quarta-feira, 31 de março de 2010


Afurada (José Ames)

O TRIUNFO DA ECONOMIA



"Agora, eu quero que o leitor especialmente observe que chegámos a estas formas de perfeito traçado gótico sem a mais pequena referência a qualquer prática de qualquer escola, ou a qualquer lei ou autoridade quaisquer que fossem. São formas que, essencialmente, nada têm a ver quer com os Godos quer com os Gregos. São formas eternas, baseadas nas leis da gravidade e coesão; e nenhumas outras melhores ou tão boas poderão alguma vez ser encontradas, enquanto as presentes leis da gravidade e coesão subsistirem."

"The stones of Venice" (John Ruskin)


Longe de decorrerem de qualquer sistematização, essas formas foram encontradas "acidentalmente", a partir de experiências num ponto implicando compensações e correcções noutro lugar, sempre sob a batuta do mestre implacável que é a gravidade terrestre.

A primeira coisa que surpreende neste regime de construção, exigindo grandes recursos materiais e humanos, é essa liberdade de invenção, como se o tempo não contasse ( e, com efeito, muitos desses estaleiros de catedrais foram transeculares). Poderia, no nosso tempo, existir um equiparável desprezo pelo orçamento ou o calendário? Que tribunal de contas aceitaria o critério do "ad majorem Dei gloriam"?

terça-feira, 30 de março de 2010


(José Ames)

AD MAJOREM DEI GLORIAM


"(…) ela (a vida) exige que cada coisa seja funcional, e satisfaça certas necessidades. A cultura encontra-se ameaçada quando todos os objectos e coisas do mundo produzidos pelo presente ou pelo passado são tratados como puras funções do processo vital da sociedade, como se só existissem para satisfazer alguma necessidade."

"La crise de la culture" (Hannah Arendt)


A funcionalidade da arte, a necessidade de expressão do artista ou o desejo de auto-aperfeiçoamento do espectador, diz Arendt, são coisas "com tão pouca relação com a arte e são historicamente tão novas que somos tentados a despachá-las como preconceitos modernos."

A catedral gótica, por exemplo, poderia responder à necessidade religiosa com outro tipo de construção que não tivesse sobrevivido mais do que a própria habitação dos crentes, mas corresponderia isso à ideia que na altura se tinha da glória de Deus?

Na medida em que essa ideia de Deus evitou que os templos desaparecessem do mundo como as coisas consumíveis, ela foi uma fonte de cultura. Porque cultura deriva "de colere – cultivar, permanecer, cuidar, manter, preservar – e reenvia primitivamente para o comércio do homem com a natureza, no sentido de cultivo e manutenção da natureza com vista a torná-la adequada à habitação humana."

Há, pois, um elemento de permanência, abrangendo múltiplas gerações, que é necessário a essa habitação. É essa permanência que a sociedade de consumidores põe manifestamente em causa. A pergunta que se põe é, assim, se, fora dos monumentos de outras épocas, existe alguma coisa naquilo que produzimos que não pertença ao ciclo do consumo, que não seja feita a pensar exclusivamente nas nossas necessidades vitais, requalificadas, evidentemente, pela sociedade de informação, como o parece indicar a preponderância do pensamento económico?

segunda-feira, 29 de março de 2010


Alcafache (José Ames)

A INVEJA DE ANDREIA


"A Inveja" de Giotto


Andrée é a melhor amiga de Albertine, no romance de Proust. É uma personagem fascinante, capaz de nos fazer compreender os paradoxos de algumas pessoas que todos conhecemos. Nenhum tratado de psicologia nos podia dar essa visão penetrante que dissipa os cúmulos misteriosos da complexidade humana.

A generosidade de Andrée é real e pode parecer às vezes abnegação. Não é o animal astucioso e saudável que a sua amiga nos dá a ideia de ser. Esta, não sofreria por não ser por ela que a felicidade dos outros vem. Porque Andrée pode ter todas as qualidades, mas não é desinteressada. Só que o seu interesse é apenas de opinião. Ela precisa de ser confirmada na sua virtude e rói-se por dentro se não for ela a causa da alegria dos outros.

