quarta-feira, 30 de abril de 2014

Sem título

Terreiro do Paço

 

OS CÁLCULOS DO PODER ABSOLUTO

Kissinger e Mao Zedong

 

"Se a União Soviética lançasse as suas bombas e matasse todos os que têm mais de 30 anos e são chineses, isso resolver-nos-ia o problema [da complexidade dos muitos dialectos da China]. Porque as pessoas de idade como eu não conseguem aprender chinês [mandarim]."

(Mao Tse Tung, em conversa com Henry Kissinger, in "On China")

 

A nação mais populosa do mundo 'podia' permitir-se uma sangria como essa. Mao bravejava, sempre que podia, com esse 'trunfo' na eventualidade de uma guerra nuclear. " Na mesma obra do secretário de estado de Nixon, pode ler-se esta outra citação de Mao:

"Mesmo que as bombas atómicas dos EUA fossem tão potentes que, quando lançadas sobre a China, fizessem um buraco que atravessasse a Terra, ou até a fizesse explodir, isso praticamente não teria significado para o Universo como um todo, embora talvez fosse um acontecimento importante para o sistema solar (...) Se os Estados Unidos com os seus aviões mais a bomba A lançassem uma guerra agressiva contra a China, então a China com o seu painço e espingardas teria a certeza de sair vencedora. Os povos de todo o mundo apoiar-nos-ão." ("The chinese people cannot be cowed by the Atom Bomb")

É um erro ver nestas declarações uma simples bravata do número um. De facto, o presidente da RPC, serve-se da ideologia comunista para actualizar uma antiquíssima tradição dos imperadores da China. No pressuposto de que o seu imenso país é "Tudo o que existe debaixo dos Céus" e que todas as restantes nações da terra têm um estatuto inferior, de súbditos ou protegidos do império, a temeridade do secretário-geral, principalmente numa situação de fraqueza relativa perante as duas superpotências e algumas nações europeias, era a 'linha correcta'. A de nunca admitir que a China estivesse ameaçada ou numa posição de 'suplicante'. Os chineses é que eram os 'deuses' e só eles poderiam acolher e proteger as 'súplicas' dos outros povos.

Talvez este fosse apenas o sentimento da corte e do mandarinato, porque não se quadra com a atitude humilde e circunspecta que a imagem tradicional do povo chinês nos apresenta.

De resto, é essa 'sabedoria' que explica a continuidade da China, apesar dos contínuos massacres que a política dos seus líderes tem provocado até aos nossos dias.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Sem título

 

(José Ames)

 

JOANA

Captura de Joana d'Arc, Adolphe-Alexandre Dillens

 

"A mediocridade vingou-se bem; ela foi queimada, ela que era o Espírito e a Vontade, pela burocracia desse tempo. Meu Deus, é talvez a mais bela história humana (...)"

(Alain, sobre Jeanne d'Arc)

 

Joana, que ouvia vozes, hoje, não teria a mínima das hipóteses de escapar ao diagnóstico de esquizofrenia. Em vez de se apoiar em Deus, no seu confronto com o exército inglês, o seu combate seria 'psíquico' com a ajuda do zyprexa ou da risperidona.

Muitas vezes ao longo da história se tem falado de 'loucura', a propósito do amor ou da devoção a uma causa ou a outras pessoas. Mas o mais louco de todos talvez seja aquele que se toma pela sua 'persona', por aquilo que representamos para os outros. Tudo isso é mais comum do que parece.

O fenómeno da 'Donzela de Orléans' foi que a sua fé, ou a sua 'loucura' contagiou os soldados de um rei fraco. Imunes a esse contágio, o estrangeiro e o tribunal que a condenou só viram a 'histeria' e a 'blasfémia'. Os interesses puderam cobrir-se com a capa da razão.

O que há então de tão admirável neste caso? É que o 'espírito e a vontade', como lhes chama Alain, tenham sido tão fielmente interpretados por uma criatura 'sem mundo', tão pura como a virgem dos evangelhos. E como ela 'escolhida' e 'possuída' sem pecado.

"Não há coisas belas senão as que a loucura dita e que a razão escreve." (Gide)

 

 


 

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Viseu (José Ames)

EM BUSCA DO ORIGINAL

"Roma Antica" de Panini, Giovanni Paolo

"Os estrangeiros depressa deitam pelos olhos fora quadros, estátuas e grandes obras da arquitectura. Se, para cúmulo da infelicidade, na sequência de qualquer capricho do governo dos padres, não há espectáculo, os viajantes tomam aversão a Roma."

