quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

"Vitrina" (José Ames)

O PARADOXO DO SAMURAI




"Esta falta de preocupação pelo estranho ao grupo é dramaticamente ilustrada pela tradição conhecida como "experimentar a espada nova", ou tsujigiri. A palavra japonesa significa, literalmente, "corte de cruzamento". Para que uma espada fosse aceitável para um samurai, tinha de ser capaz de trespassar um adversário, do ombro ao flanco oposto, de um só golpe. Participar numa batalha com uma espada incapaz de fazer isto poderia significar a desonra."

"Como havemos de viver?" (Peter Singer)

Assim, para experimentar a sua espada nova, esperava num cruzamento, "até que um camponês incauto, ou qualquer viajante não-samurai, calhasse passar por ali. Então com um só golpe, tentaria dividir o infeliz em dois."

Isto para relevar o terrível paradoxo do espírito tradicional japonês que aliava uma fortíssima e algo exótica solidariedade de grupo a uma indiferença em relação aos estranhos, que podia chegar a extremos como o daquela tradição samurai.

O Japão tradicional fornece, assim, um exemplo de falta de integração do indivíduo na sociedade como um todo. Ora, a sociedade democrática, através dos seus sub-sistemas, parece tender para algo de semelhante, conforme as teses de Niklas Luhmann.

E embora o indivíduo tenha aqui maior visibilidade, o que se pergunta é até que ponto isso corresponde a um conceito de acção (e, logo, de participação)?

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

(Toledo)

O OLHAR ETNÓLOGO

http://www.superlocal.ch/salem/wp


"Mas, se são percebidos como estranhos, o motivo é precisamente esse: a sua inteligência é demasiado penetrante, a sua dedicação demasiado grande; são especialistas na tribo, não membros dela. São seus servidores, talvez os seus salvadores, mas não são feitos da mesma massa homogénea."

"O Poder das Ideias" (Isaiah Berlin)


Berlin analisa o fracasso de todas as experiências históricas de assimilação das comunidades judaicas. A maior perspicácia sobre as leis e a natureza da sociedade em que viviam, era uma questão de sobrevivência. Eles tinham que conhecer os gentios, melhor do que eles se conheciam a si mesmos. E isso mesmo os mantinha separados e culpados, ainda que involuntariamente, de "objectividade".

Os judeus, sempre acompanhados da sua religião portátil (Debray), dos textos sagrados e do seu Sião celestial, tornavam-se, assim, o eternamente outro, por causa dessa primeira necessidade de conhecer, de "descobrir como os seus anfitriões funcionam." A assimilação era, pois, logo de início afastada, como não desejada, nem aprovada pela religião e isso, em todo o lado, reproduzia a inultrapassável distância.

Algo de semelhante se pode encontrar no olhar etnológico. O etnólogo estuda o homem primitivo, com toda a justiça de que é capaz, mas nunca a um mesmo nível de humanidade.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

A DESIGUALDADE FUNCIONAL





"Em primeiro lugar, cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema, o mais amplo possível, de liberdades de base iguais para todos, que seja compatível com o mesmo sistema para os outros. Em segundo lugar: as desigualdades sociais e económicas devem ser organizadas de modo a que, ao mesmo tempo, (a) se possa razoavelmente esperar que sejam em benefício de cada um, e (b) que estejam ligadas a posições e a funções abertas a todos."

"A Theory of Justice" 
(John Rawls, citado por Paul Ricoeur em "Soi-même comme un autre")

Poder-se-ia dizer, de outro modo, que todas as desigualdades na repartição da riqueza e dos rendimentos seriam em benefício de todos, se fosse possível estabelecer o limite a partir do qual "as transferências sociais se tornariam contraproducentes.Rawls é acusado, à direita, por igualitarismo ("prioridade aos mais desfavorecidos") e, à esquerda, por "legitimar a desigualdade." A sua resposta ao primeiro grupo é que "a uma desigualdade arbitrária, as vantagens dos mais favorecidos seriam ameaçadas pela resistência dos pobres ou simplesmente pela falta de cooperação da sua parte." Ao segundo grupo: "uma solução mais igualitária seria rejeitada unanimemente, porque todos ficariam a perder."

