sábado, 31 de julho de 2010


Reserva do Tejo (José Ames)

IMAGENS E IDEAIS





"A palavra inglesa "image", que vem do Latim imago, está relacionada com a palavra latina imitari, que significa 'imitar'. De acordo com as definições comuns dos dicionários americanos, uma imagem é uma imitação artificial ou uma representação da forma externa de um objecto, especialmente de uma pessoa. As imagens agora expulsam os ideais. Mas um ideal é muito mais difícil de definir. É, suponho que agora diríamos, uma palavra antiquada e uma antiquada noção. 'Ideal' está de algum modo relacionado com 'ideia'. Os nossos dicionários definem-na como a concepção de algo na sua mais excelente ou perfeita forma – algo que existe só no espírito."

"The Image" (Daniel Boorstin)


Isto tornou-se tanto assim que os idealistas não estão longe de vir a ter uma qualquer explicação psiquiátrica (curiosamente, não era esse o tratamento dos dissidentes na ex-URSS?).

A norma passou a ser a imagem, isto é, algo que nos serve e que se tem de adaptar a nós, ao invés do ideal. "Se a imagem duma empresa ou a imagem de um homem sobre si mesmo não é útil, é descartada. Uma outra pode servir melhor. Uma imagem é feita por encomenda, à nossa medida. Um ideal, pelo contrário, tem direitos sobre nós. Não nos serve; servimo-lo nós. Se tivermos dificuldade em alcançá-lo, assumimos que o defeito é nosso e não do ideal."
(ibidem)

Houve, claro, uma revolução silenciosa e insidiosa nas nossas mentes, por força do novo contexto tecnológico.

Mas mesmo sem a Revolução Gráfica, como lhe chama Boorstin, o idealismo sofreu um rude golpe, quando os ideais (que existem só no espírito) foram identificados ou confundidos com a ordem dos factos. Foi assim no país em que comecei por falar, que era tão perfeito e tão ideal que só a loucura (ou a traição) poderia explicar que não se tivesse a mesma opinião.

Aqui, também, o ideal se tinha transformado em imagem.

sexta-feira, 30 de julho de 2010


(José Ames)

A FORÇA DO MEIO


As imagens e os seus factos



A mediatização dos incêndios florestais terá a vantagem de sensibilizar os descuidados que deixam uma garrafa no mato ou que insistem em fumar nesse paiol de pólvora.

Mas, em contrapartida, faz de milhares de pessoas normais espectadores impotentes, com as consequências para a saúde duma frustração que se repete diariamente, transformando os dias de verão num inferno também para a retaguarda dos bombeiros.

Além disso, dá a alguns pirómanos (os que não são pagos para atearem os fogos) a projecção nacional dum cataclismo que veio pelas suas mãos.

Sem a televisão, temos um fogo com todas as suas consequências deploráveis. Com o tempo de antena, conferimos qualquer coisa de satânico ao incendiário e ao inferno por si criado.

Quando os incêndios começam ainda de noite, não se pode culpar o sol.

É tempo de percebermos que as imagens no espaço público criam factos e devem ser por isso consideradas “forças produtivas”, para o bem e para o mal.

quinta-feira, 29 de julho de 2010


Alcácer do Sal (José Ames)

A ORIGEM


O quarto de Van Gogh


"Há que traçar uma nítida linha de demarcações entre o problema da teologia e o da religiosidade. A propósito da teologia há que ter em consideração a sua constante dependência da filosofia e, em geral, da correspondente consciência teorética. Até à data a teologia não encontrou todavia uma posição originária básica correspondente na ordem teórica assumível como realmente de acordo com a originalidade do seu objecto."


"Estudos sobre mística medieval" (Martin Heidegger)


Descodificando: a teologia não é diferente de toda a teoria, mesmo da teoria científica. Embora esta assuma, normalmente, um acordo com o seu objecto, na medida em que ele responde às perguntas que a ciência lhe faz.

Nada disto é uma caução sobre a originalidade do dito.

A experiência mística é, evidentemente, mais problemática num contexto dominado pelo questionário científico. É só por isso que a questão da sua originalidade nos parece mais relevante do que, digamos, o da mesa em que escrevo.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

OS SOFISTAS





"(…) e tu próprio sabes que os homens mais poderosos e os mais consideráveis dentro dos Estados têm vergonha de escrever discursos e de deixar escritos, com receio de passarem por sofistas junto da posteridade."


"Fedro" (Platão)


A ideia de ganhar uma fama justa e de deixar um nome para os que vierem a seguir é uma espécie de imortalidade que a nossa época troca, de bom grado, pela celebridade de um minuto na televisão. E isto por puro bom senso, visto que não acredita numa memória mais longa, nem em que o indivíduo deva viver uma vida exemplar, em vez de viver a sua própria vida como a coisa mais original que existe.