"Promenades dans Rome" (Stendhal)

A fadiga que os museus provocam no visitante é até conhecida pela síndrome de Stendhal.

Mas hoje, felizmente, podemos admirar, com todo o vagar e comodidade, qualquer pintura no nosso ecrã, perdendo embora a verdadeira dimensão dela, o que não é de somenos.

Em vez de atravessar salas e salas para escolher uma ou duas obras que não alarmem o nosso cansaço, temos a imagem delas, sem o mínimo esforço e pelo tempo que quisermos.

Claro que isso não desencoraja o turista que, castigando um corpo amolecido pelos hábitos sedentários, se aplica com um zelo imoderado ao objectivo de se encontrar defronte dos originais.

Por isso a função dos museus é cada vez mais iniciática, justificando as distinções culturais pelo "contacto" visual com as relíquias.

O turismo encontra assim o espírito da peregrinação.

domingo, 27 de abril de 2014

Sem título

(José Ames)

 

PERGAMINHOS


"Vida e morte do Coronel Blimp"
(1943-Michael Powell e Emeric Pressburger)


Romper um compromisso para surpreender um inimigo que se supõe capaz de igual audácia, nivelar o nosso comportamento pelo que se antecipa da ética (ou falta dela) do adversário, é o espírito da guerra tal como ele se nos tornou familiar.

Mas Blimp vem de outra época. Dum tempo em que, dum lado e doutro, havia gentlemen e limites que nenhum deles sonharia ultrapassar. Ou, pelo menos, ele gostava de pensar que tinha sido assim.

O filme de Michael Powell começa pela aplicação da "nova" lógica a um simples exercício. O ataque simulado ao quartel general começou horas antes do acordado porque, tinha pensado o jovem tenente, se fosse a sério seria mesmo assim, sem regras, nem escrúpulos.

A cena da disputa entre o velho coronel e o jovem cínico termina com ambos lutando na piscina. Num fabuloso raccord, com a voz do narrador chegando-nos de dentro da água, a acção retrocede até ao tempo do jovem Blimp em que um outro código de honra fazia sentido, mesmo se só numa cabeça vitoriana.

sábado, 26 de abril de 2014

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Leça da Palmeira (José Ames)

 

O DEUS TERMO

Publius Aelius Hadrianus, Imperador de 117 d.C. a 138 d.C.


O deus Termo era o deus que protegia os limites na Antiga Roma e era representado por um grande marco de pedra. Segundo Gibbons, uma lenda dizia que nem Júpiter pôde vencê-lo. Essa glória estava destinada a Adriano, o sucessor de Trajano, o qual tinha ampliado o império para além do que Augusto tinha considerado administrável.

A primeira medida do reinado de Adriano "foi a renúncia a todas as conquistas realizadas no Oriente por Trajano" (Gibbons), devolvendo a liberdade aos povos submetidos e reconduzindo Roma aos seus antigos limites.

Esta auto-limitação do poder é coisa rara na História, porque a força vai até onde pode ir se não encontra resistência.

A cultura grega e o prestígio de Augusto inspiraram este acto de realismo político verdadeiramente clarividente.

Muitos dos nossos males presentes recorrem de não existir nos poderosos qualquer inibição (mesmo que supersticiosa) em relação aos limites das suas acções.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

"Disease" (José Ames)

UM POETA EXTERMINADOR

Louis-Ferdinand Céline


O que é que podemos aprender sobre nós mesmos, lendo até ao fim a desesperada "Viagem" de Céline, em páginas como as que descrevem essa espécie de testamento de Robinson, antes de receber os dois balázios no estômago, disparados pela sua amante dentro do táxi e a consagração da sua renúncia à vida por parte de Bardamu?

Desgostado de tudo, mesmo dos prazeres, que ficaram reduzidos à manducação e a dormir o mais possível, com a morte sempre ao lado, mas sem nada para revelar, sem nenhum mistério, o narrador da "Viagem" encontra a perfeição do niilismo nas vociferações de Robinson contra o amor, o físico e o sentimental.