O seu desprendimento aparente, a sua devoção aos amigos não são os indícios duma alma verdadeiramente generosa só porque nunca se esquece dessa sua reivindicação fundamental. A sua virtude, embora eficaz, não é pura.

Andrée seria destinada por Dante ao segundo socalco do Purgatório: o da inveja.

domingo, 28 de março de 2010


(José Ames)

UM BOOKMAN


Basílica de S. Paulo em Roma


"Não é só que Paulo de Tarso foi, muito provavelmente, o adido de imprensa e o virtuoso de relações públicas mais capaz de que temos registo; ele foi também, muito simplesmente, um dos muito grandes escritores da tradição ocidental. As suas epístolas contam-se no número das obras-primas duráveis da retórica, da alegoria estratégica, do paradoxo e 'de la peine cuisante' de toda a literatura. O simples facto que S. Paulo cita Eurípides atesta um bookman, um homem do livro quase nos antípodas do Nazareno que ele metamorfoseia em Cristo."

"Les Logocrates" (George Steiner)


A parte da literatura no Cristianismo e em todas as "religiões do Livro" dificilmente pode ser exagerada, porque nós nem sabemos até que ponto é essencial.

A questão da forma e do médium pode explicar o caminho percorrido, como o quis mostrar, por exemplo, Régis Debray ("Dieu: un itinéraire"), mas não pode substituir-se à pergunta da religião.

É provável que as doutrinas sejam como as espécies naturais e que só as mais complexas e adaptáveis possam vingar. A poesia e o mito são as formas que mais se adequam à luta pelo sentido. Como diz Santo Agostinho, a literalidade é para as crianças. O crente pode sempre reconhecer-se num poema.

S. Paulo, com a sua prosa magnífica, ajudou à estrutura óssea do movimento e à sua extraordinária longevidade.

Mas sempre que for preciso um renovo, devemos passar adiante dos estrategas, dos retóricos e dos "adidos de imprensa". Com a indicação do Mantuano em mente: "Non ragioniam di lor, ma guarda e passa".

sábado, 27 de março de 2010


Alqueva (José Ames)

A PAIXÃO DO REAL




"Queria também dizer-te: a passagem desta vida tão dura à minha vida actual, eu sinto que isso me corrompe. Compreendo agora o que é um operário que se torna 'permanente'. Eu reajo tanto quanto posso. Se me deixasse ir, esqueceria tudo, instalar-me-ia nos meus privilégios sem querer pensar que são privilégios."

(Simone Weil, fin de décembre 1935, lettre à Albertine Thévenon)


A experiência de alguns meses de fábrica deixou na jovem Simone Weil a marca da escravidão.

"Há dois factores, nesta escravidão: a velocidade e as ordens. A velocidade: para 'conseguir' é preciso repetir movimento após movimento numa cadência que, sendo mais rápida do que o pensamento, proíbe não somente o curso da reflexão, mas até o da 'divagação' (rêverie). (…) As ordens: desde que se pica o ponto à entrada até que se volta a picar à saída, pode-se a cada momento receber uma ordem qualquer. E é preciso sempre calar e obedecer. A ordem pode ser penosa, implicar perigo na execução ou ser mesmo inexecutável; ou então os chefes podem dar ordens contraditórias; isso não importa nada: calar e submeter-se." (ibidem)

A franzina professora de filosofia, "de passeio (en vadrouille) pela classe operária" não estava preparada para uma experiência tão dura. O próprio facto de ter metido uma licença com fim à vista não ajudava, como não ajudava a sua constituição física e o desígnio de pensar, apesar de tudo, as condições do trabalho.

É curioso que o sentimento quase poético que nos transmite uma recordação de Albertine Thévenon possa ter sugerido a Simone a ideia dum "lugar onde nos confrontamos duramente, dolorosamente, mas ainda assim com alegria, à verdadeira vida."

Albertine diz que "chegando a Saint-Chamond, ao cair da noite, experimentou a alegria de se sentir em casa ao ver uma fábrica com as oficinas iluminadas, cuja luz projectava a sombra das máquinas, das correias e das roldanas através dos vidros."