O desprestígio dos sofistas diz muito sobre um povo "tagarela" que levou a arte da palavra a alturas nunca vistas antes nem depois. Com ele, o nosso cérebro experimentou uma revolução da linguagem.

Os nossos políticos não têm já que temer o parecerem-se com os sofistas no que escrevem ou deixam escrito. Pois toda a arte política precisa do sofisma. Escrever sobre a política, sem ser para deixar um nome, ou para levar a sofística a outro plano é raro. Tão raro como haver corcundas que não sejam inteligentes (Casanova dixit).

terça-feira, 27 de julho de 2010


Bath (José Ames)

A GAZUA DE JACOB


Esaú e Jacob


"O famoso episódio de Jacob que, de acordo com a mãe Rebeca, se traveste com as roupas do irmão Esaú para pedir a Isaac cego a bênção paterna, ensina que esta era muito mais importante que a herança. Pode parecer-nos absurda a sequência daquele engano. Esaú vai ter com o pai e fica a saber do subterfúgio de Jacob. Então por duas vezes pede-lhe: "Abençoa-me também a mim, pai." (Gn 27,34-38) e Isaac cala-se. Há uma só bênção, ainda que tenha dois filhos, somente a um pertence a solene invocação de augúrio e de protecção contida nos versículos 28 e 29 do capítulo 27 do livro Bereshìt/Génesis."


"Caroço de azeitona" (Erri de Luca)


O episódio é tão estranho que parece ter sido escrito só para mostrar a valor da palavra e do gesto simbólico. Tratando-se de signos que tão facilmente se desfazem ou se repetem, era preciso uma história que, pelo contrário, mostrasse que certas palavras e certos gestos são irreversíveis e não se podem repetir porque a história sagrada tem uma economia onde a palavra é toda a acção, como no teatro.

Mas ocorre-me o célebre "words, words, words" hamletiano que parece dizer o contrário. Mas é um caso da palavra dentro da palavra. O destinatário da frase é Polónio, o ridículo camareiro ( e pai de Ofélia). Ao dizer a Polónio (que não está longe de considerar o príncipe louco) que aquilo que está a ler são apenas palavras, é como se o expulsasse do drama, prefigurando a morte do camareiro, escondido atrás do reposteiro, às mãos de Hamlet.

E Isaac cala-se. Não estamos já na ordem do discurso e dos argumentos, mas em plena narrativa do que já foi escrito antes de acontecer.

segunda-feira, 26 de julho de 2010


(José Ames)

O ESPÍRITO DAS SELECÇÕES



"Não há melhor chave do que a ascensão de 'The Reader's Digest' para a dissolução das formas, para o incremento da qualidade de 'segunda-mão' da nossa experiência na América do século vinte. Esta, a revista mais popular nos Estados Unidos, apresentou-se não como um 'original'. Mas como um resumo. A sombra vende mais do que a substância. Encurtar e resumir não é mais um dispositivo para levar o leitor até um original que lhe dará aquilo que ele realmente quer. O próprio resumo é o que ele quer. A sombra tornou-se a substância."

"The Image" (Daniel Boorstin)


Para além do "desaparecimento" do original, quando as cópias atingiram o grau de perfeição que se sabe, num processo já analisado por Benjamin, há evidentemente um entendimento da cultura como algo cuja essência se pode extrair num tempo cada vez mais curto. Talvez isto prepare o "download" directo nos nossos cérebros de tudo o que é preciso saber.

Os inúmeros que acham aborrecidas e inúteis as digressões de que grandes autores não abdicam para introduzir um tema, o intricado matagal da frase proustiana, são os mesmos que se rendem ao poder da imagem e que consideram que uma fotografia descreve muito melhor o vale do Indre do que o fez Balzac ao longo de algumas páginas.

O problema é que nós não pensamos por imagens mas, de facto, discorremos sobre tudo e nada através dum monólogo que está mais perto da fala do príncipe da Dinamarca do que do cinema, mesmo dialéctico, de Eisenstein.

O resumo das obras persegue o instantâneo utópico da imagem. Ler assim é turismo e só serve para dizermos que "também estivemos lá".

sábado, 24 de julho de 2010


Lavadores (José Ames)

O PLANETA DOS MACACOS


Regresso ao planeta dos macacos


Darwin não emitiu um juízo ético sobre o facto dos mais bem adaptados, na Natureza, eliminarem os que não se adaptam, conforme uma lei inexorável.

Esta lei nunca deverá ser entendida, porém, como o triunfo dos mais fortes, a não ser que se queira incluir na definição de força a inteligência, a memória, a capacidade estratégica e monumental, etc, etc. O homem nunca teve o músculo dos dinossauros e foram estes que não puderam adaptar-se.