"Tu insistes, tu, em fazer amor no meio de tudo o que se passa?... De tudo o que se vê?... Ou será porque não vês nada?... Mas creio que estás-te é nas tintas!... Fazes-te de sentimental, quando és bruta como as que o são... Queres comer a carne podre? Com o teu molho de ternura?... Tu consegues?... Eu não!..." ("Voyage ao bout de la nuit")

A força deste texto vem-lhe, certamente, dum grande estilo, mas também de ser uma experiência vivida.

Mas creio que não é apenas a recusa das ilusões piedosas que explica esta incapacidade de viver.

A excepção que Bardamu concede, entre as coisas que conservam ainda algum valor, aos pequenos desgostos (como o de não ter visitado um tio enquanto ele vivia ainda) trai neste poeta exterminador um "absurdo desejo de sofrer".

Ora isso não é tão pouco comum assim.

 

quinta-feira, 24 de abril de 2014

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Almada (José Ames)

 

DESPORTO NACIONAL

christiinternational.com

"A pátria não é o sítio em que nos coloca o acaso do nascimento, à mão direita ou à mão esquerda de um guarda da alfândega, mas sim o conjunto humano a que nos liga solidariamente a convicção de um pensamento e de um destino comum. Já um sábio o disse: 'Ubi veritas ibi patria'. A pátria não é o solo, é a ideia. Para que haja uma pátria portuguesa é preciso que exista uma ideia portuguesa, vínculo da coesão intelectual e da coesão moral que constitui a nacionalidade de um povo.

Sabem dizer-nos se viram para aí esta ideia?…

Nós temo-la procurado de aventura em aventura, de jornada em jornada, numa peregrinação de vinte anos através desta sociedade, como Ulisses, vagabundo através da Odisseia, em busca, do fumozinho ténue e amigo que adeje no horizonte por cima da primeira cabana d'Ítaca."

"As Farpas" (Ramalho Ortigão e Eça de Queirós)

Para a geração dos "Vencidos da Vida", o mal do país era profundo. Eça ainda se resgatou, descrevendo-nos a irrelevancia e a futilidade do 202 dos Campos Elísios, quando comparado com as serras de Baião. Mas isso foi muito mais tarde, depois de apalpar muitas vezes a 'caveira', como o seu póstumo Jacinto.

É que não tínhamos sequer direito a um destino comum, a uma ideia moral que nos ligasse! A situação pedia um cataclismo, mas pequeno, à medida a que esses patuscos nos fizeram.

Foram decerto exageros da juventude (Eça tinha 26 anos quando surgiram as 'Farpas' e Ramalho, 35), mas na linha 'tradicional' do auto-apoucamento.

João Miguel Tavares, no 'Público' refere-se à "dificuldade que o país tem em heroicizar os seus heróis e trabalhar a memória dos grandes acontecimentos, como se fôssemos um buraco de meio milénio que inexiste desde o tempo dos Descobrimentos (...)

JMT diz que essa atitude "tem como consequência a desvalorização de feitos tão prodigiosos quanto aquele que São José Almeida recuperou num excelente trabalho na revista do 'Público': a integração dos retornados após o processo de descolonização, em números que ninguém parece conseguir realmente calcular (andarão entre o meio milhão e um milhão de pessoas), um movimento populacional sem paralelo na Europa do pós-guerra, tendo em conta a dimensão de Portugal."

Deve ser, realmente, por não termos nenhuma ideia da pátria e do povo que somos que banalizámos o Panteão. Para recuperarmos a ideia da pátria e do povo português talvez nos falte ainda alguma distância crítica em relação à história contemporânea.

Entretanto, virar as farpas contra nós mesmos é um desporto nacional, conhecido e estimado para lá de todas as proporções.

 

 

quarta-feira, 23 de abril de 2014

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(José Ames)

 

O ODRE DOS VENTOS

Bóreas

 

"Porque a máquina burocrática, nem por ser formada de carne, e de carne bem alimentada, deixa de ser tão irresponsável e tão inconsciente como as máquinas de ferro e aço."

(Simone Weil)


Talvez que o conceito de subsistema esteja mais actualizado do que o de máquina para descrever a burocracia. Não importa, é um facto que nem por ter leis e uma cultura próprias, a burocracia pensa, e por isso não pode ser consciente, nem responsável.