É óbvio, porém, que a experiência desse limite a partir do qual o sistema ( e, aqui, não só o capitalismo ) penalizaria todos por um acréscimo de igualdade económica não tem qualquer possibilidade de ser realizada.

Mesmo admitindo que exista um tal limite, a impossibilidade da sua demonstração permanentemente alimentará o debate moral, transformando, porventura, uma questão técnica, em metafísica social.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

(José Ames)

EGOMETRIA

http://www.reneelevy.com/Dessins


"(...) aquilo que esquecemos ter dito, ou mesmo o que nunca dissemos vai provocar a hilaridade, até num outro planeta, e a imagem que os outros fazem dos nossos actos e gestos parece-se tão pouco com a que fazemos de nós mesmos, quanto com um desenho qualquer falhado decalque em que a um traço negro correspondesse um espaço vazio, e a um espaço em branco, um contorno inexplicável."

"Le côté de Guermantes" (Marcel Proust)

Esta verdade psicológica que encontra tantas confirmações na sabedoria popular, do género de "ver o argueiro no olho do vizinho e não a tranca no nosso" não é, contudo, a última palavra.

Porque, por outro lado, aquilo a que se chama a fé em si próprio parte do princípio oposto de que são os outros que não acertam, por reduzirem todos os seus juízos a uma empírica mediania.

E o conformismo não é outra coisa senão essa vontade de nos corrigirmos em função de tais juízos.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

(Pula)

ECONOMIA E VACAS SAGRADAS

http://images.google.com/imgres?imgurl=http://www.martusfs.com/



No país em que se admira o mercado quase como uma religião, o que acontece quando ele falha tão estrondosamente como acontece com o sistema de saúde?

Nada.

O sistema criou anticorpos suficientes para que já não pareça possível resolver o problema por métodos democráticos.

"Pior, 15% dos cidadãos não têm cobertura de seguro de qualquer espécie - o que deveria ser uma estatística surpreendente para a mais rica economia do mundo, mas provavelmente não é, porque isso é objecto de lamentações há tantos anos. Compare-se isto com a Alemanha, onde 0,2% da população não tem cobertura, ou com o Canadá e a Grã-Bretanha, onde toda a gente tem essa garantia do governo."
Mas por que não funcionam os seguros?

"Algumas pessoas que têm despesas mais prementes do que o seguro de saúde (por exemplo, os jovens pobres, que têm pouco dinheiro e justamente antecipam que não vão ficar gravemente doentes) saem do sistema. Como resultado, as companhias de seguros, precisando de cobrir os seus custos, aumentam os prémios para o cliente médio, afastando cada vez mais pessoas."

Contrariamente ao modelo dos "limões" absolutos (selecção adversa, na gíria dos economistas), o mercado não entra completamente em colapso. Porquê?

"Em parte, porque muitas pessoas acham que os riscos de terem de pagar por tratamento médico são tão preocupantes que estão dispostas a pagar substancialmente mais do que um prémio actuarialmente justo."

E, também, porque os grupos mais jovens são constrangidos a aceitar um pacote de seguros com o seu emprego.

Os custos duma gigantesca burocracia (as companhias têm de "monitorizar os riscos, o comportamento e as despesas dos seus clientes") pesam na ineficiência do sistema, sobretudo quando se pensa que, com muito menos custos, outros países garantem um serviço universal.

"Os cuidados de Saúde nos EUA custam um terço mais, por pessoa, do que ao seu rival mais próximo, a super-rica Suíça, e duas vezes mais do que muitos países europeus gastam."

Portanto, neste caso, o mercado não funciona, e o que funciona só é possível graças à falta de alternativas e a uma espécie de imposto privado sobre os mais jovens, atrelando o seguro ao emprego. Tudo isto ao mesmo tempo que se deixam milhões de pessoas sem qualquer cobertura.

Talvez o governo pudesse fazer melhor. Mas, como diz o autor: "infelizmente, enquanto os mercados podem falhar, os governos podem também falhar. Políticos e burocratas têm as sua próprias motivações."