Por isso todas as teorias sobre a Mão Invisível reguladora, ou a bondade espontânea do mercado ou da modernização às cegas (que se resume à conquista de novos dentes e de novas garras no “struggle for life”) típicas do chamado neo-liberalismo, me fazem sempre desejar o aparecimento dum novo Darwin que separasse as águas e pudesse estabelecer que a superioridade humana não perde com a sua descendência do símio, mas com o regresso ao planeta dos macacos.

E é o caso que o que parece anti-económico (por exemplo, a Segurança Social) pode ser tão darwiniano como o período de aleitação nos mamíferos.

sexta-feira, 23 de julho de 2010


(José Ames)

A SEMENTE


O profeta Isaías (Miguel Ângelo)


"Só as mulheres, as mães, sabem o que é o verbo esperar. O género masculino não tem constância nem corpo para hospedar esperas. Sinto de novo a agravante de ignorar fisicamente a voz do verbo esperar. Não por impaciência, mas por falta de capacidade: nem mesmo durante as febres de malária me acontecia recorrer ao repertório das fantasias de me curar, de estar à espera de."

"Caroço de azeitona" (Erri de Luca)


Aqui está uma daquelas diferenças que é "correcto" ignorar, em nome da teoria dos direitos.

O homem também espera, mas nada tem para essa esperança além do espírito. Porque "quem tem no seu corpo os recursos para conceber esperas" sabe o que é esperar Deus como Isaías esperou: "Felizes aqueles que o esperam." (Is. 30,18)

A esperança entranhada não tem nada de abstracto ou de ideal. A metáfora da terra é a que melhor dá conta disso. Vê-se (sente-se) crescer. Enquanto o homem espera como se espera no Inverno, sem sinais.

A aproximação que faz Erri de Luca entre a espera religiosa, entre os Hebreus, e a maternidade é mediada pelo simbolismo da terra: "Para a antiga escritura trabalhar a terra e servir a terra são a mesma palavra, a mesma solicitude que é devida ao sagrado." (ibidem)

quinta-feira, 22 de julho de 2010


Praia da Ursa (José Ames)

O TURISTA



"O turista vai atrás da caricatura; agentes de viagem em casa e balcões de turismo no estrangeiro só têm que agradecer. O turista é raro gostar do autêntico (para ele muitas vezes ininteligível) produto da cultura estrangeira; prefere as suas próprias expectativas provincianas."

"The Image" (Daniel Boorstin)


O "star system" inventado pelo famoso Baedeker (de Karl Baedeker, 1801/1859, o guia que andava nas mãos de Miss Honeychurch em "A room with a view") e depois imitado por todos os guias de viagem transformou a aventura, o encontro com o desconhecido numa espécie de marcação de ponto, um previsível "rally-paper" com passagens obrigatórias e o imprescindível registo hoteleiro e fotográfico que atestam a realidade da deslocação.

"O turista americano no Japão procura menos o que é japonês do que o ajaponesado. Ele quer acreditar que as gueixas são apenas estranhas prostitutas orientais; é-lhe quase impossível imaginar que possa ser qualquer outra coisa. No final de contas, ele não gastou todo aquele dinheiro nem fez todo esse percurso para fazerem dele parvo." (ibidem)

Este espírito mais depressa se desiludiria com uma experiência verdadeira do que é o Japão do que com algo um pouco aquém do cliché.

A verdade é que se vai ao encontro do que já se sabe (os mitos sobre certos lugares "fabulosos" ou envoltos em "mistério"). E o que sobra de autêntico na experiência do turista é o "azar", aquilo que de todo em todo não pode ser previsto nem programado. "Deliverance" (1972 – John Boorman) mostra como isso acontece.

quarta-feira, 21 de julho de 2010


(José Ames)

PROMESSAS





“Os grandes conflitos consistem, mais do que os pequenos,

de imaginação; a dos povos faz algumas vezes só por si a guerra civil."

Cardeal de Retz (Memórias)


Há que fazer, à partida, uma escolha entre a política e a moral. E quem preferir dizer sempre a verdade, em todas as circunstâncias, e ser sempre coerente com o que disse, não deve fazer política.

Porque, pelo menos em democracia, todos se sentindo obrigados a fazer promessas, ninguém pode responder pelo futuro. É natural, além do mais, que quanto mais um homem se envolve na atmosfera dum partido e na engrenagem do poder, mais está sujeito a iludir-se sobre o que realmente pode. Daí que todos tenham que mentir, e alguns o possam fazer com a melhor das consciências.

