"O Terceiro Homem" |
“(...) como dizia Montesquieu, referindo-se a Roma, os conflitos, as desordens e as lutas que marcaram Roma não foram apenas a causa da sua decadência, mas também a da sua grandeza e existência. Quero dizer que o conflito, a desordem, o jogo não são escórias ou anomias inevitáveis, não são resíduos a reabsorver, mas constituintes-chaves de toda a existência social. É isso que se deve tentar conceber epistemologicamente.
Como dizem e reconhecem numerosos sociólogos, a sociedade é um fenômeno de autoprodução permanente. Os processos de criatividade e de invenção não são redutíveis à lógica da máquina artificial. Devemos conceber que a estratégia, em seu carácter aleatório e inventivo, é mais fecunda do que o programa que é 'a priori e ne varietur' fixado. A estratégia é o que integra a evolução da situação e, por conseguinte, os acasos e os novos acontecimentos, a fim de se modificar e corrigir.”
(Edgar Morin, “Ciência com Consciência.)
É o que já dizia Harry Lime (Orson Welles) no "Terceiro Homem", o filme de Carol Reed (1949) em que se ouve música de cítara. Harry é traficante (roubava penicilina dos hospitais militares) numa Viena ocupada pela tropa americana e que lambe ainda as feridas da guerra. Quando, finalmente, é possível uma entrevista com o amigo de infância, Holly Martins (Joseph Cotten), que o procurava, revela-lhe o seu princípio de vida: a Itália da Renascença teve uma vida política convulsiva, com lutas de morte e traições infames, mas foi um dos cumes da nossa civilização. Em centenas de anos de paz e de democracia, o que conseguiu a Suíça? Inventou o relógio de cuco!
Com esta pirueta, Harry Lime desaparece nas sombras de Viena, deixando o seu amigo chocado e perplexo.
O facto é que no meio da aceleração do presente, não lobrigamos um lugar que seja o equivalente da Suíça de Harry Lime, nem do seu relógio de cuco.
O reencontro do passado clássico foi um motor das ideias revolucionárias que fundaram o Renascimento. Nada disso se verifica hoje. A maior parte das nossas ideias desunham-se como podem da sua falta de tradição, valendo-se, no melhor dos casos, da caução que lhe oferece uma ciência desnorteada.
Como o movimento e a velocidade não podem ser tudo, não se esperem as alturas de outro cume civilizacional...
Harry precipitou-se no juízo que fez do relógio de cuco.
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