segunda-feira, 30 de junho de 2008

O PONTO DE RUPTURA



"Tal como as equipas de perfuração do petróleo têm de chegar, hoje, a incríveis extremidades, também os baleeiros experimentavam grandes dificuldades à medida que a indústria do óleo de baleia atingia o seu ponto de ruptura. As viagens chegavam a durar quatro anos, e prometiam tédio, trabalho extenuante, tempo rigoroso, maus tratos, má comida, alojamentos superlotados e maus cheiros."

"A Thousand Barrels a Second" (Peter Tertzakian)


O óleo de baleia já iluminou o mundo, antes da electricidade. Antes de se extinguir o bíblico mamífero, apareceu, providencialmente, o petróleo barato.

Mas agora é preciso furar mais longe e em piores condições geográficas e políticas, para obter um crude de menor qualidade.

O autor fala num incrível milhar de barris por segundo, sem nada à vista que possa assegurar a mudança para outro tipo de energia à medida da urgência da nossa "sede".

Mas isso é o que caracteriza o futuro. Só o poderíamos prever se a realidade se revisse nas simulações dos nossos modelos.

Faz parte dos imprevistos desse futuro o resultado das decisões de homens que acreditam nessas projecções e actuam consequentemente e de homens que continuam a viver como se tudo isso não fosse com eles, ou como se se pudesse sempre contar com uma descoberta da maravilhosa ciência que nos permita aterrar sem sobressaltos num ponto além da ruptura.



Lisboa (José Ames)

A RAPARIGA DA MALA


"La ragazza con la valigia"(1961-Valerio Zurlini)

É inesquecível o grande plano de Lorenzo (Jacques Perrin), enquanto Aida (Claudia Cardinale) dança com o grisalho bon-vivant que lhe pagou o jantar. Sentimos toda a sua revolta e impotência perante a poluição da beleza.

O filme aborda com grande delicadeza a paixão de um rapaz de 16 anos pela stronza que o irmão mais velho enganou.

Mais complexa é a atitude de Aida que não consegue defender perante o sacerdote a ideia da amizade. No entanto, em nenhum momento sentimos que corresponda à paixão que desperta.

E depois da cena final na praia e da manhã seguinte, quando Lorenzo regressa a Parma, percebemos que se ela cedeu ao desejo do adolescente foi como a aceitação do destino que todos lhe queriam impor e perdendo-se aos olhos dele.

O dinheiro que Lorenzo lhe deixa num envelope, como se fosse uma última mensagem, sela esse destino.

O esplendor físico de Claudia dá a este sacrifício, a esta maldição que a extrema beleza parece trazer consigo, toda uma pungência que o retrato psicológico sabe de resto exaltar.

domingo, 29 de junho de 2008


(José Ames)

OS SINAIS DO AMOR


"O Romance do Genji"


"Desta feita teve de reconhecer que ele era um homem culto, elegante e afável; e quando observou, para si mesmo, que podia ser agradável imaginá-lo sob as feições de uma mulher, a conversa tomou um rumo familiar. Por sua vez, Hyobukyo, ao ver o Genji mais amável e atencioso que de costume, achou-o muito encantador e sem desconfiar que, de certo modo, ele era o seu genro, procurou também imaginá-lo, por gozo, na pele de uma mulher."

"O Romance do Genji" (Murasaki Shikibu)


Esta cena é estranha para nós em mais de um sentido e, ao lê-la, caímos de imediato sob a influência do código homossexual.

O romance, um dos mais antigos que se conhecem, foi escrito entre 1005 e 1014, por uma aristocrata da corte imperial japonesa. Nunca a poesia se tornou assim numa prática social, nem a virtude se confundiu tanto com o estilo do traço e a caligrafia como na era Heian.

"Os rostos permaneciam escondidos: quando uma dama tinha de aparecer em público, dissimulava a cara atrás do seu leque. Evidentemente, o corpo desnudo da mulher não desperta qualquer interesse. Não se trata de mera indiferença, mas de uma autêntica aversão. A mulher desejável é a mulher vestida." (notas de Carlos de Oliveira)

Na nossa cultura, o strip tease pressupõe a mulher vestida, mas aqui o vestido não remete para a nudez, mas para os outros vestidos enquanto signos.

A esta luz, o que nos parecia absurdo num filme como "Mr. Butterfly", de David Cronenberg, faz todo o sentido.

E o jogo a que se entregam os dois homens na passagem citada não sai do domínio da arte da conversação que integra aqui, como sedução, o modo condicional.

Um pouco como a aura que a fama ou uma intriga benevolente atribuem aos interlocutores com o mesmo efeito de sedução.

sábado, 28 de junho de 2008

O CONFORMISTA


"O Conformista" (1970-Bernardo Bertolucci)


Marcello Clerici (Jean-Louis Trintignant), um homem cuja ambição é não se afastar da norma, sentir-se da mesma massa de que são feitos os outros, decide oferecer os seus serviços ao partido fascista, entrando na polícia política.

O seu primeiro trabalho é preparar o assassinato de Quadri, o seu antigo professor de filosofia, opositor do regime que vive em Paris com a mulher.

A queda de Mussolini deixa-o desnorteado, mas aproveita a primeira oportunidade para denunciar o seu melhor amigo e acusar do assassínio de Quadri, um pederasta cuja morte carregava na consciência desde que, criança abusada, desfechara sobre ele vários tiros de pistola.