Já Platão admitia a necessidade em que o médico algumas vezes se via de ter de mentir a um doente (ou ocultar-lhe a verdade) e que para a imaginação colectiva (que está para a razão como a doença está para a saúde) é mais eficaz o uso das fábulas do que a verdade crua.

Por isso, quando me dizem que determinado político é desonesto só porque não faz hoje aquilo que prometeu ontem, parece-me que mesmo as pessoas honestas, naquele sentido, e bem intencionadas, precisam de recorrer à demagogia, que é uma espécie de combustível da democracia.

Mas não há nenhum erro causado pela demagogia que a força maior ou a demagogia contrária não possam corrigir.

terça-feira, 20 de julho de 2010


Porto (José Ames)

AS TRÊS NOITES DE EVA


The lady Eve


Em “The Lady Eve” (Preston Sturges-1941), há duas ideias. Uma é que no amor há sempre um leigo e uma especialista. A mulher vê, de muito longe, os caminhos da ingenuidade masculina. Qualquer que seja o artifício, o chamado sexo forte nada lhe pode ocultar do seu desejo e da sua fraqueza.

Tinha que ser assim, uma vez que Eva está associada à malícia da serpente, de quem se tornou aliada e nunca vítima inconsciente.

Ao lado deste ser prismático e complexo, o ofiologista encarnado por Henry Fonda faz a pobre figura dum especialista inculto que ignora tudo dos símbolos e das várias metamorfoses reptilianas.

A outra ideia é a de que se pode sempre abrir os olhos a um néscio, dando-lhe precisamente aquilo que ele mais deseja.

Barbara Stanwick dedica-se ao jogo em alto mar, seduzindo os ricaços e singrando na batota. Henry apaixona-se por esta outra serpente, mas não aguenta a revelação do seu pouco ortodoxo modo de vida.

Para se vingar (ou atingir os seus fins), Barbara volta a aparecer-lhe, disfarçada em lady, com “british accent” e tudo. Mas ai! do pobre Henry! Na própria noite de núpcias, o caro ofídio-fêmea sente-se no dever de confessar-lhe os ininterruptos casos amorosos, a ponto do infeliz ter de fugir do comboio a meio da noite, para se meter no primeiro transatlântico, onde, naturalmente, cai nos braços da nossa corsária, cuja desonestidade subitamente é nada ( comparada com a infidelidade da sua sósia).

Atrás de mim virá, quem de mim bom fará.

segunda-feira, 19 de julho de 2010


(José Ames)

ABISMOS


Parménides de Eleia (cerca de 530 a.C. - 460 a.C.)


"Heidegger tenta elucidar a afirmação de Parménides segundo o qual o pensamento e o ser são um só. Tenta definir a imagem do homem que a equação assim estabelecida implica. Para o fazer recorre à 'poesia pensante' do segundo estásimo da 'Antígona', que constitui só por si, um exemplo mais de 'pensamento [no interior] do ser'. Surge então uma palavra que estilhaça à partida todas as normas habituais de questionamento e de definição – a palavra deinoieron. O homem é 'o mais estranho', o 'extremamente inquietante'. Estão presentes nele o que é último e o que é mais abissalmente primeiro, ao mesmo tempo que só à 'intuição poética' tal dualidade se revela. Só a língua da antiga Hélade, por muito longe que esteja já do 'Ser' primordial, pode atravessar as antinomias inertes e falsas da nossa lógica."


"Antígonas" (George Steiner)


Um vestígio do romantismo alemão esta invocação do passado Grego, "por mais longe que esteja já do Ser", esta fundação da verdade na intuição poética?

Como um dos mais prolixos e obscuros filósofos que conheço, Heidegger justifica esta interpelação do "método". Por outro lado, como poderíamos confiar na razão apenas para sondar os abismos primordiais, onde o mito é rei por definição?

Nenhuma definição, certamente, pode incluir 'o mais estranho'. Nesse sentido, a contradição lógica fica muito aquém do desafio. Há muitas definições e o homem não pode ser definido. No fundo, porque, realmente, não pode saltar sobre o pensamento, como não pode saltar sobre a própria sombra.

É possível por isso que o mais familiar seja ao mesmo tempo "o mais inquietante".


domingo, 18 de julho de 2010


Guimarães (José Ames)

CELEBRIDADES



"Um cartoon do 'New Yorker' deu-nos o espírito da coisa. Um pai e o seu jovem filho saem do cinema onde acabavam de ver 'The Spirit of St. Louis'. 'Se toda a gente pensava que aquilo que ele fez era tão maravilhoso' pergunta o rapaz ao pai, 'como é que ele nunca se tornou famoso?"

"The Image" (Daniel Boorstin)


O filme, com James Stewart, relata a história de Charles Lindberg, que foi uma espécie de herói nacional, ao atravessar sem escala o Atlântico, em 1927, no seu avião mono-motor.

