vive dos mídia, mas fechando-se a toda a 'comunicação'. Só pretende implantar a imagem e reservar-se uma parte crescente do imaginário. É uma mediatização niilista.

A redução fanática traz ao mundo dos espectadores à distância o 'frisson' de uma 'solução final'.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

(José Ames)

SOBRE O VÓRTICE






"Para Portugal tinha objectivos simples: "aquilo que me proponho é fazer viver Portugal habitualmente". Queria instituir uma "ditadura da inteligência", "sem entusiasmo nem heroísmo". A sua preocupação era "fazer baixar a febre política" no país e "reencontrar o equilíbrio, o ritmo habitual". Tencionava "proceder como a Natureza", lentamente. Acima de tudo, não acreditava na ideia do "Estado omnipotente."

"Salazar" (Filipe Ribeiro de Meneses)

Esperávamos compreender o homem pelo seu contexto, mas no caso de Salazar temos, primeiro, de o situar no século XIX, coisa que tinha em comum com os seus mais consequentes opositores.

No seu tempo era possível para muita gente ignorar que tínhamos entrado num período de aceleração histórica. Portugal, estava apenas temporariamente encalhado. Estava pendurado sobre o vórtice do acelerador, mas só agora o compreendemos sem ambiguidade.

O modelo já não podia ser o da Natureza, mas o do completo artifício e da fuga do controlo das mãos do 'aprendiz de feiticeiro'. A 'febre política' propagou-se a toda a sociedade, deixando de ser especificamente política e, às vezes, dir-se-ia mesmo para ser anti-política, porque toda a palavra tende a tornar-se  'frívola' como a 'publicidade'.

Salazar, genialmente dotado para o passo lento dos herbívoros, foi o pastor providencial do rebanho luso e fê-lo atravessar, como numa nuvem mística, os tempos perigosos da intolerância e da guerra. Através da nuvem, ele nunca perdeu o contacto com o que ficava para trás, cada vez mais longe.

O 'viver habitualmente' tem, dada a sua personalidade, uma conotação monástica que agrada ao Portugal dos pobrezinhos. Não consta que Maquiavel fosse leitura de cabeceira. Mas a transformação de um homem tão inteiro e com ideias tão definidas (sei para onde vou) no célebre dinossauro é o melhor exemplo da 'omnipotência do Estado' (ou do poder absoluto).

domingo, 26 de abril de 2015

(José Ames)

CAMUFLAGEM

Lord Acton


"Quando os oficiais franceses estavam de partida, Cooper, de Boston, dirigiu-se-lhes num tom de aviso: "Não deixeis que a vossa esperança seja inflamada pelos nossos triunfos neste terreno virgem. Levareis os nossos sentimentos convosco, mas se tentardes plantá-los num país que está corrompido há séculos, encontrareis obstáculos mais formidáveis do que os nossos. A nossa liberdade foi ganha com sangue; vós tereis que derramá-lo em torrentes antes que a liberdade possa enraizar-se no velho mundo." Adams, depois de ter sido presidente dos Estados Unidos, lamentou amargamente a Revolução que os tornou independentes, pelo exemplo que deu aos Franceses; embora também acreditasse que eles não tinham um único princípio em comum."

(Lord Acton)

Hoje os EUA têm mais do que um princípio em comum com a Europa. Fomos 'aculturados' pelo seu modo de vida e pelo seu cinema e 'entertainment'. Também o país mudou muito e continua a fazê-lo de um modo alucinante, sobretudo graças à tecnologia em que dão cartas, em comparação com o resto do mundo. Será este fenómeno um produto da liberdade dos primeiros tempos? Os Americanos continuam, aparentemente, a pensar que "o indivíduo privado não deve sentir a pressão da autoridade pública, e deve dirigir a sua vida pelas influências que estão dentro de si, não à sua volta." (idem)

Mas a extrema desigualdade (não a desigualdade 'necessária', funcional, de um Piketty) indicia um grande falhanço das primeiras esperanças. Esse falhanço é partilhado com a Europa americanizada.