O último plano revela-nos Marcello pela primeira vez consentindo o desejo homossexual.

O filme inspira-se numa novela de Alberto Moravia e não se compreenderia sem a matriz freudiana. A personagem sob o sentimento de culpa por um crime, afinal, inexistente, recalca, de facto, o seu "desvio" sexual. Essa cobertura, permite-lhe assumir papéis "viris" para os quais não foi talhado. O fascismo, no seu histerismo de falsa virilidade, foi a sua oportunidade para encontrar uma norma que correspondesse à sua vida sequestrada.


Nápoles (José Ames)

ARISTOCRACIA EMPRESARIAL


Octávio César Augusto


"Mecenas tê-lo-ia dito a Augusto: é necessário aumentar o número de senadores e de cavaleiros tanto quanto for necessário para governar quando e como deve ser; e sabe-se que, de facto, esses grupos se alargaram em proporções sensíveis, mesmo que nunca tenham deixado de constituir uma ínfima minoria em relação ao conjunto das populações."

"O Cuidado de Si" (Michel Foucault)


É uma aristocracia de serviço para administrar o mundo, conclui Foucault, servindo-se da expressão de R. Syme "managerial aristocracy".

Não que alguma vez se tivesse perdido a consciência das relações de força entre o conquistador e o conquistado. Mas na ideia do império como administração, quase como no universo das empresas as relações entre as filiais e a casa-mãe, parece antecipar-se a utopia de Lenine de substituir a política (entendida como o domínio da força e não da palavra) pela administração, com a célebre imagem da cozinheira à frente do Estado.

sexta-feira, 27 de junho de 2008


(José Ames)

AS BUZINAS DE JERICÓ


http://www.pbase.com/downsouthstories/image/79257242


"Mas em nenhum sistema praticável pode algum grupo ser autorizado a impor pela ameaça ou violência o que acredita que lhe cabe. E quando não apenas alguns grupos privilegiados, mas os mais importantes sectores do trabalho se tornaram efectivamente organizados para a acção coerciva, permitir que cada um actue independentemente não só produzirá o oposto da justiça, mas resultará no caos económico."

"The Constitution of Liberty" (Friedrich Hayek)


Hayek não deixa alternativa entre serem as livres forças do mercado a fixar a estrutura dos salários ou ser o governo a fazê-lo, não para obter alguma espécie de justiça, visto que, não havendo para ela qualquer critério objectivo, essa acção só poderia ser arbitrária e imporia, do mesmo passo, a destruição do poder sindical ou que fosse atrelado à máquina governativa.

O problema é que enquanto que o mercado, segundo o autor, deveria ter toda a liberdade (para escapar à influência das decisões "cegas" sobre a economia), os indivíduos e os grupos não poderiam ter a mesma liberdade para se organizarem.

A verdade é que em termos de força as organizações são muito diferentes umas das outras e se as mais fortes, ou ocupando lugares mais estratégicos, pudessem impor o que consideram ser o seu direito, isso não se distinguiria em nada da lei da força.

Como se viu pela recente greve dos camionistas, não se trata de um mal imaginário. Quando prevalece a vontade duma minoria que pode parar o país, a democracia sofre um dos seus frequentes eclipses. E em que é que isso é diferente de um putsch corporativo? Apenas que, em vez de tanques e G3, temos a embolização económica, e os muros de Jericó só podem cair.

Os puristas do mercado não podem, na verdade, apresentar um único país que corresponda à sua utopia, e tal como é preciso moderar o poder das organizações privadas e dos grupos profissionais, o mercado e as empresas não podem impor a sua lei.

Mas esse equilíbrio não é, evidentemente, possível se se acreditar que o Estado só pode estar ao serviço de si próprio.

quinta-feira, 26 de junho de 2008


Cascais (José Ames)

LIBERAL E KAFKIANO


http://www.dicadeteatro.com.br/borelliprocesso.htm


"O Processo desempenha um papel dominante. A prisão de Joseph K., a opacidade dos tribunais, a sua morte literalmente bestial, são o abecedário das nossas políticas totalitárias. A lógica lunática da burocracia posta a nu pelo romance é a mesma das nossas profissões, litígios, vistos e práticas fiscais, mesmo no cinzento-claro do liberalismo."

"Paixão Intacta" (George Steiner)


Nada do que acontece a Joseph K. é a vida. A narração dos passos que tem de dar, as pessoas que tem de ver e as formalidades que tem de cumprir mostram-nos um homem precisamente separado da vida, num tempo que não é o da biografia. Ele tem de se deslocar de uma casa para outra num jogo de xadrez perdido à partida.

O processo judicial que cai sobre a personagem não é uma preocupação entre outras, de que se possa descartar recorrendo, por exemplo, a um advogado. Em primeiro lugar porque toda a gente trabalha para o tribunal e porque os advogados são os servidores da Lei que o escolheu para o papel de culpado, na mesma lógica da dizimação.

Não há como escapar ao poder da Lei e tudo finalmente o compromete, mesmo um lapsus linguae (numa aplicação penal da psicanálise).

É por isso que o adjectivo totalitário encontra neste romance a sua máxima expressão.

Mas Steiner fala de uma lógica lunática da burocracia presente na própria democracia. E se é assim, como as grandes organizações e os erros do sistema judicial parecem comprová-lo, é a liberdade individual que está em causa que nenhuma democracia pode por si só assegurar.