"O 'New Yorker', um modelo de sobriedade jornalística, dedicou-lhe a totalidade das suas primeiras cinco páginas", e durante os quinze anos seguintes, Lindbergh nunca deixou de merecer a atenção da imprensa, primeiro, com o rapto do filho, que apaixonou a América e depois com as suas desastradas incursões na política. Mas a seguir, a estrela desapareceu como se nunca tivesse chegado a existir.

Para Boorstin, é isso que caracteriza as celebridades, a de serem, pleonasticamente, famosas durante um tempo. Quanto à raça inspiradora dos heróis, sofreu o destino dos Neanderthal e não pode servir, como as celebridades, de espelho da nossa nulidade.

O rapazinho vivia como a maioria de nós no presente apenas, o que é viver fora do tempo pensado. Um facto tão revelador dos costumes do seu país e da maneira de pensar das pessoas era para ele tão desconhecido que podia passar por espontâneo e pela própria natureza das coisas. A maquinaria da celebridade " multiplica e amplia a nossa própria sombra." (ibidem)

sexta-feira, 16 de julho de 2010


(José Ames)

O LUGAR DO SER



"O irracional não é o que antes de toda a racionalidade se oferece como pletora da diversidade. O momento decisivo não é o da visibilidade e da impossibilidade de domínio teórico, da queda na pletora, senão o da exclusão que nunca abranda no seu avanço de particularidades e singularizações a partir da forma e o vazio potenciado das mesmas."

"Estudos sobre Mística Medieval" (Martin Heidegger)


Exclusão é a palavra-chave. Não há objecto nem objectividade porque não há forma geral em que a essência do objecto se determine. Há apenas proliferação de formas que não se estruturam e que não deixam a aranha da razão tecer a sua teia.

Qual é a diferença entre isto e o que Heidegger chama de pletora? Podemos pensar numa ilha onde brilha a ordem no meio do caos. Mas, precisamente, se existe um ponto de apoio para a razão, o caos deixou de existir, para dar lugar a uma "imagem". Ele só surge como algo que não se domina teoricamente muito mais tarde, quando a razão extrai da imagem o particular.

Claro que nada disto nos diz algo sobre a "realidade". E Heidegger, perseguindo a experiência primordial e a mística autêntica, nunca sai da linguagem.

quinta-feira, 15 de julho de 2010


Reserva do Tejo (José Ames)

A COMÉDIA HUMANA


"Le Carrosse d'or" (1952-Jean Renoir)


"- E não pode o príncipe arranjar-lhe um marido?

- Ele, na verdade, arranjou-lhe um tenente, mas ela não quer ouvir falar sequer em ninguém abaixo do posto de major."

"Mémoires" (Casanova)


A amante do príncipe Charles de Biron, filho mais novo do Duque de Courtland, Cavaleiro da Ordem de S. Alexandre Newski, tem do que é devido a um príncipe uma ideia mais "exigente" do que ele. Admitamos que nisso seja movida menos pelo sentido das conveniências do que pelo interesse próprio. Por outro lado, tornar as coisas mais difíceis, permite-lhe continuar com o augusto amante por quem, talvez, se tenha deveras afeiçoado.

Há uma maneira cínica de ver esta situação que degrada todas as personagens e que se resume na própria anedota contada por Casanova.

Mas, este mundo visto à altura com que Tati filmou aquelas cúbicas divisórias em "Playtime" não tem uma verdadeira hierarquia. São apenas comediantes. Lembram-se em "Le Carrosse d'or", o nobre libertando-se da peruca diante de Ana Magnani?

quarta-feira, 14 de julho de 2010


(José Ames)

MÀ NON È FANATICO


http://silvioirio.files.wordpress.com


"Si, la ama, mà non è fanático."

(expressão napolitana)


Dum povo tão vivo e apaixonado, não se esperava esta precaução. O distinguo entre o amor e o fanatismo. Pois pode-se amar até à loucura, e o que é o fanatismo senão ter "razão" contra tudo e contra todos?

"Lê-se no salmo 78: 'E conduziu-os à sua morada santa'. Deus leva os hebreus para o deserto, porque aquele é o lugar do encontro. Não os chama num centro, numa praça, mas no isolamento inóspito do vento e do pó." (Erri De Luca)

No deserto, Deus não pode ser tomado por nenhuma outra coisa. Todo o fanático tem o seu deserto pessoal para esse diálogo privilegiado. A religião do deserto faz da própria areia uma metáfora da ablução.