O dinamismo, de origem tecnológica, da nação americana talvez esteja ligado ao conceito tradicional de liberdade. As ditaduras podem imitar, tornarem-se super-potências financeiras, mas o espírito inventivo foge de tais paragens.

Ora, o desenvolvimento tecnológico, correspondendo embora a um 'progresso' ambíguo, não deixa de alimentar a esperança utópica. Temos a certeza que a cura para o câncro está para relativamente breve e nada nos impede de esperar a justiça, nomeadamente, que as desigualdades mais gritantes não tenham também uma solução 'técnica'. É uma inesperada revisitação do optimismo do 'materialismo histórico'. A lei desse 'processo' ainda não foi formulada, mas a 'intuição' existe.

Nestas condições, não se trata de um princípio. Apenas se reconhece que uma das condições para este futuro radioso é a liberdade do indíviduo, na versão americana. Ofuscações como essa explicam muitos dos erros estratégicos dos USA pelo mundo fora.

Mas é preciso concordar com Hannah Arendt, quando diz que a Revolução americana (levando aqui à hipérbole uma guerra de independência, que é uma revolta, mais do que uma revolução) foi a única bem sucedida da história moderna.

O lamento de Adams foi mais do que justificado em face do Terror. O regime corrupto do velho mundo não foi vencido por essa tentativa de 'tabula rasa', nem mesmo pelo império.

Por isso a 'Ocultação' prossegue com a celebração da famosa tríade, e é a chave da nova-velha França.  O Capitalismo é só um dos nomes dessa camuflagem.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Beja

O ENGENHEIRO




"Como já referi, e como mostrarei no que se segue, a história do rendimento e da riqueza é sempre profundamente política, caótica e imprevisível."

"O Capital no Século XXI" (Thomas Piketty)

A economia sem rendimento nem riqueza é pura ficção. Contudo, não faltam especialistas nesse domínio ficcional. Como o charlatão que não pode conter o riso ao cruzar-se com outro no passeio, não deviam faltar sorrisos cúmplices entre os economistas.

Mas não. Todos levam a sério as suas previsões sobre o 'caos' de Piketty.O autor desta obra que tanto sucesso obteve junto da elite política insiste em juntar a política à economia. Marx nunca se enganou sobre isso, mas, no seu caso, o factor político é rapidamente esquecido para dar lugar à razão histórica, como se sabe. O seu sistema que, abstractamente, procura ir ao encontro de pretensas leis, congela o caos político e introdu-lo, sob outra forma, na própria organização da economia e do Estado.

Piketty não quer ir tão longe e limita-se a confrontar as várias ideologias capitalistas com o resultado prático, essas 'justificações' da desigualdade (no fundo a continuação dos privilégios nominalmente terminados com a Revolução) com o estrondoso falhanço. 

A sua receita é fiscal e nada mais do que isso. Se os ricos ficam mais ricos, numa proporção maior do que o aumento da riqueza nacional, a correcção tem de vir através de maiores impostos sobre o capital. O facto desse Olimpo financeiro ser cada vez mais concentrado, distanciando-o das próprias elites, promete um grande futuro à proposta de Piketty.

O Prometeu que assaltará os céus do Capital não é necessariamente democrático. O problema é o da segurança dos próprios 'olímpicos'. Pede-se um engenheiro, mais do que um reformador.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Sem título

(José Ames)

 

O ESPÍRITO MÓRBIDO

 

"Ele (o homem comum) sempre se preocupou mais com a verdade do que com a consistência. Se vê duas verdades que parecem contradizer-se, ele acolhe as duas e a contradição entre elas."

"Orthodoxy" (G.K.Chesterton)

O homem comum não deveria nunca, então, ceder ao fanatismo. Infelizmente, não é isso o que acontece. Este optimismo de Chesterton parece descender em linha directa do 'bom selvagem' de Rousseau.