De resto, não há democracia automática e sem vida política autêntica.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

O NÃO-ACONTECIMENTO



No filme "O Acontecimento" (2008-M.Night Shyamalan), é demasiado óbvia a tese ecologista mais ingénua para nos sentirmos tocados por alguma espécie de poesia ou de mistério.

O título promete mais do que a previsibilidade das teorias que se sucedem umas às outras para dar lugar ao cliché.

O único mérito do filme é ter recuperado os meios de persuasão anteriores aos efeitos especiais, mas parece-se com tantas outras ficções e o seu final é tão anunciado que, francamente, aborrece.


Padrão (José Ames)

JEREMIAS NO SINDICALISMO



"Na Alemanha, por exemplo, ouvi dizer em 1932 a um militante sindical, para justificar a inércia dos sindicatos: Nós estamos em perfeita segurança na condição de nos mantermos tranquilos; porque o capitalismo, ele próprio tem necessidade dos sindicatos para funcionar, e os hitlerianos não vencerão se permanecermos estreitamente unidos com o Estado. Este estado de espírito, que era então geral, mostrava que o sindicalismo alemão não era já um movimento popular, mas uma mera administração que constituía uma engrenagem no funcionamento quotidiano do regime."

"A propos du syndicalisme - unique, apolitique et obligatoire" (Simone Weil)


Na altura em que foi escrito este artigo, discutia-se, em França, o "Statut du Travail" que, para Simone Weil, apesar da posição patronal, que leva à conta do humor, poderia significar o fim do sindicalismo francês.

Alerta para a transformação dos sindicatos em alfobres de advogados especializados, por força dos novos mecanismos de arbitragem e critica a indexação dos salários, da qual a CGT fazia, então, um cavalo de batalha, por reduzir ainda mais o papel dos sindicatos.

A degradação das organizações sindicais no administrativo é uma consequência do seu sucesso. Claro que onde as quotizações não são obrigatórias, o sucesso está sempre em risco. Mas será isso suficiente para os precaver de um "desvio empresarial"?

Por outro lado, é preciso entender o papel de engrenagem no regime de um modo não simplista. A democracia precisa de sindicatos inertes que respeitem as formas de um "contrato social" e de sindicatos "reivindicativos" que não as respeitem e que, pelo menos na aparência, coloquem até um desafio ao próprio regime.

A democracia precisa de ambos e, nesse sentido, os dois tipos de sindicalismo se podem tornar administrativos.

A outra questão (a indexação) é igualmente muito interessante.

É frequente, com efeito, criticar-se esse mecanismo do ponto de vista aqui assumido. Mas isso equivale a dizer que a função sindical é perfunctória, visto que podia ser suprida com êxito e maior segurança, neste caso, através duma actualização salarial automática. O único inconveniente é o de que os sindicatos ficariam "desempregados". Há melhor exemplo de uma organização que se tornou o fim de si mesma?

Recusar a indexação nestes termos parece, pois, uma atitude simplesmente defensiva, como é, por exemplo, a rejeição liminar dos acordos de empresa.

É verdade que tudo isto reduz o papel dos sindicatos, mas isso só significa o "fim do sindicalismo" se este não enxergar para além das necessidades da organização e não procurar criar as novas funções de que necessita como de "pão para a boca".

terça-feira, 24 de junho de 2008


Vila do Conde (José Ames)

MERGULHOS



"Quando um homem entra na água até aos joelhos, ou até à cintura, pode ver a água em torno de si. Em contrapartida, se mergulhar na água, deixará de poder discernir algo de fora; tudo o que sabe é que todo o seu corpo se encontra na água. Isto é o que sucede àqueles que se deixam imbuir no olhar de Deus."

Simão, monge poeta (949/1022), citado por Peter Sloterdijk


A metáfora é intuitiva. É certo que ninguém sabe o que é estar imerso no olhar de Deus, mas a ideia funciona se aceitarmos que, tal como do elemento líquido, nos podemos dele rodear inteiramente, a ponto de não vermos mais nada e termos apenas o conhecimento do nosso corpo.

Fuga do mundo ou regresso ao elemento amniótico, Sloterdijk vai mais longe e diz que era preciso recorrer a uma psicopatologia da espiritualidade para distinguir o impulso místico do masoquismo ou da vontade de suicídio.

E isto já é, evidentemente, uma "censura". Basta que nos transportemos, por exemplo, para a Índia, para o activismo da nossa fuga do mundo parecer, por sua vez, patológico.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

PAIXÃO MUNDANA


Madeleine Lemaire (o modelo de Mme Verdurin?)


"Eu tinha esquecido que os Verdurin começavam, mundanamente, uma evolução tímida, amortecida pelo caso Dreyfus, acelerada pela música "nova", evolução aliás por eles desmentida, e que continuariam a desmentir até que tivesse sucesso, como esses objectivos militares que um general só anuncia quando foram atingidos, de modo a não ter o ar de derrotado se falhar."

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


A paixão mundana retratada por Proust é quase incompreensível para nós, nestes tempos em que a esfera privada de tal modo se desenvolveu que quase só a profissão ou os negócios sustentam o que resta da mundanidade.

Mas mais importante do que essa "privatização", em que as relações virtuais adquirem cada vez mais espaço, é talvez, em consequência da democracia, o desaparecimento de certas classes, com o seu código exclusivo e a sua cultura.

