quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

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Vila do Conde (José Ames)

 

A JUSTIÇA ORDINÁRIA




"Esta aventura, que já não tinha muito a ver com as boas disposições da côrte para a paz, (...) junto à aparição dum arauto, que surgia como saído duma máquina, no momento oportuno, indiciava, do modo mais visível possível um desígnio formado. Todo o Parlamento o via, como toda a gente; mas estava na natureza deste Parlamento deixar-se cegar na prática, pois está tão acostumado, pelas regras da justiça ordinária, a prender-se às formalidades, que nas extraordinárias nunca é capaz de as separar da substância."


"Mémoires" (Cardinal de Retz)



Quantos exemplos na nossa história recente desta incapacidade das organizações políticas de 'separar o trigo do joio'!

Às vezes, como aconteceu com a espécie de ultimato de Sócrates, aquando do PEC IV, não houve, na oposição, quem desse prioridade à 'substância' e, com isso, abriu-se a 'caixa de Pandora'. Como no caso do Parlamento 'frondeur' de que fala Retz, estava-se mesmo a ver.

A 'cegueira' não é, evidentemente, dos indivíduos que pensam pela sua cabeça, mas do 'sistema' dos partidos. O co-adjutor de Paris, não dispondo ainda deste conceito, chamava-lhe 'justiça ordinária' e apego às formalidades.

Quando Marx escreveu sobre aquilo a que ele chamou de 'democracia burguesa', não aplicou a esta nem aos seus órgãos a ideia de um sistema. Estreou-a na economia política, aplicada ao capitalismo.

Os seus herdeiros na 'praxis' histórica estavam, de facto, mais cegos em relação à burocracia soviética do que Retz, no que diz respeito ao Parlamento de Paris do século dezassete.


quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

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(José Ames)

 

AS NOSSAS CERTEZAS

S. Jerónimo



"Quando o Novo Testamento foi traduzido do Grego para o Latim por S. Jerónimo, 'pistis' tornou-se 'fides' ('lealdade'). 'Fides não tinha forma verbal, assim, para 'pisteuo' Jerónimo utilizou o verbo latino 'credo', uma palavra derivada de 'cor do', 'dou o meu coração'. Ele não pensou em utilizar 'opinor' ('defendo uma opinião').


"The case for God" (Karen Armstrong)



A fé não é uma opinião, qualquer que seja o grau de convicção... Mas poderei dizer 'penso que isto é verdade' sem 'crer' de alguma maneira?

Quando o homem de ciência faz uma declaração 'verdadeira até prova em contrário' exprime uma opinião fundamentada no método científico, ou 'confia', 'dá o seu coração', acredita, enfim, que a sua declaração é verdadeira (ou a que mais se aproxima da verdade)?

Parece que estamos no domínio da 'lealdade' e do 'coração', tanto quanto do 'discurso do método'. No amor, por outro lado, não é e admissível o limite do 'até prova em contrário'. Porque o amor é 'contra as provas', ou apesar delas.

É aqui que se separam as águas. A crença está na origem de todas as nossas certezas. Mesmo para sustentar uma hipótese científica é preciso algo de mais importante do que a lógica. Mas a fé do 'credo' tem qualquer coisa do amor. É 'incorrigível' face à experiência.

Noutro domínio, é preciso compreender assim o horror ao 'revisionismo'.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

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Lisboa (José Ames)

 

A ESCOLA DE ATENAS

"A Escola de Atenas"


"A pessoa fatiga-se de ser Platónica, e é isso que significa Aristóteles [...]. É preciso viver; e, todavia, isso foi o que Platão nunca disse."
(Alain)

 

Há uma acepção popular da palavra platónico. Toda a gente sabe o que quer dizer. Designa qualquer coisa de irrealizável e, no emprego mais comum, referida ao sexo, a palavra significa a não-consumação e a irrelevância.

Singularidade do filósofo que nos deu um novo vocábulo remotamente ligado às ideias que professou ou será que esse 'amor platónico' tem a ver com a nossa maneira de ser e de pensar? Por outras palavras não representará esse conceito o molde de todos os idealismos?

Platão ter-se-á 'limitado', então, a descrever o espírito 'tout court'.