Contrariamente a este espírito são e equilibrado atribuído ao 'ordinary man', surge-nos o 'maníaco' que só vê o 'preto e o branco' e é incapaz de viver na contradição aparente, o que o leva a uma vida doutrinada dependente de um qualquer sistema ou ideologia.

Li, não sei onde, que este tipo de contradição deveria ser vivido como um impasse. Impasse reconhecido, embora, que nos impediria um encontro prematuro e ilusório com a verdade. E isto é o espírito socrático, talvez, o mais eminente de toda a filosofia ocidental.

Não é verdade que o 'sátiro' procura levar o interlocutor ao impasse? Para reconhecer, como ele, que as suas opiniões são um pretenso saber.

O espírito mórbido de que falou Chesterton foi, sem dúvida, o gerador das guerras do século XX. Nenhum dos algozes e muito poucas das suas vítimas se lembraram de consultar o seu 'demónio'. Apenas se aconselharam com a razão instrumental, eficaz produtora de ideologia e de armas de guerra.

 

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Rossio (Lisboa)

O RAPTO DE EUROPA


"L'enlèvement d'Europe" (Henri Matisse)


"O Parlamento da Grã-Bretanha pronunciou-se pelo direito de taxar as Colónias em qualquer caso que fosse; e foi com esta questão  precisamente que os Ingleses puseram em movimento a Revolução. O montante da taxa era uma ninharia, mas a exigência era inconsistente com a liberdade, e aos olhos dos colonos foi o suficiente. Foi mais contra o relato de um acto do Parlamento, do que contra qualquer sofrimento que a sua aplicação comportasse, que eles pegaram em armas. Entraram em guerra contra um preâmbulo. Lutaram durante sete anos contra uma declaração."

"Lectures on the French Revolution" (Lord Acton)

Podia dizer-se que os políticos da colónia americana invocaram os princípios da liberdade para defender interesses naturais e legítimos, mas que pouco tinham a ver com esses princípios. É assim que as coisas se passam. Foi o caso da virtude romana antiga que inspirou os jacobinos, mas não o povo da Revolução Francesa, ou o dos soviéticos que nunca leram Marx.

Como interpretar isto? A ideologia das elites acaba por chegar às 'massas' sob uma forma vulgarizada que é reapropriada pelos seus destinatários e aplicada  à vida prática e aos interesses reais do grande número, ou trata-se de um 'contágio', da influência directa do entusiasmo e da capacidade de afirmação dos 'poucos' que se faz sentir na maioria social?

Inclino-me para esta interpretação. É por esse motivo que elites sem verdadeira  cultura e focadas nos seus próprios interesses geram multidões apáticas (mas que procuram seguir, quando podem, o exemplo de cima), desmotivadas, apolíticas.

Será essa uma explicação possível para o que se passa com o projecto europeu?

O 'rapto de Europa' repete-se. Mas sem nenhum deus disfarçado.

terça-feira, 21 de abril de 2015

(José Ames)

O FALSO DEBATE

Lenine lendo o Pravda


"Nas discussões, em geral não se dirigia aos seus oponentes, dirigia-se às testemunhas da discussão. O seu objectivo era, perante as testemunhas da discussão, ridicularizar,desacreditar o seu adversário."

(Vasily Grossman sobre Lenine)

Que técnica tão reveladora, de facto!

Por um lado, não reconhecer a verdade luminosa é indigno da inteligência e é uma atitude que merece o ridículo. Sendo um 'iluminado', o grande líder procedeu em conformidade. Não só nas discussões políticas, mas quando uma decisão mais complexa se apresentava. Com isso a "Revolução" podia queimar etapas (mas soube acrescentar uma, com o célebre 'um passo atrás, dois passos em frente').

Por outro, o oponente não encontra uma verdadeira resposta da outra parte. Como se tudo o que dissesse não fosse mais do que um estereótipo científica e definitivamente julgado que podia ser respondido por um 'atendedor de chamadas'. Este género de anulação do outro faz lembrar, salvas as devidas proporções, que foi assim que começou a desjudaízação, na Alemanha de Hitler.