Uma carreira mundana tinha, então, para um jovem o mesmo significado que hoje tem o dinheiro e o consumo distintivo.

O snobismo de Proust foi a chave que lhe deu acesso aos "aquários" mais selectos, para estudar alguns peixes raros.

Um homem da sua inteligência só podia salvar-se da decepção através da literatura.


(José Ames)

O CUIDADO DA ALMA


"A Morte de Séneca" (Luca Giordano)


"Sextus interrogava a sua alma: "de que defeito ficaste curada; que vício combateste; em que é que te tornaste melhor? Também Séneca procede todas as noites a um exame desse género. A obscuridade - " a partir do momento em que a luz se retira" - e o silêncio - "quando a sua mulher se cala" - são as condições exteriores."

"O Cuidado de Si" (Michel Foucault)


A luz já não se retira, nós é que a desligamos. É como se tivéssemos perdido um ritual fundado na Natureza.

Mas a conversa da mulher dá lugar ao silêncio, como se ela fosse a última a recolher das vozes do mundo.

Sem mais precauções, Séneca remete todos os seres para a escuridão e o silêncio e entrega-se ao diálogo de "dois em um", na expressão de Arendt.

domingo, 22 de junho de 2008


Nápoles (José Ames)

VAGAS ESTRELAS DA URSA


"Vaghe stelle dell'Orsa" (1965-Luchino Visconti)


Vaghe stelle dell'Orsa. O verso de Leopardi serve de título ao filme de 1965, de Luchino Visconti.

A beleza de Claudia Cardinale (Sandra) que ganha aqui uma tonalidade selvagem e misteriosa, o cenário nocturno e tempestuoso fazem desta história de incesto um dos filmes mais fascinantes do mestre.

As figuras da Orestíade perfilam-se por detrás da mãe enlouquecida e do padrasto odiado que segundo os irmãos teriam denunciado o pai, um cientista judeu, atirando-o para o campo de concentração. Para este Egisto, o ódio explica-se pelo incesto que irmão e irmã querem erguer contra o mundo.

Quando Sandra volta com o marido ao palácio da família, em Volterra, outra Argos, esse passado retoma o seu império sobre ela, levando-a a encarnar a nova Electra e a obedecer à lei do sangue imposta pelo irmão, Gianni (Jean Sorel). Este escreveu um romance em que o incesto é um facto consumado. Acaba por destruí-lo e se suicidar perante o repúdio de Sandra que escreve ao marido uma carta de reconciliação.

É de crer, mas o filme não o chega a dizer, que ao saber do suicídio, a tragédia retomará os seus direitos sobre Sandra, levando-a a abdicar do seu desejo de uma vida normal.

As vagas estrelas não terão assim cessado de tecer a sua trama.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

MÍSTICA SOCIAL


Walker Evans - "Subway"


"Homens vigorosos, na força da idade, adormecem de fadiga no banco do metro. Não depois de um duro golpe, depois de um dia de trabalho normal. Um dia tal como haverá outro amanhã e depois de amanhã, sempre. Descendo para o metro, ao sair da fábrica, uma angústia ocupa todo o pensamento: será que vou encontrar um lugar sentado? Seria demasiado duro ter de ficar de pé. Mas muitas vezes é preciso ficar de pé. Atenção nesse caso para que o excesso de fadiga não impeça de dormir! No dia seguinte seria preciso forçar ainda um pouco mais."

"La vie et la grève des ouvrières métallos" (1936-Simone Weil)


Simone, professora de filosofia, consegue uma licença prolongada para conhecer mais de perto a experiência operária, como outros fizeram antes e depois dela.

A sua falta de saúde e o hábito de pensar tornam essa experiência mais difícil do que seria para um operário normal. Mas não importa, mais do que à vontade de conhecer, ela obedece à mística da partilha duma condição próxima, naquele tempo, da servidão.

Quantos se sentiriam hoje atraídos por uma tal experiência, quando os humilhados da terra e os futuros libertadores da humanidade não se encontram já nas fábricas modernas?

E a própria fadiga do trabalho cruza-se no metro, cada vez mais, nas nossas cidades, com a fadiga dos prazeres. Nessa situação em que, como diz Georg Simmel (citado por Benjamin), as pessoas se encontram "durante muitos minutos, ou mesmo horas, a olhar umas para as outras sem dizerem uma palavra."


(José Ames)

O SONHO DE CASSANDRA


"Cassandra's Dream" (2007-Woody Allen)


Não sei se não prefira "Cassandra's Dream" entre os filmes londrinos de Woody Allen, por ser um drama em que a ironia do destino está tão presente.

Os dois irmãos Ian (Ewan McGregor) e Terry (Colin Farrell) compram um pequeno iate que dá o título ao filme, com o dinheiro da sorte. Mas logo a seguir a sorte muda e Terry perde ao jogo uma enorme quantia, enquanto que Ian vive acima dos seus meios com a nova namorada.

Para darem a volta à situação, contam com o dinheiro de um tio (Tom Wilkinson), mas este encontra-se igualmente em apuros e pede-lhes em troca que cometam um assassinato.

A ambição de Ian predispõe-no a passar à acção sem muita discussão, mas Terry está cheio de dúvidas e recorre ao álcool e às drogas para acompanhar o irmão.