O 'Doutor Jivago', por exemplo, é um testemunho sobre essa necessidade de viver, premente e urgente, face à ideia grandiosa que representava a Revolução. Os piores tiranos foram homens duma ideia. Mas também os heróis e os santos foram impiedosos à sua maneira.

Viver com as raizes no céu não é possível por muito tempo. É a altura do discípulo se revoltar contra o mestre. Aristóteles trouxe o peso terrestre (que a Igreja, mais tarde, fez outra vez levitar). Os dois momentos são necessários, como o gesto do indicador para cima ou para baixo, de Da Vinci e Miguel Ângelo que nos representa Rafael na 'Escola da Atenas'.

Enfim, não foi só Platão que nunca o disse, pois Aristóteles, pela sua parte, também não.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

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(José Ames)

 

O PRECURSOR ENVIESADO

"Django Libertado"




O problema decisivo para Lincoln, a escravatura no seu país, nó górdio que custou uma guerra civil, foi revisitado por Tarantino que lhe dedicou uma espécie de ópera bufa que representa um fantasmático e heróico corte desse 'nó'. Tal como tinha feito, de resto, em relação ao nazismo, com 'Inglourious Basterds'.

A linguagem do 'western-spaguetti presta-se ao estilo truculento e ao grafismo do sangue do cineasta. O triunfo de Django é uma antecipação feérica do desfecho da guerra que estava ainda para vir.

Pelo meio, o racismo de lugares como o Mississipi, o anacronismo gritante do sistema de castas nele inspirado é o motivo de algumas cenas extraordinárias, como a do 'raid' dos Ku Klux Klan 'prejudicado' pelas fendas para os olhos mal cortadas. O líder, diante o problema dos encapuçados não verem, aconselha-os a deixarem-se guiar pelos cavalos. Ou da lição de frenologia de Monsieur Candie, dono da plantação.

Um racista diria que este é um filme de 'nigger-lovers' que pretendem refutar a tese da frenologia de Candie, inventando, 'a posteriori', um 'Spartacus' no Mississipi.

Mas é mais justo dizer-se que o verdadeiro herói do filme é a Némesis do 'faz-de-conta', com os olhos postos na plateia do 'politicamente correcto'. Graças a esse olhar, o filme pode até ser dirigido aos sulistas.

domingo, 27 de janeiro de 2013

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Lisboa

JANELAS DESFASADAS

Nassim Taleb



Como diz Taleb, os bónus são oferecidos pelos bancos "numa janela de curto prazo, digamos, anualmente, por medidas que só estoirarão a cada cinco, dez ou quinze anos" ("The Black Swan").

Todos os nossos actos têm consequências, muitas das quais podemos prever e que, na sua maioria, não afectam terceiros. Mas o que é que acontece no mundo digitalizado, nas redes do sistema financeiro, estádio hiperrreal do capitalismo, cujas réplicas (como nos sismos) ninguém pode conhecer?

A segunda maior crise do sistema em menos de um século está aí para condenar a capacidade de previsão dos Órgãos do sistema e o grau de loucura que levou o excesso de confiança dos decisores a teorizarem, com a ajuda de técnicos em alta matemática, a ideia da 'desregulação'.

Os responsáveis pela crise global (como a internet é global) ficaram imunes às consequências dos seus actos, porque se continua a julgar estes crimes segundo as leis da economia clássica. Como a 'explosão' é diferida não podem ter sido eles os culpados. Que guardem pois os seus bónus, que levaram tanta gente à miséria.

Mais grave do que isso, os 'donos' do sistema (tipo Goldman Sachs), com a sua metodologia de destruição, continuam a ditar as avaliações e a conduzir os negócios. O sistema mostrou a eficácia da sua blindagem contra a realidade, recompensando o erro e o abuso tecnológico.

sábado, 26 de janeiro de 2013

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(José Ames)

 

OUVINDO RACH

Sergey Rachmaninov



Ao ouvir o extraordinário 3º concerto para piano e orquestra e a sua dificílima cadenza, acorrem as metáforas sugeridas pelo timbre dos instrumentos ou pelo ritmo inebriante (as cavalgadas do Finale, os rarefeitos planaltos do solista).