Descartes dizia que um relógio avariado não obedece às leis do mecanismo que conhecemos para medir o tempo. É outra coisa, até ser posto a funcionar. Isto, não para dizer que existe uma burocracia que funciona e outra 'avariada' ou perversa que parasitaria o sistema, mas que, sendo útil na maior parte dos casos, tem sempre um custo e que, para lá dum certo ponto, tende para a 'autonomia', caso em que os custos superam a utilidade.

O mandarinato da China imperial foi substituído por uma burocracia 'moderna', e no tempo de Mao, era ele o imperador. Ele próprio confessou que esse vício do passado era muito difícil de erradicar, e 'arrependeu-se', pelo menos em palavras, do 'culto da personalidade' praticado pelo partido sob as suas ordens. Esta burocracia, porém, há-de ser cada vez mais um obstáculo (obstáculo 'irresponsável') ao desenvolvimento do capitalismo chinês.

No outro pólo, o da democracia americana, aquilo que Eisenhower apelidou de 'complexo militar-industrial' encerra igualmente dentro de si um elemento anárquico, um estado dentro do estado que ataca a democracia nos seus alicerces.

O "Nine Eleven" é a esfinge da sociedade americana. Quando alguém a levar a precipitar-se, como fez Édipo, soprará do odre dos ventos uma tempestade nunca vista.


terça-feira, 22 de abril de 2014

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Leça da Palmeira (José Ames)

 

ENGENHARIA

The philosopher Ludwig Wittgenstein photographed in the spring of 1923 with his pupils in Puchberg am Schneeberg, where he worked as a primary school teacher from circa October 1922 until circa September 1924.

 

"O que é lógico não pode ser apenas possível. A Lógica trata de cada possibilidade e todas as possibilidades são os seus factos."

Ludwig Wittgenstein ("Tractatus Logico-Philisophicus")


Se aceitarmos as consequências disto, realmente, está tudo 'tratado', e justifica-se a abstinência de cartuxo, recomendada pelo autor: "O que é de todo exprimível, é exprimível claramente; e aquilo de que não se pode falar, guarda-se em silêncio."

Por um lado, o mundo fechado da Lógica, constituído pela 'totalidade dos factos'. Por outro, a natureza e as 'coisas' que não podem ser 'exprimidas claramente' e sobre as quais devemos guardar silêncio.

Num ponto a história está de acordo com este filósofo relutante: todos os sistemas imitam a lógica e são 'perfeitos' e fechados como ela. Por exemplo, os sistemas políticos mais coerentes com uma doutrina. Neles, de facto, não há nada de novo a inventar. Tudo é desenvolvimento lógico. Se parece haver contradição entre eles e a 'realidade', é porque não conhecemos todos os factos, isto é, por défice de lógica.

Wittgenstein era engenheiro; mas a estrutura pode desabar, apesar da ideia ser suficientemente lógica.

 

segunda-feira, 21 de abril de 2014

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(José Ames)

 

NA PORTA DA PAZ CELESTIAL

Mausoléu de Mao Tsé Tung

 

"Um livro recente do académico chinês e conselheiro do Governo Hu Angang argumenta que a revolução Cultural, ao mesmo tempo que foi um fracasso, preparou o terreno para as reformas de Deng do fim da década de 1970 e da década de 1980. Hu propõe agora que se use a Revolução Cultural como um caso de estudo sobre os modos como os 'sistemas de tomada de decisões no sistema político existente na China podem tornar-se mais democráticos, científicos e institucionalizados.'

Henry Kissinger (On China)

 

Se Hitler tivesse um mausoléu junto às portas de Brandenburgo, o seu regime podia ter sido considerado um fracasso (afinal perdeu a guerra), porque o actual estado de coisas seria o resultado de políticas no extremo oposto das suas, e seria notória a falta de uma solução de continuidade.

Hu Angang traz agora uma justificação das políticas criminosas do Grande Timoneiro que, embora 'puxada pelos cabelos', deveria igualmente servir para a estabilidade do monumento funerário de Berlim.

Não é verdade que o ex-cabo austríaco 'resolveu' num tempo recorde o problema do desemprego na Alemanha e o do descrédito da democracia de Weimar? E o massacre da Segunda Guerra Mundial não permitiu, com a ajuda dos capitais americanos, o renascimento económico europeu, em novas bases? A guerra arrasou as cidades e a economia, mas, ao mesmo tempo, reduziu a complexidade histórica das sociedades, e com essa 'terraplanagem' eliminou os entraves culturais ao desenvolvimento do capitalismo que hoje conhecemos.