Depois do assassínio, quando a vida de ambos podia "singrar" com a ajuda do tio reconhecido, Terry deita tudo a perder com os seus problemas de consciência, anunciando a Ian que se vai entregar à polícia. Este, de acordo com o tio, decide encenar o suicídio do irmão, mas ambos encontram a morte a bordo do Cassandra.

A figura do tio materno, homem de sucesso, com negócios na China e na Califórnia, objecto de um culto familiar, é essencial para tornar aos olhos de Ian o assassinato como mais um investimento de risco.

Entre os dois irmãos existe a diferença entre o estanque e o permeável, para empregar dois termos que tem a ver com as embarcações. Ian pode isolar o passado e seguir em frente, mas em Terry, ele infiltra-se por todas as fendas da consciência.

quinta-feira, 19 de junho de 2008


Algés (José Ames)

PEDIR O IMPOSSÍVEL


William O'Brien arrested
(http://www.jamd.com/image/g/73650319)


"A violência, sendo instrumental por natureza, é racional até ao ponto em que é efectiva no alcançar do fim que a justifica. E uma vez que quando agimos nunca conhecemos com alguma certeza as consequências do que estamos a fazer, a violência só pode manter-se racional se perseguir objectivos a curto prazo."

"On violence" (Hannah Arendt)


A verdadeira maldade tem então de ser racional, ou cairia na categoria das consequências indesejadas e não previstas da acção humana.

Como nem sempre podemos reconhecer o erro, porque é fácil encontrar justificações para o fracasso das nossas razões, a violência, neste caso, e por aquela definição, também não é racional.

Arendt cita as palavras de um agitador irlandês do século dezanove, William O'Brien: Às vezes "a violência é a única maneira de assegurar que o apelo à moderação é escutado."

Este é um paradoxo do tipo: "se queres a paz, prepara-te para a guerra."

No entanto, tem todo o sentido, se pensarmos que antes de haver condições para pensar é preciso que se estabeleça alguma espécie de ordem e de silêncio. Que isso se consegue muitas vezes com um murro na mesa, é da sabedoria das nações.

Mas esta outra frase encerra o segredo daqueles actos políticos que nos parecem, as mais das vezes, confusos e até de todo negativos: "Pedir o impossível para obter o possível nem sempre é contraproducente."

Na verdade, frequentemente, ninguém sabe o que é possível, nem mesmos os governos, e o resultado de um "braço de ferro" social ou político é quase sempre imprevisível, pelo menos em democracia.

Claro que os protagonistas não podem pensar que o que reivindicam é impossível sem, ao mesmo tempo, moralmente se enfraquecerem. Por isso, preferem, geralmente, suspeitar nos que se lhe opõem os piores motivos, a desonestidade e até a vontade de injustiça (uma consequência da chamada justiça de classe) para obter o possível com toda a "superioridade moral" que podem.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

MARCADOS E NÃO-PREOCUPADOS


Peter Sloterdijk


"Quem, apesar de tudo, reconhece ou sente "esta vida" como delimitada e perdida de antemão, já não pode ser absorvido pela embriaguez vital como os mundanos não-marcados que, graças ao seu não-recordar do limitado, são imortais."

"O Estranhamento do Mundo" (Peter Sloterdijk)


"Os marcados metafisicamente têm de se preocupar em descobrir outra imortalidade - uma imortalidade que é concebida mais celestial e não-nata que a dos mortais correntes não-preocupados em demasia com o nascimento e com a morte." (ibidem)

Tanto os "marcados" (como pelo destino) como os não-preocupados se dedicam a alguma forma de negação do mundo.

Uns, recusando limitar a realidade, isto é, eles próprios, ao drama humano, recusando ver na morte o fim de algo de que não conhecem o princípio. Os outros, não se colocando questões difíceis ou insolúveis e deixando-se inebriar pela vida.

Ou seja, uns pensando a imortalidade, os outros vivendo-a. E não se nega o Mundo como casulo, mas o Cosmos sem a Humanidade.


Gaia Transfigurada (José Ames)

A PROJECÇÃO DO PROJECTADO


Buster Keaton em "Sherlock Jr."


A última cena de "Sherlock Jr.", de Buster Keaton (1924), é a árvore de Jessé de toda uma tradição em que o cinema, em vez de imitar a vida, fornece o modelo à própria vida.

Buster é o projeccionista que acaba de acordar de um sonho em que as idas e vindas entre o ecrã e a sala se faziam já sem solução de continuidade. A namorada entra nesse momento com a prova da sua inocência e ficam ambos, um diante do outro, sem ideia do que fazer para selar a reconciliação. Buster, olha então para o que se passa no ecrã e imita com toda a segurança os gestos do galã.

Tão reveladora, como uma profecia, do papel que estava destinado ao cinema, principalmente no amor, que é preciso perguntar quanto do imaginário deste, na sua forma moderna, surgiu directamente da sala escura.

terça-feira, 17 de junho de 2008

A JUSTIÇA DO DIABO


Mikhail Bulgakov (1891/1940)


A ideia do romance de Mikhail Bulgakov "O Mestre e Margarida" podia ser resumida assim: quando toda uma sociedade diz uma coisa querendo dizer o contrário, liberdade em vez de tirania, solidariedade em vez dum cúpido cada um por si, quando os valores se encontram de tal modo desencontrados com as palavras que os significam que é preciso recorrer ao "double thinking" futurado por George Orwell, então não é a Deus que se tem de pedir justiça, mas ao Diabo.