A certa altura surge uma fulguração de espaço, como se o que acabamos de ouvir não tivesse desaparecido com a sucessão de outra coisa, mas como se pairasse ainda tal uma nuvem: ao fortíssimo sucede uma espécie de silêncio, criando-se sob o peso da nuvem sonora um vácuo donde emerge o fio de voz do piano. O tempo parece concentrar-se num cristal.

É sem dúvida preciso ler a pauta para alcançar uma "geografia" da escuta, mas em certos momentos essa espacialização do tempo acontece.

A táctica deste lirismo que noutras obras atinge quase a "sensiblerie", é a de um sucessivo desatar de nós, dum permanente adiar, de reter as forças e de frustrar o clímax a que só falta declarar-se "com todas as letras", para, enfim, os instrumentos, já libertos dos entraves do percurso, exalarem, como num último suspiro, o tema.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

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Antas (José Ames)

 

REGRESSO AO ÉDEN



Adão e Eva (Albert Dürer)




"Idealmente, a educação é uma estratégia de defesa civil contra as consequências dos media."

Marshal Mc Luhan


Suponho que na origem deste pensamento esteja ainda a ideia do bom selvagem de Rousseau. Seríamos naturalmente bons, é a civilização que nos afasta do humano.

E é o que diz também a parábola da árvore da sabedoria do Génesis. Uma paixão feminina levou à nossa expulsão do Éden. A partir daí, foi preciso penar, através do trabalho e do conhecimento, e este foi, de facto, o verdadeiro nascimento do Homem.

Todas as nossas ferramentas tiveram por efeito modificar o mundo e a nossa consciência dele. Não poderíamos, mesmo se quiséssemos, devolver o fruto proibido e dar como não dada a trincadela de Eva.

Só se pode, pois, entender aquele pensamento de Mc Luhan se aceitarmos que os media, enquanto extensões do nosso cérebro, não são simples ferramentas.

Eles afectam directamente a nossa consciência do mundo e, em certa medida, até fabricam esse mundo. E essa é uma situação nova.

Educar seria então uma luta para recuperar a realidade e aquilo a que se poderia chamar o espírito da Terra.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013



José Ames

O CATIVEIRO DAS REDES







Em tempos e ritmos diferentes, noutros níveis, visíveis e invisíveis, a vida à minha volta, vinda de não se sabe onde e indo para onde não se sabe, nada perdendo pelo caminho, mas tudo destruindo e renovando.

A morte que avança, já a descoberto, na cama articulada, ou ainda velada na doença que em nosso corpo se vai urdindo, o embrião já formado no útero da grávida.

Posso imaginar tudo isto como minúsculos cursos de água convergindo para o grande estuário, ou como processos representados por números e gráficos, dando a ideia a quem os soubesse ler que estaria no controle de tudo, como num bloco operatório ou numa régie.

De facto, o mais difícil, o que é quase milagroso é escaparmos às redes que as palavras nos lançam, e com as quais nos capturam, como a peixes que perderam o largo.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013



Funchal (José Ames)

O FILÓSOFO DA FLORESTA NEGRA


Martin Heidegger (1889-1976)

UMA NOITE DE INVERNO

Quando a neve se encosta à janela,
O sino da noite toca vagaroso.
A mesa está aprontada para muitos
E o lar é bem governado.
Algum caminhante
Chega ao portão por sendas tenebrosas.
A árvore da graça resplandecente floresce
Da seiva fresca da terra.
O caminhante entra silencioso;
A dor empederniu o umbral.
Quando reluzem em clareza pura
Em cima da mesa pão e vinho.

Georg Trakl (tradução de Adriana Coman)

Heidegger, que se encontrou, há alguns anos, no centro duma polémica indecidível a propósito do seu passado, para muitos, é o filósofo capital do século XX.

Gostaria de compreender como é que o seu pensamento que, no fundo, defende a passividade e a escuta (o deixar aparecer) face à palavra e à linguagem o predispuseram para cair num logro tão grosseiro como foi o de se ter deixado seduzir pela imagem dum falso Prometeu.