Também o nazismo podia ser um 'caso de estudo', no sentido positivo, se conseguíssemos pôr completamente a ética de lado.

É claro que a China, nesse aspecto, tomou a dianteira. Para isso muito contribui a presença massiva do mausoléu de Mao, na principal praça da capital. Conviver com tal monumento pressupõe, evidentemente, uma censura da história e, também, uma grande flexibilidade conceptual.

Porque ninguém julga o Führer pelo seu mais do que certo lado positivo. Mao Tsé Tung foi o pai da Revolução Chinesa. E a um pai perdoa-se tudo.

No dia em que não se perdoar, o regime acabou.

domingo, 20 de abril de 2014

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Rio Tinto (José Ames)

 

O RELÓGIO DE CUCO DE HARRY

"O Terceiro Homem"

 

“(...) como dizia Montesquieu, referindo-se a Roma, os conflitos, as desordens e as lutas que marcaram Roma não foram apenas a causa da sua decadência, mas também a da sua grandeza e existência. Quero dizer que o conflito, a desordem, o jogo não são escórias ou anomias inevitáveis, não são resíduos a reabsorver, mas constituintes-chaves de toda a existência social. É isso que se deve tentar conceber epistemologicamente.

Como dizem e reconhecem numerosos sociólogos, a sociedade é um fenômeno de autoprodução permanente. Os processos de criatividade e de invenção não são redutíveis à lógica da máquina artificial. Devemos conceber que a estratégia, em seu carácter aleatório e inventivo, é mais fecunda do que o programa que é 'a priori e ne varietur' fixado. A estratégia é o que integra a evolução da situação e, por conseguinte, os acasos e os novos acontecimentos, a fim de se modificar e corrigir.”

(Edgar Morin, “Ciência com Consciência.)

É o que já dizia Harry Lime (Orson Welles) no "Terceiro Homem", o filme de Carol Reed (1949) em que se ouve música de cítara. Harry é traficante (roubava penicilina dos hospitais militares) numa Viena ocupada pela tropa americana e que lambe ainda as feridas da guerra. Quando, finalmente, é possível uma entrevista com o amigo de infância, Holly Martins (Joseph Cotten), que o procurava, revela-lhe o seu princípio de vida: a Itália da Renascença teve uma vida política convulsiva, com lutas de morte e traições infames, mas foi um dos cumes da nossa civilização. Em centenas de anos de paz e de democracia, o que conseguiu a Suíça? Inventou o relógio de cuco!

Com esta pirueta, Harry Lime desaparece nas sombras de Viena, deixando o seu amigo chocado e perplexo.

O facto é que no meio da aceleração do presente, não lobrigamos um lugar que seja o equivalente da Suíça de Harry Lime, nem do seu relógio de cuco.

O reencontro do passado clássico foi um motor das ideias revolucionárias que fundaram o Renascimento. Nada disso se verifica hoje. A maior parte das nossas ideias desunham-se como podem da sua falta de tradição, valendo-se, no melhor dos casos, da caução que lhe oferece uma ciência desnorteada.

Como o movimento e a velocidade não podem ser tudo, não se esperem as alturas de outro cume civilizacional...

Harry precipitou-se no juízo que fez do relógio de cuco.


 

sábado, 19 de abril de 2014

Sem título

 

(José Ames)

 

JOHN FORD EM ESTADO DE GRAÇA




"A paixão dos fortes" ("My darling Clementine", 1946-John Ford) tem tudo para me encher as medidas.

O "Monument Valley" que é o melhor anfiteatro da tragédia, as cavalgadas no espaço aberto, o céu tempestuoso da noite em que Earp e os irmãos chegam a Tombstone e um romance delicado que não se resolve, mas fica como uma flor que não se sabe se resistirá à ventania do deserto. "I surely like that name, Clementine!"

Entre os dois heróis do "Bem", Wyatt Earp e Doc Holliday há a rivalidade por causa duma mulher e uma admiração mútua (basta ver o olhar do novo sheriff para a forma como Doc termina o monólogo do "Hamlet"). Mature tem aqui o seu grande papel, numa carreira sem brilho.