O amor pode ser tão exclusivo? Não hoje, pelo menos, quando se aprecia tanto a liberdade. Os amantes de Verona não eram mais fanáticos do que as suas famílias desunidas pelo ódio, mas estariam hoje num mundo que os tomaria por loucos.

terça-feira, 13 de julho de 2010


Porto (José Ames)

SIMONE NOS INFERNOS


Dante no Inferno (Gustave Doré)


"A obediência, tal como a pratiquei, define-se por estas características. Antes de tudo, ela reduz o tempo à dimensão de alguns segundos. Aquilo que define em todo o ser humano a relação entre o corpo e o espírito, a saber, que o corpo vive no instante presente, e que o espírito domina, percorre e orienta o tempo, foi isso que definiu nessa época a relação entre mim e os meus chefes. Eu tinha que limitar constantemente a minha atenção ao gesto que estava em vias de fazer. Não tinha que o coordenar com outros mas somente repeti-lo até ao minuto em que uma ordem viesse impor-me um outro."

"La Condition Ouvrière" (Simone Weil)


Está aqui inteira a caracterização do trabalho "escravo", como alienação e separação absoluta do corpo e do espírito. Mas o taylorismo ainda triunfante na época exigia de mais a quem se lhe submetia sem saúde e sem uma verdadeira necessidade. Esta é por isso a versão, não podemos deixar de o notar, do intelectual que "desceu aos Infernos". De alguém que se define por uma utópica liberdade do pensamento.

Mas a verdade é que o pensar se apoia na servidão do corpo e, grande parte do tempo, é um monarca que se ausenta para parte incerta, para não falar do sono em que de todo desaparece.

O trabalho, não como a tortura que o seu étimo parece significar, mas como obediência à necessidade não devia ser diferente daquelas tarefas que o corpo nos impõe para nos mantermos vivos.


segunda-feira, 12 de julho de 2010


(José Ames)

LENINE


Vladimir Ilitch Lenin (1870/1924)


"Afinal de contas, era bastante surpreendente o facto de a revolução ter estalado não só num país não industrializado, atrasado, mas num território onde não existia um movimento socialista forte, gozando do apoio das massas. E, em segundo lugar, era igualmente inegável que a revolução fora consequência da derrota russa na guerra russo-japonesa. Dois factos que Lenine nunca esqueceu, e de que extraiu duas conclusões. Primeira: não era necessária uma grande organização; um pequeno grupo bem organizado, com um líder que soubesse o que queria, bastava para tomar o poder, uma vez varrida a autoridade do antigo regime. As grandes organizações revolucionárias acabavam por ser um estorvo. Segunda: uma vez que as revoluções não eram 'feitas', antes resultavam de circunstâncias e acontecimentos que ninguém podia controlar, as guerras eram bem-vindas."


"Homens em Tempos Sombrios" (capítulo dedicado a Rosa Luxemburgo, Hannah Arendt)


Uma nota interessante é que, segundo Werner Hahlberg ("Lenine und Clasewitz"), Lenine, que teria lido Clausewitz, sob a influência deste, "começou a considerar a hipótese de que a guerra, a derrocada do sistema capitalista europeu de estados-nações, pudesse substituir a derrocada económica capitalista tal como Marx previra."

É quase incrível esta audácia de Lenine que, afinal, se baseava na convicção de que as "leis" do materialismo-histórico se acabariam por cumprir, duma maneira ou doutra, sendo a obrigação do partido revolucionário servir apenas de "parteira". Mesmo que, como era o caso, não tivesse havido nenhuma gestação e nada houvesse para dar à luz.

Tudo isso foi possível porque a crítica do sistema capitalista tinha deixado de o ser, ao colocar-se numa posição de superioridade moral que a dispensava de aplicar a si própria o método fundamental de que se servia para denunciar a exploração e a injustiça no seu "Outro".

Mas Lenine tinha a desculpa de ser o primeiro aprendiz de feiticeiro em nome da "ciência" e não ser capaz de imaginar que as calamidades sociais desencadeadas por forças e acontecimentos incontroláveis podem ser muito piores do que as provocadas pela guerra.

domingo, 11 de julho de 2010


Alcafache (José Ames)

PSEUDO-EVENTOS


Franklin Delano Roosevelt (1882/1945)


"Os pseudo-eventos, de facto, aumentam a nossa ilusão de apreender o mundo, aquilo a que alguns chamaram a ilusão americana de omnipotência. Talvez, acabemos por pensar que os problemas do mundo podem realmente ser resolvidos por 'declarações', 'reuniões cimeiras', por uma competição de 'prestígio', por imagens obnubilantes, e por concursos (quizz shows) políticos."

"The Image" (Daniel Boorstin)


Um exemplo de pseudo-evento, apresentado por Boorstin, é o de Franklin Roosevelt que, através dos correspondentes amigos em Washington, conseguia usar os títulos da imprensa que toda a gente lia para criar "factos" (enquanto os editorialistas apenas expressavam opiniões para uns poucos).