Em vão procuraremos um sistema em Heidegger ou conceitos como os dos filósofos que o antecederam. Porque é a poesia e a língua alemã que quase se conceptualizam. Daí as nuances dum pensamento tão subtil como a interpretação dum verso de Hölderlin ou de Georg Trakl, mas que nos põe diante do mesmo dilema que a psicanálise: tudo faz sentido, mas estaremos ainda dentro da tradição do saber?

Há aqui uma espécie de fatalismo inspirado, avesso à Razão (que nos deu o mundo da técnica), mas fraco ante tudo o que se reclame do "transcendente na imanencia", que se proclame oriundo da raiz de tudo o que é.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

(José Ames)

A ESSÊNCIA E O ÍCONE



Miguel de Cervantes


O "Dom Quixote" está cheio de digressões e de histórias dentro da história principal. É ainda um repositório das convenções literárias de alguns romances de cavalaria, sendo a sátira deles.

Os encontros como o de Cardénio e Lucinda ou Zoraida e o capitão com o irmão deste sucedem-se sem quaisquer problemas de verosimilhança.

É um pouco como antes da introdução da perspectiva na pintura do Quatrocento. Como o fundo é deixado ao arbítrio ou aos ensinamentos da Igreja e a distância não é realmente tida em conta nas relações das figuras entre si, podemos perfeitamente passar duma prisão em Argel para a estalagem espanhola onde o irmão da personagem já desesperava de o encontrar.

A ideia de unidade da obra e do género literário não se punha para Cervantes.

Se o seu herói se presta, e mais do que nunca, a manter-se um símbolo actual é apesar dessa proliferação de desvios e de sub-enredos, embora um "Dom Quixote" expurgado não fosse mais quixotesco. Seria, porventura, o que hoje teria escrito Cervantes, com a consciência do marxismo, da psicanálise e de outras ideias que entretanto tiveram o seu tempo.

Mas a lógica desse desbaste do romance, à procura da sua essência, levar-nos ia apenas mais depressa ao ícone moderno, sem história, nem profundidade.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

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Parque de S. Roque (José Ames)

 

O DEUS DA ROLETA




"Temos provas de que as ilhas mais pequenas têm mais espécies por metro quadrado do que as maiores e, claro, do que os continentes. (ambientes maiores são mais capazes do que os mais pequenos - permitindo que os maiores fiquem ainda maiores, a expensas dos mais pequenos, através do mecanismo da ligação preferencial)"


"O Cisne Negro" (Nassim Taleb)


Segundo o autor, a 'Mãe-Natureza' não aprecia as chamadas 'economias de escala' (veja-se o destino dos dinossauros) nem o que os economIstas entendem pelo conceito de optimização (parece que, pelo contrário, a natureza aposta na 'redundância' e nas 'peças sobresselentes').

A 'Mãe-Natureza' tem sobre os auto-proclamados cientistas do êxito económico e das projecções sobre o futuro a vantagem de 'andar por cá há muito mais tempo'.

Os grandes organismos são mais vulneráveis às ocorrências raras, mas devastadoras, como se viu com o banco Lehman Brothers. Nos anos setenta, circulou um slogan que dizia 'small is beautiful', que era mais verdadeiro do que parecia, pois o pequeno também é o mais apto na luta pela sobrevivência.

Se pudéssemos medir o poder das ideologias que tornam o nosso mundo mais problemático, apenas para benefício e protecção de certas elites, ficaria patente que o próprio Estado é refém desse sistema.

É verdade que não andamos muito longe do Estado de classe e do papel da ideologia definidos pelo marxismo. Haveria, contudo, que expurgá-lo de todas as profecias em que só podia falhar, por ter exorbitado da análise teórica do capitalismo do tempo.

A actualidade do lado político só se mantém, apesar das pretensas 'leis históricas', porque se chegou, nesta fase do capitalismo financeiro globalizado, a uma polarização extrema das sociedades, como nos EUA, entre o 1% dos ricos que detêm 30% da riqueza e os 99% restantes, polarização que já não pode configurar a luta de classes, senão por absurdo. Muito menos estamos perante um novo modelo da pirâmide social. Poderíamos pensar na teocracia do Antigo Egipto, se os sacerdotes fossem substituídos pelos 'banksters'...e se o sistema de castas fosse substituído pelo deus da roleta.

domingo, 20 de janeiro de 2013

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(José Ames)

 

O NARIZ DE OSAMA



Podíamos, para diminuir o trabalho de Bigelow, perguntar qual é o seu 'parti pris' neste seu primeiro filme depois do notável "The Hurt-Locker". Critica o governo do seu país? A tortura? 'Compreende' a luta dos radicais da Al Qaeda?