Interessante seria ver o que aconteceria se o adversário de Lenine 'pagasse na mesma moeda', falando directamente para as testemunhas.

De certa maneira, é o que a televisão faz com todas as reportagens, entrevistas e debates. O diálogo que todos presenciamos é um simulacro, porque toda a palavra e toda a 'acção' são de facto dirigidas para a falsa testemunha (e o falso testemunho) das câmaras.

domingo, 19 de abril de 2015

Lisboa

LOST IN TRANSLATION

"Lost in Translation" (2003-Sofia Coppola)

A despedida, em "Lost in translation", é de antologia.

Ele (Bill Murray) manda parar o táxi, a caminho do aeroporto, para a abraçar, sem testemunhas, não apenas como o companheiro relutante desses dias solitários, numa cidade como Tóquio.

O esboço duma relação sexual esteve sempre presente, como não podia deixar de ser. Mas ele beija-a, retirando a esse beijo tudo o que normalmente anuncia. Como em certos jogos, é um acto que não conta.

Ambos sabem que nada se vai seguir, nem pode seguir-se; mas mesmo assim há uma necessidade nesse beijo que não é da ordem do amor. Como se o último homem e a última mulher se encontrassem.

O título do filme é muito feliz. Traduzida, a necessidade desse beijo perde-se.

sábado, 18 de abril de 2015

"Críticos" (José Ames)

DESCONSIDERAR



No sexto episódio do "Decálogo", de K. Kieslowski, Tomek é um "peeping Tom" seráfico, sem a perversidade do herói do filme de Michael Power (1960).

Se aponta o seu telescópio para a vizinha de costumes livres, se lhe intercepta a correspondência (ele trabalha no balcão dos Correios), se toma a sua conta a distribuição do leite só para a ver de perto, é porque a ama. Afinal só tem dezanove anos.

Mas o seu ídolo não acredita no amor e troça da sua paixão, quando um encontro em casa dela se propicia. Tomek não resiste à decepção e corta os pulsos.

A paixão não precisa da realidade para existir. E é um crime responder à absoluta sinceridade com o cinismo.

A mulher, depois de esperar o seu regresso do hospital, procura-o no emprego para lhe dizer que ele é que tinha razão. Mas ele já não precisa de a espiar.

Pobre Tomek se não descobrir um astro mais digno!

sexta-feira, 17 de abril de 2015


Largo de Camões (Lisboa)

A FALTA DE LUZES

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"Mas a maioria decidiu assim. Contam-se os votos, não se pesam; não se pode esperar melhor destas assembleias públicas em que a mais chocante desigualdade está na própria igualdade, pois que, sem terem as mesmas luzes, todos os membros têm a mesma autoridade."

"Carta a Arrius" (Plínio, o Jovem)

Seria um escândalo para a razão que a democracia fosse isto. Na verdade,  as decisões de uma assembleia moderna com verdadeiro poder, não resultam de uma soma 'comicieira', nem de um simples plesbicito. Tal como Lenine inventou o 'centralismo democrático' para o voto espontâneo e quase sempre 'mal informado' ser controlado pelo comité central.

Hoje, os chamados 'lobbies' e a mancebia entre cargos políticos e interesses económicos, a partidarização de toda a vida política e a crescente indiferença dos cidadãos garantem que as decisões ao mais alto nível não são 'democráticas'. Quando muito mantém-se a designação porque a 'árvore democrática' não  pode gerar frutos de outra árvore.

Mas tudo isso depende de um tácito consenso inter-classista, cada vez menos genuíno à medida que os cidadãos se afastam da política.