Como o ensaísta observa, os pseudo-eventos não são verdadeiros nem falsos (são factos "artificiais" que se sobrepõem ao que supostamente são os factos originais que lhes servem de referência), mas são muito mais interessantes, porque são ensaiados e dramatizados, produzidos segundo as fórmulas retóricas e teatrais que melhor fazem passar a "mensagem".

Assim, o chamado mundo virtual é uma experiência muito anterior à generalização do uso da televisão e dos computadores.

O poder sempre contrapôs aos factos que o podem pôr em causa outros factos que, apesar de "sintéticos", alteram a realidade.

sábado, 10 de julho de 2010


(José Ames)

O ARRUMADOR


http://4.bp.blogspot.com



O arrumador de automóveis é uma das mais complexas figuras dos novos tempos. Reveladora duma mudança de mentalidades e duma crise dos valores da tradição religiosa.


Comparado com o mendigo que estende a mão à caridade pública e espera beneficiar do preceito cristão de "quem dá aos pobres empresta a Deus", numa passividade conformada e fatalista, o arrumador parece alguém que se coloca numa posição de quase provocação, de quem pode negociar alguma coisa, mesmo que ninguém esteja interessado no que é posto diante de si. Ele impõe-se já não à consciência religiosa do burguês (consubstanciado no seu privilégio automóvel, como antes o era o cavaleiro, face ao peão), nem apelando, por isso, a qualquer sentimento de culpa, mas ao seu sentido de propriedade e à sua prudência.


Assim, o assédio do arrumador, ao impor um serviço que ninguém lhe pediu e que na maior parte dos casos não tem qualquer utilidade, conquista uma espécie de dignidade e de estatuto entre o profissional e o mafioso.

Na prática, é o cobrador de impostos dum Estado paralelo, laico e inspirado na ideologia dos direitos do homem.

sexta-feira, 9 de julho de 2010


Edimburgo (José Ames)

OS TEÓLOGOS


Voltaire (1694/1778)



"Dividi o género humano em vinte partes: dezanove são compostas por aqueles que trabalham com as suas mãos e que nunca saberão se alguma vez existiu um Locke no mundo; na vigésima parte que sobra, como são poucos os homens que lêem! E entre aqueles que lêem, há vinte que lêem romances, um que estuda filosofia. O número dos que pensam é excessivamente pequeno, e esses não se lembram de perturbar o mundo. Não foram Montaigne, nem Locke, nem Bayle, nem Spinoza, nem Hobbes, nem Milord Shaftesbury, nem o Sr. Collins, nem o Sr. Toland, etc., que levaram o facho da discórdia à sua pátria; foram, na maior parte dos casos, teólogos que, tendo primeiro a ambição de ser chefes de seita, depressa tiveram a de ser chefes de partido."

"Lettres Philosophiques" (Voltaire)


Por que é que um homem com o talento de Marcelo e dispondo do mais estratégico dos púlpitos não poderia, mesmo se quisesse, trazer "o facho da discórdia à sua pátria", tal como os teólogos de que fala Voltaire?

Porque há muitos outros púlpitos e não se prende um "Gato Fedorento" por causa duma rábula certeira. Além disso, sendo a televisão um medium "frio" (McLuhan) não chega, realmente, a entusiasmar-nos.

Nenhuma ditadura compreende a televisão. As autoridades do "Apartheid" que demoraram tanto tempo a introduzir a televisão no seu país, receavam, certamente, que a televisão desfizesse nas cabeças o guetto que as leis impunham à sociedade. Mas alguma vez as comédias de "telefone branco" suscitaram o menor ímpeto igualitário?

quinta-feira, 8 de julho de 2010


(José Ames)

EXTRAVAGANTES EXPECTATIVAS


Daniel Boorstin (1914/2004)


Vivemos num mundo de ilusões que nos ocultam o real porque, nas palavras de Daniel Boorstin, temos "extravagantes expectativas":


"Esperamos qualquer coisa e tudo. Esperamos o contraditório e o impossível. Esperamos carros compactos que sejam espaçosos; carros luxuosos, mas económicos. Esperamos ser ricos e caridosos, poderosos e compassivos, activos e reflectidos, amáveis e competitivos. Esperamos inspirar-nos em apelos medíocres à 'excelência', tornarmo-nos 'literatos' através de iliteratos apelos à literacia. Esperamos comer e mantermo-nos magros, estar constantemente em movimento e cultivar a boa vizinhança, ir a uma 'igreja da nossa escolha' e sentirmo-nos guiados pelo seu poder, venerar Deus e sermos Deus."