Mas temos que nos impor essas questões, tal é a integridade e a força deste cinema (apesar de algo distraídos pelos cones de pipocas e de, às vezes, termos de fazer a experiência, tão conhecida de alguns professores, da displicência tribal de certa juventude).

É fundamental a identificação com Maya (Jessica Chastain), a especialista da CIA que, ao contrário de Carey ("Homeland"), não tem um trauma para explicar a sua paixão. Ao fim e ao cabo parece mesmo que a captura de Bin Laden se deveu à sua obstinação.

É a primeira vez que vemos o trabalho de destruição da tortura, não sobre a vítima, o que é comum, mas sobre o torcionário. Já não estamos na situação dos carrascos nazis que simplesmente 'cumpriam ordens'. Este torcionário é frágil. Depois, o 'êxito' da inquisição pode comparar-se sempre com o número de sacrificados a menos. Bigelow não acusa. Regista e parece querer demonstrar que, para além da violência e da desumanidade, há um lugar para a razão, quando a parte mais fraca destrói as suas raízes.

Cinema de acção, com estrita economia de meios, sem sub-intrigas nem 'figuras públicas' (que sempre gostamos de ver interpretadas e como que ao nosso alcance). Obama não aparece, não é com a política que termina o filme, mas com o espanto no rosto de Maya.

Bill Laden é um nariz em 'contre-plongée'. Uma linha sinuosa que explica muito da história da última dúzia de anos.

sábado, 19 de janeiro de 2013

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Afurada (José Ames)

 

O ENSINO EM COCANHA







Eduardo Prado Coelho chegou a expressar a opinião, no "Público", de que a Pedagogia não é uma ciência. Dou-lhe razão, porque não é, de facto, e por serem, dum modo geral, intolerantes e fechadas ao diálogo as pessoas que se reclamam duma falsa atitude científica. Os métodos de ensino têm mudado ao sabor dos ventos, desde que se abandonou um modelo que todos reconheciam como anacrónico.

Para aumentar a confusão, a tecnologia tornou-se um problema dentro doutro, ao ponto de, em muitos casos, se terem invertido as relações naturais da educação.

Ainda no outro dia, ouvi a uma professora, na televisão, dizer que era preciso admitir, sem complexos, que os alunos, nessa matéria, sabiam quase sempre mais do que os professores. Depois, foram entrevistados alguns adolescentes, cada qual com o seu palmarés de horas de jogo no computador, observando um deles, candida e orgulhosamente, que os seus pais "não pescavam nada daquilo". Isto parece o país de Cocanha.

As crianças e os adolescentes sempre tiveram a sua competência lúdica, em geral, superior à dos seus progenitores, quanto mais não fosse por estes já se terem esquecido de que também foram crianças.

O que se passa é que existe, em grande parte dos adultos ( e sobretudo nos "resistentes à mudança", como se diz nas empresas), uma atitude supersticiosa em relação ao mundo dos computadores, em que se mistura o medo do desconhecido e a rendição acrítica ao prestígio da máquina inteligente que veio revolucionar as nossas vidas e tornar, da noite para o dia, todos as outras usanças e saberes obsoletos.

É preciso que a informática ( que é coisa totalmente diferente dos jogos), como qualquer disciplina, seja ensinada por quem sabe. E a relação entre quem ensina e quem aprende não pode ser, enquanto tal, uma relação entre iguais. É necessariamente assimétrica e envolve formas próximas do sagrado (na origem da palavra hierarquia), para o que, de resto, a diferença de idades é propícia.

A isto poderá objectar-se que sempre houve quem aprendesse sozinho e quem hoje possa aprender dum modo chamado interactivo com uma máquina.

O que nos leva a esta outra questão: aprender é receber informação, ou é muito mais do que isso?

A escola deve transmitir os "bytes" ou formar pessoas e cidadãos?