E é vê-lo nesta genial fantasia defender o dramaturgo que diz na sua peça sobre Cristo que todo o poder é violência, contra os servos da União de Escritores oficial e, enfim, instalando o pandemónio fazendo chover no teatro os bens de consumo, denegridos mas mais do que tudo desejados, para expor depois na sua ridícula nudez os que se tinham enfarpelado com esse fugaz produto da magia negra.


Lisboa (José Ames)

CONVERSÕES



"Plutarco apoiava-se em Zenão para lembrar que é um sinal de progresso deixar de sonhar que se tem prazer em acções desonestas. Invocava as pessoas que têm força suficiente durante a vigília para combater as paixões e resistir-lhes mas que à noite, "libertando-se das opiniões e das leis", deixam de ter vergonha: desperta então neles o que possuem de imoral e de licencioso."

"O Cuidado de Si" (Michel Foucault)


Aquilo que haveria de ser uma grande oportunidade para a psicanálise, o filão dos sonhos que revelam a ambivalência moral daquele que consegue expulsar as "desonestidades" no seu comportamento desperto, para o autor das "Vidas Paralelas", no século II, era algo de misterioso e que escapava ao poder dos homens.

A ideia de Freud foi a de conceber na parte censurada uma energia tal que não pudesse sempre ser convertida em sonhos e se tivesse de "exprimir" também nos sintomas da doença.

A sua audaciosa dedução foi a que os sonhos deviam guardar algum eco desse conflito sob a forma de "uma história mal contada".

segunda-feira, 16 de junho de 2008


(José Ames)

O LIMITE DA IGNORÂNCIA


Gilles Deleuze (1925/1995)

Uma das mais apaixonantes questões abordadas na entrevista a Gilles Deleuze (1988/89) é a do nível de entendimento de, por exemplo, uma noção científica como a relatividade.

Porque é evidente que ninguém esgotará a profundidade de uma questão, nem mesmo um especialista, sendo que a especialização, a partir de um certo nível, é ela própria um obstáculo à compreensão do que liga uma tal noção a coisas como a linguagem e a cultura.

Pelo que todos, sem excepção, têm de assumir a responsabilidade, até certo ponto, de falarem do que não sabem.

Por outro lado, Deleuze chama a atenção para o facto da ignorância sobre música, digamos, não ser um obstáculo a uma emoção autêntica.

"De certa forma, a questão não é já compreender. Nas minhas aulas, nas aulas que dei, era evidente que as pessoas compreendiam uma parte e não compreendiam outra. Um livro é assim para todos. Compreendemos uma parte, outra não."

Isso explica, naturalmente, para além do facto de nós mesmos mudarmos, que o mesmo livro possa ser uma revelação cada vez que voltamos a ele.

Se temos de falar é, pois, como diz o filósofo, "no limite da própria ignorância."

Aquilo de que precisamos saber depende do nosso interesse, do que queremos fazer.

De certo modo, todas as ideias estéticas ou científicas podem ser postas a dialogar umas com as outras. Um linguista ou um filósofo encontrarão aí alimento para o seu trabalho e a sua paixão.

E então, o importante não é compreender a teoria da relatividade, mas ter dela uma ideia suficiente.

Deleuze refere-se à opinião de alguns matemáticos que tendo lido a sua obra disseram: "Para nós, isso funciona."

E isto corresponde já, não é verdade, a uma troca de posições. Porque aqui são os matemáticos que têm de ignorar algo da filosofia para a traduzirem em termos da sua arte.

domingo, 15 de junho de 2008


Aeroporto (José Ames)

OS FILHOS DO POWER POINT



Uma notícia de "O Público" sobre o efeito perverso dos exames nacionais ("há um enfoque "desproporcionado" na Língua Inglesa, na Matemática e nas Ciências, enquanto as outras disciplinas são negligenciadas.") e a pressão dos alunos para aprenderem apenas o que pode sair nos exames, não quererem compreender, mas "só saber como se faz", nem sequer "terem aberto as obras de leitura obrigatória e ainda assim responderem ao exame" fazem-me lembrar um outro efeito perverso, relatado no programa da BBC "The Trap", dos objectivos de eficiência, para os serviços públicos, fixados pelo governo de Blair, com hospitais a negligenciarem os doentes só para atingirem as metas, ou convocando-os na época de férias para reduzir as listas de espera.

O paralelismo é pertinente, porque tanto num caso como noutro se trabalha para a estatística e se parte do princípio que os indivíduos podem ser controlados através do seu comportamento intrinsecamente egoísta. Como cada qual luta pelo seu próprio interesse, o melhor é tirar partido dessa "lei", através de critérios de medição "objectivos" da sua eficiência, em vez de esperar deles coisas ultrapassadas como o sentido de dever e de responsabilidade, para não falar do altruísmo.

Porque é evidente que se interessa ensinar apenas em função do que vai sair nos exames, é porque estes não são suficientemente representativos das várias disciplinas e da matéria de cada uma e também porque o professor é já um parâmetro estatístico, entalado que está entre o prémio e o castigo em função de resultados práticos elevados à categoria da evidência científica, tal como nas empresas, de resto.

Ora, se num mundo em acelerada evolução, o importante é que os alunos aprendam a pensar (e o legado cultural é aqui indispensável, porque se aprende mais com os erros dos que nos antecederam do que com as verdades feitas), a habitual lamúria de que a escola não prepara os alunos para o mundo do trabalho é um grande equívoco.