Mas que dizer deste Wyatt Earp com que Henry Fonda nos delicia? Simples, terra a terra, quase bonacheirão, quando responde a Doc com a boca cheia, intrépido, fulminante, lacónico quanto baste, a perfeição do "cool", duma ingenuidade infantil em tudo o que se relacione com o outro sexo, perante o qual se sente desarmado e canhestro.

Não se pode falar desta obra-prima, sem se referir a grande composição de Walter Brenner, a velha gralha claudicante de "Rio Bravo" e "To have and to have not". Nos antípodas dessa bonomia, temos aqui a maldade no estado puro. A sua imobilidade e o seu olhar deixam-nos gelados, como se fossem a própria morte.

A sentença de Earp para este patriarca facinoroso dos Clanton, depois de ter perdido todos os seus filhos em OK Corral, é digna de Homero: - Vai, e oxalá vivas cem anos!

sexta-feira, 18 de abril de 2014

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Cuenca

 

A EDUCAÇÃO DE SOLIMAN

Manuscrito de Musill

 

"- Numa passagem do seu 'Wilhelm Meister', o grande Goethe expõe, não sem paixão, um preceito de vida justo que diz: 'Pensar para agir; agir para pensar!'

(Arnheim ao seu criado Soliman, em "O Homem Sem Qualidades")

À primeira vista, o homem que defende a liga entre a cultura e os negócios, endossa a letra de Goethe na mesma direcção. Como para ele não existe qualquer incompatibilidade entre o pensamento e o dinheiro, a 'cultura' pode e deve traduzir-se em espécies monetárias. Arnheim, ele próprio, é a perfeita ilustração do seu preceito. Sendo um homem de sucesso, tem ideias operacionais sobre a administração da Cacolândia (essa quimera ingovernável conhecida pelo império austro-húngaro).

No entanto, por detrás do 'motto' goethiano, existe uma autêntica tradição filosófica. Só podemos pensar, de facto, na acção ou a partir dela. Tudo o resto não tem nada a ver connosco e pertence ao mundo da cópia ou da reprodução mais ou menos mecânica.

O que dá uma nota de perversidade à formulação de Arnhneim é que podemos chegar à conclusão de que 'só' agimos para pensar, como se a vida contemplativa fosse uma opção 'actual'. Claro que não era isso que queria dizer o magnata. Como se diz que ninguém é grande para o seu criado de quarto, Arnheim estava apenas a dar-se ares de nefelibata.

De resto, o seu sucesso mundano dependia também de veleidades como essa. Há uns anos atrás dir-se-ia: de 'contradições' como essa (falar em contradição sugere que dominamos o processo 'dialéctico').


 

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Sem título

(José Ames)

 

O PARADOXO DA MULTIDÃO

"The crowd" (King Vidor)

 

"O conceito do livro ("Crowds and Power") creio, que é tão real quanto podia ser. Começo por aquilo a que chamo o medo de ser tocado. Penso que o ser humano individual se sente ameaçado pelos outros e sente por esta razão uma anxiedade em ser tocado por algo de desconhecido, e que procura proteger-se por todos os meios de ser tocado pelo desconhecido, criando distâncias à sua volta e esforçando-se por evitar um contacto mais próximo dos outros seres humanos. Todos os seres humanos já experimentaram isto de tentarmos todos não dar encontrões aos outros, nem gostarmos de suportar os encontrões dos outros. Apesar de todas as medidas preventivas, os seres humanos nunca perdem completamente o medo de serem tocados. O que é notável é que este medo desaparece completamente numa multidão. É realmente um paradoxo importante."

(Elias Canetti em conversa com Theodor Adorno)


De alguma maneira, os 'outros' deixam de ser 'desconhecidos', como se a multidão que rodeia o indivíduo tomasse conta do seu ser, como se ela fosse o instrumento de uma metamorfose em qualquer coisa de ilimitado que coloca em surdina todos os nossos sinais de alerta habituais.

Mas o caso é que esse 'entusiasmo' ( a palavra, na origem, exprimia a inspiração do deus ou o estado de 'possuído' por ele) tem algumas condições. O efeito da multidão também pode ser o contrário disso. É o caso do 'infiltrado' num comício, ou de alguém que se encontra prevenido contra a 'possessão'.

Woody Allen em "Zelig" inventa outro tipo de 'desafecto' em relação ao fascínio das massas reunidas em Nuremberga. O da imitação camaleónica.