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

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(José Ames)

 

INESSA





"Ela (Inès) está zangada, mas como sempre com as mulheres, isso cobre-se de uma outra roupagem: o disfarce das 'divergências teóricas'"

"Lénine à Zurich" (Soljenitsyne)


Todo um programa nestas palavras! Inessa Armand não tem, realmente, divergências teóricas com Oulianov, está apenas decepcionada com ele, como amante e com a sua fidelidade indefectível a Krupskaya. Continuaria ainda zangada quando criticou o acordo de Brest-Litovsk que permitiu aos bolcheviques livrarem-se da guerra mundial?

Quanto ao disfarce das verdadeiras razões de uma disputa, os homens não são menos useiros do que as mulheres. Tais artifícios são, de resto, muito úteis na diplomacia.

Aquele 'como sempre' de Soljenitsyne é um puro preconceito que, no despique entre os sexos, revela o receio do homem de ser ultrapassado pela astúcia feminina, ou o de ver arrastar a questão para o terreno dos sentimentos onde a mulher reina indiscutivelmente.

São confissões como esta (dum preconceito arreigado) que prendem a escrita à terra.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

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Lisboa (José Ames)

 

A JUSTIÇA ESPECTÁCULO

Federico Fellini

"É por isso que o tempo da autoridade judiciária, o tempo de uma longa retrospectiva, diverge do tempo do poder executivo, apanhado num presente complexo que a decisão do juiz vem ainda complicar mais, parecendo ser do campo dessas escavações arqueológicas que bloqueiam os projectos dos construtores.

(Michel Rouger)

Vem-me logo à ideia a cena dos frescos soterrados descobertos pelas excavações do metro no "Roma" de Fellini. Suponho que nem sempre esse escrúpulo e essa sensibilidade histórica tenham sido motivo do atraso das obras, mas a cena dá uma ideia de que o passado não é apenas memória dos indivíduos e pode também ressurgir como um problema actual de identidade colectiva.

A função 'retrospectiva' da justiça de que se trata aqui (na verdade, integradora do passado e do presente no todo da dimensão humana) é, evidentemente, utópica e levaria à historização e à relativização do acto concreto que constitui a injustiça. O juiz deveria, neste sentido, concorrer com Deus.

Toda a justiça é falhada, segundo esta ideia, e a urgência fala sempre mais alto. Temos, aliás, alguma percepção do que significaria esta justiça 'divina' no arremedo que constitui o 'politicamente correcto', o qual não é necessariamente melhor do que o que os marxistas chamam de justiça de classe...

Todavia, os tempos são mais propícios a uma justiça mediatizada que faz fogo tanto do presente como do passado. O Grande Animal (platónico) é, assim, o verdadeiro juiz.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

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(José Ames)

 

POR QUE EXISTE O NADA?





"'Por que existe o nada em vez de alguma coisa?' Finalmente, não há resposta a isso, já que o nada procede do mito, do crime original, enquanto que algo procede do que é costume chamar-se de realidade. Ora bem, o real nunca é seguro. A pergunta passa então a ser, não 'donde vem a ilusão?', mas 'donde vem o real?' Como é possível que inclusivamente exista um efeito do real? Aí está o verdadeiro enigma. Se o mundo é real, como é possível que não seja desde há muito tempo racional? Se é só ilusão, como pode engendrar-se um discurso do real e do racional? Mas existe precisamente outra coisa além de um discurso do real e do racional? É possível que não tenha existido nunca nenhum progresso em direcção a mais ciência, a mais consciência e objectividade, e que tudo isso não passe de um discurso de intelectuais e de ideólogos a quem desde há três séculos tem proporcionado um benefício considerável?"

"O crime perfeito" (Jean Baudrillard)



O Iluminismo terá sido esse discurso sobre o real e o racional que engendrou a ideia moderna do progresso que a crítica do século XX demoliu. Pode fazer-se um balanço deste século sem considerar que, apesar de todas as conquistas da ciência, pelas suas guerras e as suas distopias, representou sobretudo o choque duma realidade não racional, desintegradora de qualquer ideia de progresso?