"Sentir-se em casa" ao mesmo tempo que se sofre a dura necessidade é uma ideia que anuncia já a espécie de martírio que foi o final da vida da filósofa, tanto quanto a "corrupção" que para ela significa deixar de sofrer.

sexta-feira, 26 de março de 2010


(José Ames)

O REGIME DO TÉDIO



Na "Guerra e Paz" de Tolstoi, o conde Rostov, enquanto mostrava a sua colecção de cachimbos turcos, deixava de tempos a tempos o estúdio para perguntar se ela já tinha chegado. "Estavam à espera de Marya Dmitrievna Akhrosimova, conhecida em sociedade como um terrível dragão, uma dama que se distinguia, não pela sua riqueza ou o seu estatuto, mas por falar segundo o bom senso e a plena franqueza."

É preciso compreender o que é uma sociedade regida pela etiqueta em que, como diferentes mecanismos respondendo às vénias uns dos outros, as pessoas, entre si, naturalmente acabam por excluir os gestos inesperados e os pensamentos que possam ferir, mesmo remotamente, a sensibilidade duma velha tia, a quem a dona da casa infalivelmente apresenta os convidados.

O tédio absoluto é o que costuma resultar dum tal regime. Vemos no "Vermelho e o Negro", de Stendhal, o exemplo duma jovem aristocrata que faz questão de se rebelar contra a regra, mas essa impertinência, uma vez aceite, constitui ela própria uma cortesia.

No romance de Tolstoi, Pierre é conhecido por se comportar como um urso numa cristaleira. Porém, como é ingénuo, pode ser facilmente desviado para um canto onde as suas extraordinárias opiniões causem menos estragos e, no fim, parece até pedir desculpa por ser como é.

Marya Dmitrievna é um incómodo de outra espécie. Ela é possuída pela furiosa virtude de falar como o povo, apesar da sua imensa fortuna. Mas, tal como Mlle. de La Mole, a sua violência contra a etiqueta torna-se uma coisa esperada, um atributo pessoal, como o mau feitio ou uma deformidade da natureza.

quinta-feira, 25 de março de 2010


Serra da Estrela (José Ames)

A ESCALA




"A acção que tem sentido para os vivos, só para os mortos tem um valor."

Hannah Arendt


Sentido, todos podemos fazer, nem que seja só para nós mesmos. Uma política irrealista pode fazer sentido, e até uma doutrina assassina como aquela que Adolf Hitler começou a escrever na prisão de Landsberg. O risco é grande, mesmo na ciência, de se postularem teorias carregadas de sentido, operacionais também, num certo contexto, mas que nos extraviam de qualquer ideia reconhecível do homem.

Quanto ao valor, podíamos dizer também que há coisas que só têm valor para nós, um valor de estimação, por exemplo. Mas na acepção que lhe dá Hannah Arendt, a escala não pode ser essa, nem a dum grupo, nem a duma época. É por isso que só com os mortos, que são a maior parte da humanidade ( e porque "o passado realmente não passou", como diz Faulkner), podemos ter essa escala do humano que confere o verdadeiro valor.

quarta-feira, 24 de março de 2010


(José Ames)

COPY & PASTE


the old black magic

(...) a matemática conseguiu reduzir e traduzir tudo o que o homem não é sob a forma de configurações idênticas a estruturas mentais humanas.”

Hannah Arendt (A Condição Humana)


Fazer cálculos através de fórmulas é uma imensa simplificação das operações mais simples envolvidas. No passo seguinte, a álgebra veio definitivamente libertar o pensamento do concreto. As máquinas e os computadores apenas aprofundaram esse processo e o generalizaram. É como se pudéssemos fazer as coisas melhor e mais depressa, mas à custa da inteligência do que fazemos, porque a transferimos para as próteses.

No entanto, nunca fomos tão longe na divisão do trabalho da inteligência e no desenvolvimento das ciências especializadas. Resultando, para a maioria das pessoas, que o mais quotidiano dos instrumentos domésticos, a matéria de que é feito e o seu mecanismo próprio nos sejam tão misteriosos ( sem no entanto levar à admiração, princípio da filosofia ) como a natureza, e o que se passa debaixo da terra enquanto uma semente se transforma, por exemplo, numa macieira.