E aquilo que distingue a escola duma empresa percebe-se claramente do que Deleuze disse do professor, citando a sua própria experiência: as aulas devem ser ensaiadas, uma e outra vez, a fim de que possam surgir os 5 ou 10 minutos de inspiração que modificam a vida de um aluno.

sábado, 14 de junho de 2008

A COLECÇÃO



Em "The Collection", de Harold Pinter, filmada por Michael Apted em 1976, dois casais entregam-se a um duelo verbal de amor-ódio que faz as nossas delícias.

Talvez tudo tenha começado pelo tédio ou pela arte de espicaçar o amor desfalecente com a paixão da verdade sobre o outro, pelo ciúme.

Stella (Hele Mirren), que tem uma boutique de moda, decide inventar um "affair" com Bill (Malcom McDowell), estilista de moda, com quem se cruzou em Leeds, na apresentação da sua colecção.

O marido, James (Allan Bates), procura obter uma satisfação de Bill que de princípio se mostra escandalizado mas que, pouco a pouco, se deixa fascinar pela ambiguidade da situação, corroborando a história de Stella.

A outra figura do casal de homossexuais é Harry (Lawrence Olivier) que vive com o companheiro, muito mais novo, uma relação conflituosa. No momento das revelações, o velho justifica pela origem social a imoralidade do rapaz. A maneira como Olivier o define como um slum's slug (uma lesma de pardieiro) é todo um tratado de preconceito classista.

Harry faz então uma investigação por sua própria conta para tudo esclarecer no final.

James, tranquilizado, parece ficar livre da sua obsessão, não fosse Bill dar um retoque maligno à versão "definitiva": afinal teria conversado com Stella no vestíbulo do hotel sobre o que fariam se tivessem subido para o quarto...

E Stella, ao ouvir a decisão do marido, não confirma nem desmente e fica-se por um sorriso tão enigmático como o olhar (moralmente) vesgo de Vénus.


(José Ames)

ULTIMA VERBA


Sócrates


"Com a sua pergunta de como havia de enterrá-lo conseguiu Críton a última réplica humorística de Sócrates - pelos vistos, diz o mestre, para este homem tem sido inútil tudo o que tenho dito, pois continua a confundir-me com o cadáver que, dentro de pouco, jazerá aqui. Pouco depois, Sócrates pediu que fosse misturada e trazida a bebida."

"O Estranhamento do Mundo" (Peter Sloterdijk)


Sócrates pensa na sua lição magistral, está sob o efeito do peso histórico das últimas palavras, a ponto de parecer ignorar a realidade comezinha dos despojos.

E, num sentido, isso já não é, realmente, com ele. Nada do que possam fazer os "sobreviventes" pode alterar o facto dele, estando morto, não ter de lhes responder.

Mas, noutro sentido, o mesmo da sua futura existência simbólica, o destino do corpo não lhe devia ser indiferente.

O cadáver ultrajado confronta-se no mesmo terreno simbólico com o prestígio da última lição.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

O ESTADO SELVAGEM


Paul Valéry (1871/1945)


"O habitante dos grandes centros urbanos volta a cair no estado selvagem, que o mesmo é dizer, no isolamento. A sensação de depender dos outros, antes sempre estimulada pela necessidade, vai decaindo progressivamente no funcionamento sem atritos dos mecanismos sociais. Cada aperfeiçoamento desse mecanismo pressupõe a eliminação de determinados tipos de comportamento e de certas emoções..."

Paul Valéry ("Cahier B"), citado por Walter Benjamin


O individualismo triunfante nas sociedades ocidentais é a consequência desse desenvolvimento.

A eficiência do mecanismo social permite-nos "imaginar" uma independência que não sobreviveria um segundo à prova dos factos.

Pensar a verdadeira situação humana nas sociedades desenvolvidas não é, portanto, nem fácil, nem natural.

Poder-se-ia dizer, no entanto, que na ilusão do individualismo os mercados e todo o sistema funcionam melhor. Isto é, vão mais directamente ao seu fim (e entenda-se isto nos dois sentidos).

Estaremos então a dar razão a Marx quando dizia que a violência (e não o pensamento político ou a doutrina económica) é a parteira da História.


"Jornal Gratuito" (José Ames)

A VERGONHA


Fábulas de Esopo ( Sir Roger L'Estrange)


"A atitude moral não pode ser abstraída dos seus efectivos compromissos em situações reais. Não há moral a priori, uma vez que não há valores universais. Não existe um único preceito que se possa sustentar como absolutamente válido - a menos que ele não seja susceptível de interpretações contraditórias."

"La foi d'un incroyant" (Francis Jeanson)


Uma atitude que não nos custa nada, sem esforço, sem correr o risco de levantar a oposição ou o juízo condenatório por parte dos outros, não tem real significado, mesmo que esteja de acordo com a letra de um preceito.

É por isso que a virtude é tanto maior quanto maior for a força que lhe resiste. A castidade de um velho não tem qualquer valor, assim como a frugalidade em quem tem apenas o necessário para não morrer de fome.

Mas é claro que a situação no mundo, a situação real, não é tudo, e por si só não criaria um problema ético.