O profetismo de Nietzsche encontrou nesse século uma fácil verificação. O profeta do anti-humanismo anuncia um novo mito, o do super-homem que mais não é do que o regresso ao 'natural' e ao domínio das forças.

Enfim, a partir da ruína do pensamento e das cidades, ressurgiu a ilusão com todos os atributos da adaptação darwinista. A pergunta de Baudrillard leva-nos a inquirir sob que forma voltaram o real e o racional. E talvez se possa dizer que o real faz parte da ilusão sob a forma da incerteza. A razão foi 'redimensionada' em conformidade. Só os economistas acreditam ainda que o racional é real.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

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CCB (José Ames)

 

O DIÁLOGO DAS LIMUSINAS


Depois da limusine de Cronenberg, na parábola sobre o capitalismo chamada 'Cosmopolis' (na Rússia de Putin, os noivos gostam de se fazer fotografar junto aos monumentos, saindo destes símbolos do novo-riquismo e do gangsterismo), Leos Carax abre-nos o mundo do cinema e do romantismo hugoliano através dum fabuloso Denis Lavant (Monsieur Oscar) e dos seus 'rendez-vous' com as várias vidas de Paris, a partir duma limusina-camarim conduzida pela enigmática Céline (Edith Scob).


Percebemos que a personagem de Lavant é uma espécie de actor a quem é distribuído um guião que o leva a encarnar as grotescas personagens que parecem colar-se-lhe à pele e viver à vontade no seu corpo de contorcionista.


Há uma história de amor no terraço do hotel Samaritaine, que é a súmula de todos os desencontros. E há a cena retro-futurista no cemitério do Père Lachaise, em que é brilhantemente sugerido o que vai acontecer à memória dos mortos. A eternidade foi substituída pela internet. Em todos os túmulos, em vez do 'aqui jaz' um endereço no cyber-espaço: 'visitai o meu 'site'.


Estes 'sketches' de Monsieur Oscar podem representar os 'reality shows' de amanhã, em que a liberdade se vive toda no virtual e a velha humanidade se reduzirá a um diálogo de limusinas, já recolhidas à garagem, depois de terem servido de camarim e ponto de apoio aos diversos actores e aos seus simulacros. E de que falariam em tempo de crise? Do seu medo de perder o emprego.

 

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

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(José Ames)

 

O TRIUNFO DE BACO

"O triunfo de Baco" de Velasquez



Tenho diante de mim uma reprodução do "Triunfo de Baco" que se encontra no Prado.

Abstraio-me da escala que só por si estabelece uma outra relação com o corpo. Mas a cópia conserva ou não o essencial?

Aquele céu manchado e que é função dos tons castanhos e amarelos da roupagem e da pele (uma declinação em azul desse espaço, ao encontro do céu de verão, obrigaria a descompor todas as outras cores), o deus pálido e balofo, produto da ociosidade citadina, no meio daqueles rostos e mãos tisnadas de gente rude, como uma parábola da moderna alienação social, tudo está ali.

E também o tom de farsa desta magnífica pintura e que faz dela um objecto da constelação cervantina e a torna única e tão espanhola como o nosso Malhoa é português.

Aquele soldado a quem Baco coloca a corôa de louros, que talvez se ria à socapa, é Sancho Pança armado cavaleiro, por "nele ser bem empregue a ordem de cavalaria".

Os mendigos que formam a corte de testemunhas são cúmplices duma comédia, na qual só não se ri o deus, filho de Semele, porque é o único que com a verdade do vinho a todos engana.

Como a loucura das altas cavalarias do herói de Cervantes também esta comédia se encarna num mundo que já não é ficção e em que a embriaguês confunde todas as fronteiras.

domingo, 13 de janeiro de 2013

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Lisboa (José Ames)

NINOTCHKA


"Ninotchka" de Ernst Lubitsch



Ninotchka, antes da sedução: - "Quem sou eu para custar sete vacas (era a diária na suite real do hotel parisiense) ao povo russo?"

Na sedução, alguém ou alguma coisa chama a si, desviando-nos do caminho.

No filme, é depois do riso que tudo é diferente. Todos os diques se rompem. Mas não foi, claro, o riso que atraiu. Ele solta, desfaz, depõe com um encolher de ombros.

Não é um valor, é o fim da importância.