Ora, pela lei do menor esforço, é cada vez maior o número de estudantes que utiliza a Internet, não como um manancial de informação para apoio do seu trabalho, mas, directamente, como substituto desse trabalho, com economia da reflexão própria, através da montagem de textos, gráficos e imagens pela técnica do “copy & paste”. Torna-se, assim, muito difícil distinguir o original do plágio e avaliar os verdadeiros conhecimentos, o que põe em causa a função da Escola e da Universidade e levando os comportamentos mágicos (com que a esmagadora maioria encara o objecto técnico) mesmo ao campo de formação dos especialistas.

Ao défice de compreensão da realidade actual será então acrescentada a incompetência para desenvolver e gerir o mundo dos objectos.

Mas não estamos ainda condenados a desligar o Hal-9000 que se encontra algures no futuro.

terça-feira, 23 de março de 2010

Brescia (José Ames)

O COELHO DE ALICE


O coelho e a estátua

No meio da torrente humana da rua comercial, o imóvel escolho que nos espia por detrás da rocha. Os nossos passos tornam-se de repente frenéticos, a nossa actividade insensata.

O homem-estátua está ali para realizar uma proeza, um avulso número de circo, mas acaba por ser um espelho onde os nossos gestos mal deixam o vestígio dum pássaro que atravessasse um obturador demasiado lento.

Há algum tempo, vi junto à catedral de Antuérpia um homem pintado de bronze, integrado no grupo escultórico que representa a descida da cruz de Rubens. Surpreendi-o, por detrás da multidão e ao lado dos seus assimptóticos comparsas, no acto de maquilhar-se, preparando-se para a pesadíssima tarefa de simular o “rigor mortis”.

Tudo o que é extraordinário tem público, e parar quando os outros correm é uma coisa que não lembraria a ninguém que vivesse em tempos mais calmos. O cansaço da estátua (já foi uma forma de tortura no nosso país) é vigiado por olhos implacáveis que esperam que este desafio à natureza humana seja o espectáculo que promete. Espectáculo com o mínimo possível de expressão e que nada diz, a não ser que somos todos como o coelho de Alice.

segunda-feira, 22 de março de 2010


(José Ames)

FANTASMAS




Há sempre qualquer coisa de mórbido no encontro com um amigo de infância. São pensamentos de velho que ocorrem. O projecto não é possível sem a cortesia obrigatória de relembrar o passado. E é um prazer amargo visitar os lugares da infância, como se fosse possível reviver a inocência perdida. Mas há mais. De facto, ninguém relembra da mesma maneira. A história de cada um reformula o seu próprio passado. Por isso a recordação do outro é sempre estranha.


O santuário da poesia interior é, assim, profanado pelo espírito mundano e por um sentimento de tristeza que nos vem de não podermos agir. Somos sempre cépticos quanto à capacidade do amigo apreender o genuíno significado do que foi um tempo comum. Outras vezes é a vontade de não recordar que existe em nós próprios a impor a banalização e o artifício.

É um novo personagem que nos interessa quando ouvimos o amigo. Surpreende-nos o sentimento de estarmos a ser indiscretos, porque geralmente as pessoas são mais prudentes quando não se conhecem. Abandonamos a posição de evocador para seguir o espectáculo dum homem que mostra mais do que o que deve.

A relação interrompida não permite encontrar a linguagem apropriada. Daí que se amaciem os ângulos com uma bebida. É cruel e pouco polido tentar reconhecer a frio, como quem examina diante dum espelho o desgaste dos anos. Pensamos, talvez, que há qualquer coisa que se perde quando se dá primeiro atenção ao corpo e se adormece, por assim dizer, a vigilância indiscreta. Mas engana-se aquele que se julga livre de pensar à frente dum rosto que tem tal poder de nos emocionar e pôr em causa.

É mais sábio poupar ao espírito essa cilada, mesmo se é preciso colocarmo-nos sob a protecção dum deus inferior.

sábado, 20 de março de 2010


Vila do Conde (José Ames)

A MEDITAÇÃO DO SOLDADO


"Ele tinha-se posto a meditar e estava de pé no mesmo lugar desde o amanhecer, perseguindo uma ideia e, como não conseguisse desenvencilhar-se, permanecia de pé, obstinadamente amarrado à sua questão. Era já meio-dia; os soldados observavam-no e diziam entre si com estupefacção: 'Sócrates está ali de pé a meditar desde a alvorada'. Enfim, pelo fim da tarde, alguns Jónios, depois do jantar, trouxeram os seus leitos de campanha para fora, porque se estava então no verão, para se deitarem ao fresco, ao mesmo tempo que observavam Sócrates, a fim de tirarem a limpo se ele iria ficar ainda de pé durante a noite; e ele com efeito manteve-se nessa postura até que surgiu a aurora e o sol se ergueu; a seguir foi-se embora, depois de ter feito a sua oração ao sol."