Há, porém, uma limitação à democracia que pode ser defendida com motivos democráticos, que é a daqueles que, como James Madison (1751/1836), autor da "Bill of Rights", vêem na constituição o cerne da democracia, com a consequência paradoxal que o órgão que a legislou (embora sob a forma 'constituinte') ter de se lhe subordinar em todas as futuras decisões. Um texto minimalista seria, pois, necessário para não paralisar a actividade política. O problema é que a constituição não anda longe de representar o que Marx chamava os interesses da classe dominante (mas é claro que os 'integralistas' pretendem eliminar do texto toda a ambiguidade 'republicana'. Segundo Fareed Zakaria, o que diferencia os governos ocidentais dos do resto do mundo, não é a democracia, mas o constitucionalismo liberal (Peter Mair).

Plínio não encontraria, assim, tantas razões para o seu lamento. Apesar de haver um ideal de democracia que é claramente utópico, o regime que hoje tem o nome tradicional tem o mérito de dividir o poder, o que pode não chegar para dizer que o povo chegou ao poder, mas que nos evita os piores males da política...



quinta-feira, 16 de abril de 2015

(José Ames)

O ESTADO TEOLÓGICO

Jiang Zemin 


"Sabe-se que Deng disse, na sua jornada de 1992 pelo Sul, que o socialismo levará gerações, dezenas de gerações. Eu sou engenheiro. Fiz um cálculo de que houve 78 gerações desde Confúcio até agora. Deng disse que o socialismo levará outro tanto. (Jiang Zemin)"

"On China" (Henry Kissinger)

Sabe-se como os chineses são um povo paciente. O cálculo de Jiang Zemin transporta a esperança no Socialismo para uma época de que nada podemos saber, equiparando a fé na sua construção à dos Cristãos no regresso de Cristo, depois dos tempos da Parúsia, ou seja o seu postergamento para 'o fim dos tempos'.

Deng, sem se pronunciar sobre as consequências dessa substituição, simplesmente  trocou um ideal político por um ideal religioso 'intemporal'.

Na realidade, trata-se de uma solução congenial ao carácter, por nós Ocidentais, atribuído à população chinesa. Daí o passe de mágica do seu líder ser, na verdade, um retorno à posição de equilíbrio, depois da 'bicicleta da Revolução' importada por Mao ter parado.

Quando se mudam assim as condicionantes temporais, não há nada que possa fazer surgir uma contradição. Nada de imprevisto que possa acontecer.

Já era assim no 'estado teológico', como diz Comte.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Santarém (José Ames)

LOBOS E CORDEIROS

Camille Desmoulins (1760/1794)



Camille Desmoulins, que participava nos Estados gerais de 1789, escreve ao pai: "Os Bretões estão desde já em vias de pôr em execução alguns artigos dos seus cadernos de reivindicações. Eles matam os pombos e a caça. Cinquenta jovens entregam-se, na região precisamente, a uma devastação sem paralelo entre lebres e coelhos. Diz-se que teriam massacrado sob o olhar dos guardas quarenta e cinco mil peças de caça na planície de Saint-Germain."

(citado por Elias Canetti, em "Masse et Puissance")



Este banho de sangue entre a caça, que constituía um dos privilégios da nobreza abolido naquele ano, prenuncia, por assim dizer, os rios de sangue do Terror.

É tempo dos cordeiros devorarem os lobos, comenta Canetti.

Compreender-se-ia a Revolução Francesa sem este apólogo de lobos e cordeiros, que a "revolução dos escravos", ao recuar, tornou o único cenário visível?

terça-feira, 14 de abril de 2015

(José Ames)

A NAVE DOS LOUCOS


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"O Cristão admite que o universo é multifacetado e mesmo miscelânico, tal como o homem são sabe que é complexo. O homem são sabe que ele próprio tem um toque da fera, um toque do diabo, um toque do santo, um toque do cidadão. E não só isso, o homem realmente são sabe que tem um toque do louco. Mas o mundo materialista é bastante simples e sólido, tal como o louco está completamente seguro de que é são. O materialista está seguro de que a história tem sido simplesmente um encadeamento de causas (...)"