"The Image" (Daniel Boorstin)


Boorstin fala dos seus compatriotas, mas quem não reconhece naquelas contradições os efeitos do choque duma mesma cultura individualista com os valores dum tempo em que o colectivo era a norma?

Sem dúvida que o "cimento" que tornava a sociedade possível não deu lugar à simples desagregação dos "átomos" sociais. Coisas que definimos através de conceitos como rede, sistema, mercado ou imagem, são o cimento muito mais subtil que nos obriga a fazer certas escolhas em vez de outras.

Embora as palavras não tivessem mudado, significam hoje uma outra realidade, e a anterior denotação torna-se uma espécie de bússola em território desconhecido.

Muitas das nossas discussões são sobre civilizações perdidas.

quarta-feira, 7 de julho de 2010


Grijó (José Ames)

A ARTE DE INCLUIR EXCLUINDO


Honoré Daumier


"A política é a arte de impedir as pessoas de meterem o nariz em coisas que lhes dizem realmente respeito."

Paul Valéry


A frase pode ser interpretada no sentido popular, anti-político, que denuncia uma classe interessada em lançar uma "cortina de fumo" para governar a coisa pública em proveito próprio.

E há um sentido platónico que postula a necessidade de afastar os "leigos" da especialidade política, contando-lhes "histórias da carochinha" para os convencer de que vivem numa democracia.

Evidentemente, neste último caso, os que "sabem" (ou conhecem a arte) são os melhor preparados para defender o interesse público, tão desinteressadamente quanto é possível. Esta posição não é anti-política, mas poder-se-ia chamar de anti-democrática.

Por muito crua que seja a versão platónica, é a que melhor representa a situação actual (sem a cláusula do desinteresse).

terça-feira, 6 de julho de 2010


(José Ames)

IMODERADA GRANDEZA



"O declínio de Roma foi o efeito natural e inevitável da imoderada grandeza. A prosperidade amadurece o princípio da decadência; a causa da destruição multiplica-se com a extensão da conquista; e logo que o tempo ou os acontecimentos removeram os seus suportes artificiais, a estupenda construção cedeu à pressão do seu próprio peso. A história da ruína é simples e óbvia: e em vez de nos perguntarmos por que foi o Império Romano destruído, deveríamos antes surpreender-nos com o facto de ter durado tanto tempo."

(Edward Gibbon)


A ideia de Gibbon não é intuitiva e tinha antecedentes nalguns mitos da Antiguidade e, mais precisamente, no conceito de hubrys, o excesso que perde deuses e homens.

Roma põe isso em causa ao prolongar a sua existência para além da perda das suas virtudes (as da República).

A moderna ideia do progresso permite-nos hoje imaginar uma nação que em vez de sucumbir à sua hubrys, faça dela a própria força que a leva a alcançar estádios superiores de cultura e desenvolvimento.

Mas Hubrys foi o sub-título que Ian Kershaw deu à sua famosa biografia de Hitler, e nada parece mais adequado como exemplo da auto-destruição do que a Alemanha que ele descreve.

O século XX enterrou aquela ideia do progresso. Depois disso, entrámos naquilo que Gibbon diz que nos deveria surpreender: o facto do Império (ou o Progresso) se sobreviver a si mesmo.

segunda-feira, 5 de julho de 2010


Bergamo (José Ames)

A FILOSOFIA NÃO PODE ESTAR NA MODA


Alain (Émile Chartier: 1868/1951)


Se a filosofia pode inovar, ou se é preciso começar sempre do princípio.

Por um preconceito oitocentista, sempre vivo, pensa-se em termos de progresso, também na história das ideias. Quem vem a seguir deverá pensar a partir das últimas posições, como se faz na ciência, para levá-la a um desenvolvimento e a uma especialização mais avançados. Mas porque a ciência não tem de pensar os seus fundamentos, só temos um Einstein e a sua obsessão estética, tão ao arrepio da ideia dum progresso imanente, de cem em cem anos.

Alain não acreditava que fosse possível compreender qualquer filosofia através da crítica, que é pô-la em questão à luz da actualidade. Uma ideia só se compreende no seu lugar e tempo, o mesmo é dizer que todas têm um modo de ser verdadeiras. Nesse sentido, não se pode inovar em filosofia e Alain interpreta a história do pensamento filosófico não como uma série que vai do simples ao complexo ( como a história das ciências, em Comte), mas como uma constelação, em que cada astro tem a sua justiça incontestável, desde que se entre no seu regime, e cujo conjunto se aproxima da ideia duma unidade do espírito.

Assim, Alain não se destacou por ter criado um novo e efémero sistema, mas por ter reencontrado o espírito da filosofia, pensando-a na sua história como um todo.

Por isso, nunca há-de ser um filósofo na moda.

sábado, 3 de julho de 2010


(José Ames)