"Le Banquet" (Platão)


Com esta descrição, no maravilhoso estilo do filósofo, o pensar torna-se, talvez pela primeira vez na história, espectáculo e objecto de admiração. A meditação de Sócrates, durante a expedição de Potideia, nem é preciso dizê-lo, é algo de estranho na guerra. Mais de dois mil anos depois, Tolstoi dá-nos um outro momento de incomparável beleza quando o príncipe André, ferido, se entrega a um célebre monólogo, sob o céu de Austerlitz.

Mas, voltando a Sócrates, o que ele deu a ver, coisa talvez inédita até ali, foi a importância do pensamento de si para si, patente aos olhos dos seus companheiros de campanha que, por outro lado, não podiam senão igualmente admirar as qualidades militares do filósofo. Isto, no momento em que devia parecer a todos que a tarefa de cada um estava perfeitamente definida pela urgência operacional.

A guerra não interrompeu a filosofia. Nunca mais se viu uma coisa assim.

sexta-feira, 19 de março de 2010


(José Ames)

NERVOSOS E BILIOSOS


"(…) Como todos os seres realmente fortes, ele tinha um humor igual."

"Les Paysans" (Honoré de Balzac)


Com a definição balzaquiana, quantos não resvalam para o mundo dos fracos, e um género muito mais do que outro!

Não se deve, é claro, confundir a igualdade do humor com a insensibilidade, nem com a antiga noção de "equanimidade". Esta é o triunfo da filosofia, segundo alguns pensadores antigos, e aquela é uma redução do mundo, como acontece quando o frio nos obriga a enfiar num casulo aquecido.

Não se pode lidar com o humor directamente, mas como ele depende estreitamente do regime corporal, pode-se sempre, seguindo a lição de Descartes (no Tratado das Paixões) fintá-lo com um movimento voluntário.

Apesar disso, penso que os que são verdadeiramente estáveis são-no por uma graça da natureza. E isso está muito mais ao alcance dum nervoso (dentro da clássica teoria dos humores), que qualquer espectáculo distrai, do que dum bilioso que consome e se consome.

quinta-feira, 18 de março de 2010


Areinho (José Ames)

CLARO E ESCURO


Theodor Adorno (1903/1969)


"Mas enquanto o pessimismo de Adorno é filosófico, o seu conteúdo filosófico é nulo. Adorno opõe-se conscientemente à clareza. Menciona algures, de modo aprovador, o facto de o filósofo alemão Max Scheler ter pedido mais escuridão (mehr Dunkel), numa alusão às últimas palavras de Goethe que pedia mais luz (mehr Licht).

"O Mito do Contexto" (Karl Popper)


Quanto a Marx, Popper diz que não sendo sempre "particularmente fácil de entender", "envida sempre os maiores esforços para ser compreensível, pois tem algo a dizer e quer que as pessoas o compreendam".

Detestando o jargão hegeliano, entende-se por que o autor da "Miséria do Historicismo" não suporta um filósofo como Adorno. Mas poder-se-á afirmar que alguns dos mais profundos e enigmáticos dos poetas, ou um filósofo como Heráclito, conhecido pelo "Obscuro", não tenham nada a dizer ou não queiram ser compreendidos?

É preciso ver que a clareza pode ser mais um véu de Maia. Aliás, era Lagneau que dizia que a compreensão se faz "clarium per obscurius".

É o aparentemente indecifrável que revela, nunca o óbvio.

quarta-feira, 17 de março de 2010


(José Ames)

O CORONEL MILES



"A liberdade, para o homem, consiste em fazer aquilo que quer, quando pode, quanto a sua razão consiste em não querer tudo o que pode."