É preciso que a nossa decisão se possa comparar com um valor que, na verdade, não criamos na liberdade da nossa consciência, mas que está ali para julgar os nossos actos como uma espécie de mundo que se apaga com a nossa falta de fé no que nos salva, como diz Deleuze, da "vergonha de ser homem".

quinta-feira, 12 de junho de 2008


(José Ames)

A NOÇÃO DE VALOR



"Será seguro que alguma coisa tenha um valor? Não será tudo igualmente sem valor? Uma tal questão é vazia de sentido, não somente porque não pode haver um método para procurar a resposta, mas por uma razão mais profunda. O poder de colocar uma tal questão repousa inteiramente sobre o poder de juntar palavras; mas o espírito não pode verdadeiramente colocar essa questão; não pode verdadeiramente estar incerto sobre se a noção de valor é ou não uma coisa fictícia. Porque o espírito é essencialmente, sempre, de qualquer maneira que seja disposto, uma tensão para um valor; não pode considerar a própria noção de valor como incerta, sem considerar como incerta a sua própria existência, o que lhe é impossível."

"Quelques réflexions autour de la notion de valeur" (Simone Weil)


O pensamento mais original da filósofa encontra neste texto uma das suas mais claras nascentes.

Sem dúvida que é visível a influência de Platão e de Descartes neste dualismo que nenhuma ambiguidade vem obscurecer.

O método da física (da necessidade platónica) não pode aplicar-se ao domínio dos valores (do Bem). O que ela diz é que o espírito não pode ser coisa, nem objecto de medida. Mas que, em vez disso, é ele que julga a coisa em função da sua própria lei.

Não crendo em si, não pode ser essa "tensão para um valor" de que fala Simone e torna-se mera existência, tal como as operações possíveis de uma calculadora não são espírito em nenhum sentido.

O "poder de juntar palavras", por outro lado, é a causa mais frequente de se "tomar a nuvem por Juno". A definição não faz a coisa. E podemos descrever um bicho de sete cabeças que só exista nas palavras.

Isso quer dizer que nem todas as perguntas que podemos formular correspondem a problemas reais (um pouco no sentido da objecção de Wittgenstein) e que a filosofia se deverá distinguir da opinião e da logomaquia por partir da realidade dos problemas.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

DELEUZE E A ESQUERDA



Ainda a entrevista de Deleuze. O filósofo explica, com toda a naturalidade, por que razão foi de todos os seus amigos o único que não passou pelo PC.

Era muito trabalhador e não gostava de reuniões. Nunca pôde suportar essas intermináveis sessões em que alguns ou alguém fala sempre muito. Perguntava-se se não seria mais do interesse do partido que esses universitários trabalhassem na sua tese, em vez de recolherem assinaturas ou distribuirem "L'Humanité", tarefas que ele, por timidez, além disso, achava demasiado penosas.

Suponho que tudo isso não terá passado, na altura, quando se pensava que a Revolução era uma necessidade moral e que o método estava avalizado pela ciência, sem algum sentimento de culpa.

A meia dúzia de anos antes da sua morte, pôde dizê-lo com uma nuança de ironia e com a serenidade de alguém que tinha há muito concluído que as revoluções não podem senão acabar mal.


Lisboa (José Ames)

O MÉTODO


Biblioteca da Sorbonne


"De resto ele tinha pouca simpatia pela Nova Sorbonne onde as ideias de exactidão científica, à alemã, começavam a prevalecer sobre o humanismo."

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


Brichot, o insigne professor da Faculdade e habitué do salão Verdurin toma assim partido contra a reorganização do ensino que vai transformar a instituição napoleónica na universidade inspirada no "método, reputado germânico" (Antoine Compagnon).

Nesta crise o que é interessante é que a reforma não seja vista como mais de acordo com o progresso das ciências e os novos valores utilitários do que a tradição clássica, que é o que hoje nos parece.

Não, esse debate surge sob a forma do nacionalismo e da histórica rivalidade entre duas nações.

Não há dúvida que o conceito de método, em vez de suscitar a ideia da verdade ou do erro, do conservadorismo ou do progresso tem aqui toda uma carga crítica da famigerada disciplina alemã.

terça-feira, 10 de junho de 2008

OS DIREITOS DO HOMEM


Gilles Deleuze e Félix Guattari


Deleuze, na sua entrevista de 1988, com Claire Parnet, fala dos Direitos do Homem em confronto com a jurisprudência que, segundo o filósofo, distinguiria a esquerda.

Os Direitos do Homem seriam uma abstracção e um exemplo do pensamento "mole" do período do deserto, e só intelectuais vazios de ideias exagerariam a sua importância. Foca o caso do enclave arménio atacado pelos Turcos, obrigando a população a refugiar-se na república soviética. Isso ocorre ao mesmo tempo do terramoto que sacode a região, como num argumento sadiano. Não é uma questão de Direitos do Homem, mas um caso de jurisprudência. O que fazer em relação ao enclave, questão de território.

Mas, evidentemente, se existe um desequilíbrio de forças, o direito não se chega a criar, ou é o direito do mais forte.

Por outro lado, não se deve menosprezar o poder das ideias e da chamada política de prestígio. Os Direitos do Homem podem ser abstractos, mas não há ditadura que não ambicione esconder a sua repressão aos olhos do mundo, que não tente até onde puder ludibriar a opinião pública internacional. Tudo isso é revelador de como as abstracções podem ter um papel positivo. E haveria jurisprudência sem o uso de conceitos abstractos?


(José Ames)