"Orthodoxy" (G.K.Chesterton)

Para sermos justos com os loucos, materialistas ou não, devemos reconhecer que todo o chamado progresso científico ao longo da história foi o resultado de incansáveis tentativas para tornar simples o que parece complexo. Já o "Discurso do Método" falava em dividir as dificuldades. Mas claro que hoje estamos mais atentos ao que se perde com uma abordagem analítica.

Dizer, por exemplo, que a 'história é a história da luta de classes' pressupõe que se captou a essência do 'processo histórico'. Mas a própria noção de processo ressente-se da sua origem anatómica. O termo processo histórico, em relação à história real, está na mesma proporção que existe entre o morto e o vivo.

Não há dúvida, porém, que só assim conseguimos 'avançar'. Perdemos o essencial, mas conseguimos desenvolvermo-nos o suficiente para as necessidades tidas como mais urgentes (senão adoptarmos a visão do fim-do-mundo, como certos radicais islamistas, caso em que, evidentemente, não nos interessaria 'avançar' para lado nenhum).

Pode-se concluir, pois, da ideia chestertoniana que a sanidade mental pesa muito menos no nosso mundo do que pensávamos. E isso vai muito para além de reconhecermos que todos temos o 'grão de loucura' a que se referia Pessoa.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Parque das Nações (Lisboa)

O PATRÃO CONDESCENDENTE

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e0/Tuscum_des_Plinius_Schninkel_AA2.jpg

"(...) e desfruto do seu encanto singular, sobretudo no tempo das Saturnais, quando o resto da casa vibra com a licença dos gritos de alegria, autorizados nesses dias. Assim já não sou um obstáculo aos divertimentos dos meus escravos, como eles o não são aos meus estudos."

Plínio, o Jovem ("Carta a Gallus")

Num apartado da sua villa do Laurentino, o 'dominus' recolhe-se,  entregue aos seus hábitos literários, a que hoje ninguém chamaria estudos, porque passaram a ser 'hobbies', modalidades do lazer, coisa sem pretensões à 'imortalidade' ao jeito dos romanos. Os apartamentos principais são deixados ao pessoal doméstico para, nos poucos dias reservados para isso, 'brincarem' aos patrões. Plínio refere-se a eles, em toda a inocência, como os seus escravos. Precisamente no momento em que reina o carnaval entre a domesticidade, o 'dominus' estuda com toda a seriedade possível, mas não sem benevolência para com a licença protegida pelos deuses.

Os dias que hoje dedicamos às minorias, aos mortos ou às causas esquecidas (esquecidas tanto mais quanto as 'compensamos' com o 'seu' dia) vêm certamente desta tradição das saturnais e do 'carne vale'. Mas não têm como esta o selo da divindade, pelo que são pouco eficazes. A ocasional  inversão dos poderes na linguagem é uma liberdade como outras. Ninguém reivindica o dia da sua 'espécie' para aliviar a pressão de uma condição eterna.

Uma das coisas que vieram subverter a boa consciência destes costumes foi, sem dúvida, a admiração pelos Gregos. Um escravo que conhecia o seu Homero melhor do que o senhor, o qual, no entanto, afirmava muito da sua superioridade justamente nos 'estudos', punha em causa o orgulho patrício.

Mas esta conquista dos vencedores latinos pelos seus escravos e 'libertos' é conhecida, e ilustra bem a dialéctica hegeliana do senhor e do escravo.


domingo, 12 de abril de 2015


(José Ames)

O FRACASSO POLÍTICO




"Estar em paz consigo mesma, não sei o que isso é; eu só tenho sonhos trágicos, ou ódio ou amor e só acredito no fracasso político."
(Marguerite Duras)


O fracasso político é necessário, porque mesmo quando pomos o melhor de nós na acção, não podemos medir o seu sucesso por nenhum critério exterior.

Mergulhamos e não podemos iluminar mais do que o fundo sobre que nos deslocamos.

Mas se não se tiverem ilusões, também não ficaremos aquém de nenhuma marca.

A equanimidade procurada pelos estóicos obtinha-se à custa do mundo e significava a figadal rejeição da política pela filosofia grega.