Rivarol


Infelizmente, não é a razão que nos governa, e como se viu no caso dos Melianos, durante a Guerra do Peloponeso, a delicadeza e a abstenção não são virtudes do poder. Estas foram as palavras do porta-voz dos habitantes da ilha de Melos dirigidas aos Gregos invasores, segundo Tucídides:

"Vós sabeis tanto quanto nós, que tal como é feito o espírito humano, só se examina o que é justo quando a necessidade é igual para ambas as partes, mas se há um forte e um fraco, tudo o que é possível é feito pelo primeiro e aceite pelo segundo."

Quando se diz que o poder corrompe não se vê a coisa em termos de força e de necessidade como o faziam, sem quaisquer ilusões, os Melianos. Julga-se que é por o indivíduo ser fraco ou inconsistente que se deixa corromper, mas a verdade é muito diferente, e é a razão por que a democracia precisa de "espantalhos" para afastar os corvos, quem quer que esteja no governo.

O homem que se reveste de determinadas funções associadas ao poder está na situação daquele coronel do último filme de James Cameron. Da carlinga do seu robot, pode arrancar árvores, mas não colher uma flor.

terça-feira, 16 de março de 2010


Dublin (José Ames)

O PADRE MAGRO


"Eu sentia que as minhas últimas palavras lhe tinham dado tempo para se recompor, lamentava tê-las pronunciado. Relendo-as, inquietam-me. Oh! não as enjeito, não! Mas elas são humanas apenas, nada mais. Exprimem uma decepção muito cruel, muito profunda, do meu coração de criança. Certamente, outros que não eu, milhões de seres da minha classe, da minha espécie, conhecê-la-ão ainda. Ela faz parte da herança do pobre, é um dos elementos essenciais da pobreza, é sem dúvida a pobreza mesma. Deus quer que o miserável mendigue a grandeza como o resto, quando ela irradia dele, sem que o saiba."

"Journal d'un curé de campagne" (Georges Bernanos)


Se há um romance inspirado pela fé é esta história do "padre magro", ingénuo ainda por cima (não como o jansenista Pirard, do "Vermelho e o Negro"), que atrai a incompreensão e os ultrajes, de mãos nuas e coração aberto.

O espírito evangélico está todo nestas palavras do seu diário. A pobreza aqui, mais do que um conceito sócio-económico é uma categoria moral. Tal como o proletário de outra "boa nova", o pobre, e só ele, entrará no reino dos Céus. Bernanos acrescenta a esta beatitude a inocência, porque o pobre não conhece o seu grandioso destino. E aí se revela a superioridade do "pobre" sobre o proletário. Porque este, conhecendo a doutrina, torna-se orgulhoso, e em contacto com o poder corruptor nada de puro o pode salvar.

segunda-feira, 15 de março de 2010


(José Ames)

O QUE PENSA NO COLECTIVO




"Na aparência quase tudo se cumpre metodicamente nos nossos dias; a ciência é rainha, o maquinismo invade pouco a pouco o domínio do trabalho, as estatísticas ganham uma importância crescente – e num sexto do globo, o poder central tenta regular o conjunto da vida social segundo planos. Mas, na realidade, o espírito metódico desaparece progressivamente, pelo facto do pensamento encontrar cada vez menos em que se aplicar. As matemáticas constituem por si mesmas um conjunto demasiado vasto e demasiado complexo para poder ser dominado por um espírito; (…) Ora, tudo o que o indivíduo não consegue dominar é à colectividade que é cometido."

"Refléxions sur les causes de la liberté et de l'oppression sociale" (Simone Weil)


Estamos muito longe e sempre estivemos de ser metódicos, para além do sonho de controlo sobre a vida social se ter reduzido à escala global, à sua porção côngrua. Parece que a prudência não nos permite mais do que dizer que o estado presente do universo depende do estado imediatamente anterior, do qual, evidentemente, conhecemos uma parte infinitesimal.

Só haveria método se o divino arquitecto vigiasse continuamente o seu plano, o que nem para Simone era o caso.

Não podemos, é claro, dizer que o colectivo pensa, porquanto só um espírito pode fazê-lo. No entanto, o pensamento está no colectivo, na sua organização, nos seus métodos, nas suas iniciativas. Está duma forma diferente em que se pode dizer que está numa ferramenta, plasmado na sua forma, porque o colectivo é vida.