(citações do livro de Tim Harford, "The undercover economist")

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

(José Ames)

OS SEGREDOS DA CONFIANÇA



"Citizen Kane" (1941-Orson Welles)



"Porque é contrário à função e ao estilo da confiança exigir ou fornecer informações factuais detalhadas e provas objectivas, se bem que a possibilidade de uma tal explicação possa ser sugerida. O perito pode constituir um perigo para o político e os seus argumentos, se ele se puser a argumentar no mesmo sentido. Porque quanto mais o político fornece argumentos, menos é necessário ter confiança nele e mais se torna indiferente saber quem realiza o programa. Ou ainda quando a questão da confiança permanece mesmo assim real, a acumulação de argumentos trai uma incerteza que provoca a retirada da confiança."


"La confiance" (Niklas Luhmann)



Porque não é possível afastar a incerteza da política é que a confiança se torna necessária.

Mas o paradoxo referido por Luhmann que é o de quanto mais se demonstrarem as razões para os outros terem confiança em nós, menos ela ser necessária, como se a argumentação equivalesse de facto a um menor grau de incerteza, ainda é mais interessante quando se revela que a argumentação é até contraproducente. 
E pode-se ver aqui um pouco da natureza do poder, que tem algo de sagrado e de primordial, como o deixa pressentir a palavra hierarquia.

Em vez das certezas partilhadas, o que se exige do poder é uma espécie de solidão visionária e inspirada. E, neste caso, a confiança está muitas vezes na origem dos mitos.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

(José Ames)

VÁLVULAS

Speakers' Corner, Hyde Park, Londres


Sempre admirei o génio prático dos Ingleses. Por exemplo, essa instituição sui generis que é o Speakers' Corner, onde toda a palavra, por mais politicamente inconveniente que seja e dentro de limites legais, fixados com razoável tolerância, pode ser proferida ou ouvida por quem quiser. Às vezes, encontra-se um carro da polícia por perto, mas tanto para proteger o orador como impedi-lo supostamente de "descarrilar".

O problema é que esta liberdade é exercida no único ponto do país onde não faz sentido dizer a verdade. Nunca passará pela cabeça de qualquer opositor político que se preze recorrer a esse púlpito para dizer o que pensa.

Esse lugar está marcado, seja o que for que ali se diga, pela insignificância, embora, ocasionalmente, como aconteceu em 2003 aquando dum protesto contra a guerra no Iraque, possa ser ocupado por verdadeiros manifestantes numa tentativa de desviar o símbolo do folclore para a actualidade.
A liberdade não está aprisionada numa jaula, como o tigre, para descanso do turista, mas não é uma liberdade a sério. O que é que lhe falta?

Falta-lhe o sentido e o risco de uma verdadeira acção. Ali, a liberdade é como que o fim de si mesma, como a sua pura forma num museu ao ar livre.

O parentesco desta instituição com o Carnaval é flagrante. Até as piores ditaduras consentem no Carnaval. Carne levare.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

O JUDEU DESNATURADO

Abraão e Isaac ( Rembrandt)

"Na aversão de Weil à sua própria identidade étnica, na sua denúncia estridente da crueldade e do "imperialismo" do Deus de Abraão e de Moisés, na sua quase histérica repugnância perante aquilo a que chamava o excesso de judaísmo no catolicismo, ao qual, finalmente, recusou unir-se, as marcas duma clássica aversão ao Judaísmo são levadas ao clímax da perturbação mental."
"Paixão intacta" (George Steiner)

Este, o terceiro dragão de Simone: o seu alegado antijudaísmo (segundo H.L. Finch). E o pior, para Steiner, é a sua "recusa de encarar, entre o seu eloquente pathos em relação ao sofrimento e à injustiça, os horrores, o anátema que estava a ser infligido ao seu próprio povo."

É claro que a sua aversão ao "imperialismo" de Jeová e o seu silêncio em relação à perseguição e ao massacre em massa dos judeus que, de facto, é pouco provável que desconhecesse, ainda que só no final da guerra fosse revelado ao mundo toda a extensão do horror, não seriam problemas se Simone não fosse judia.

Mas nesta crítica está implícita, não é verdade, uma concepção religiosa do judaísmo. Como se qualquer distância em relação às origens étnicas fosse uma traição ontológica e devesse ser lida, conforme o método psicanalítico, como um sintoma. Esta ideia, de facto, invalida toda a possibilidade para um judeu de ser um "cidadão do mundo".

Se aplicássemos esta "chave" a Marx, por exemplo, podíamos reduzir a sua crítica do capitalismo ao espírito irreconciliável de um povo marcado pelo destino a ter que ser diferente.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

(Pallanza)