A paz consigo mesmo filia-se nessa atitude.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

(Évora)

'TABULA RASA'








"Não, nada disso é a história da Revolução; é a história dos partidos que a dilaceraram, e que queriam destruí-la, ou confiscá-la em seu proveito."
"Histoire d'un paysan" (Erckmann-Chatrian)

Longe de se desiludirem com a violência do 'parto' revolucionário, como diria Marx, esta copiosa parceria de alsacianos, Émile Erckmann e Alexandre Chatrian, em 1867, iniciou a publicação de um folhetim intitulado "Histoire d'un paysan'. Pretende ser a visão do bom senso popular, acima dos partidos.

Começam por enumerar os vícios do antigo regime: "(...) com as suas 'lettres de cachet' (cartas régias com ordem de prisão), o seu governo de livre arbítrio, o seu dízimo, o trabalho forçado (corvées), os seus jurados (jurandes), as suas barreiras, as suas alfândegas interiores, os seus capuchinhos imundos mendigando de porta em porta, os seus privilégios abomináveis, a sua nobreza e o seu clero, que possuíam, só eles, dois terços do território da França!" Enfim, um quadro reivindicativo digno de dois 'burgueses progressistas', ainda de acordo com o profeta do 'Das Kapital'.

Para acabarem, como se percebe pela citação, por atribuir a autofagia do Terror à luta entre os partidos. Tal como, hoje, os nostálgicos do regime soviético, insistem em distinguir a Revolução russa do Terror estalinista (quando chegam a reconhecer a sua realidade histórica e simplesmente não o justificam pela emergência revolucionária), sem se perguntarem se a violência do nascimento da  'sociedade nova', se podia evaporar sem deixar rasto, sem modificar a natureza do que foi mais 'moldado' a um leito de Procusta artificial do que verdadeiramente criado.

Os nossos alsacianos dedicam-se, nesta obra, a enaltecer o mito de uma 'tabula rasa' sem sangue, culpando uma instituição tão característica da democracia moderna como são os partidos, pelo pavoroso desvio do ideal.

Um pormenor curioso no requisitório dos autores contra o 'Ancien Régime' é o seu ódio à imundice dos frades pedintes, que são tratados quase ao nível dos impostos e das corveias. É, na realidade, uma atitude contra o Estado da classe vencida, comparado com a vantagem das novas liberdades para a burgesia triunfante. E não há forma de negar o progresso quando se fazem comparações destas.

Mas o barão de Turelure, na peça de Paul Claudel ('L'Otage') não deixa de ser o verdadeiro rosto do novo regime.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

(José Ames)

ASTRONOMIA


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"(...) já  que  um  homem  quando  dorme  está  mais  próximo
da  astronomia  que  da  sua cama
propriamente dita."
"Viagem à Índia" (Gonçalo M. Tavares)


É raro pensarmos nisso, mas o que é feito de 'nós' durante o sono? É muito estranho que só vejamos nisso o cinema interior ou a mina freudiana dos sonhos.

Tudo à nossa volta são pessoas, nem sempre muito despertas, é verdade, senão sonâmbulas, e as nossas tentativas de  organização, cada vez mais complexas à medida que o sistema que formamos cresce em inter-relações.

Segismund Freud deu uma grande ajuda na ocultação do fenómeno (não há 'revelação', sem escondermos uma parte do mundo 'debaixo do tapete' ou no 'armário dos esqueletos). Foi um esforço de racionalização genial, e  a organização dependia disso.

Mas aconteceu com o sono o que desde sempre acontece com a morte, a grande incompatibilidade com a apolínea razão. Evacuámos a morte (pela Cloaca Maxima do hiper-hiper sistema que gere o inconsciente, não-freudiano, naturalmente), como evacuámos o seu putativo 'irmão' ou também dito 'vestíbulo' da dita.

A imagem astronómica de GMT é perfeita. Mas a 'astronomia' aparece em lugar de quê?