Simone Weil procurava um método para "insuflar uma inspiração a um povo" (era preciso um novo espírito para o pós-guerra), não porque esse povo pudesse pensar, mas para que os indivíduos encontrassem nele um meio propício ao pensamento.

A complexidade nunca foi realmente dominada pelo espírito, sem que isso prejudicasse a eficácia do pensamento, na sua abstracção e nas suas simplificações.

É por isso que não nos ameaça a perda do método e a compreensão da complexidade não é uma impossibilidade nova.

domingo, 14 de março de 2010


Setúbal (José Ames)

O QUE É EXISTIR


Baruch Spinoza (1632/1677)


"(…) o trabalho da reflexão é severo e não se parece em nada com a observação. Como diz Lagneau, esta análise reflexiva consiste em encontrar o Pensamento absoluto em todo o pensamento, e assim encontrar Deus no homem, como faz Spinoza. Decerto, isso não é descobrir uma existência, e é preciso repetir a grande ideia de Lagneau na famosa lição sobre a existência de Deus, que não se pode dizer que Deus existe, porque existir é depender de outras coisas; e isso significa que Deus não é uma coisa; que o espírito não é uma coisa."

"Lettres sur Kant" (Alain)


"Não é um pequeno paradoxo que a Crítica de Kant, impiedosa contra a antiga metafísica, tenha feito surgir uma florescência de metafísicas, com Fichte, Schelling e Hegel de que Platão só com dificuldade podia dar uma ideia."

A metafísica não está para acabar, como um certo materialismo chegou a pensar, materialismo, ele próprio, um exemplo da metafísica, visto que o objecto último em que assenta – a matéria – excede infinitamente o que pode ser observado. Indo um pouco mais longe, pode dizer-se que a própria Física é cada vez mais um objecto de reflexão e menos de observação, como a preponderância da matemática o deixa perceber.

De resto, o primeiro dos objectos metafísicos, como diz o filósofo, é o "Eu penso": é ele que permite todos os outros. "precede Deus, mesmo na consciência mais simples; antes de acreditar em Deus, é preciso acreditar em si (…)."

sábado, 13 de março de 2010


(José Ames)

DANÇA GUERREIRA




"Os italianos da Idade Média e da Renascença eram incapazes de unidade, de ordem e de administração; eles não se batiam senão por procuração; por meio de mercenários, e a guerra era concebida de tal maneira que Maquiavel cita uma campanha de verão, no decurso duma guerra conduzida por Florença, durante a qual não houve nenhum morto nem nenhum ferido, quer num lado quer no outro."

"Écrits historiques et politiques" (Simone Weil)


No momento em que uma guerra sem mortos nem feridos foi possível, a Itália apareceu aos olhos de Simone Weil, pelo seu espírito, como verdadeiramente a herdeira da Grécia. A Itália dividida (mas sem o fantasma da unidade) explica em grande parte o milagre duma guerra como aquela. A igualdade das forças pode ser tão óbvia que a contenda se torne injustificável, se a razão prevalecer ( o que é muito facilitado quando os combatentes não são susceptíveis de serem arrebatados por sentimentos patrióticos, como era o caso dos mercenários). No entanto, os exércitos apresentaram-se um ao outro e executaram uma espécie de dança guerreira. É para isso que servem as paradas militares dos tempos modernos. Comparar os músculos pode prolongar a paz e isso é sempre bom.

sexta-feira, 12 de março de 2010


Londres (José Ames)

DO USO DA MÁSCARA


masque africain dogon


"Todo o espírito profundo tem necessidade duma máscara; mais ainda, à volta de todo o espírito profundo, forma-se continuamente uma máscara por causa da interpretação constantemente falsa, quer dizer banal, de cada uma das suas palavras, de cada uma das suas iniciativas, do menor sinal sob o qual a sua vida se manifesta."

"Par-delà le bien et le mal" (Friedrich Nietzsche)


Isto tem a ver com o segredo, os espaços de sombra e de silêncio de que todo o homem necessita, se não for de todo exterior e, portanto, uma coisa social, mas sem "alma".

Não é verdade que o homem feito possa prescindir do "diálogo consigo mesmo" e estar sempre em colóquio ou aberto aos ruídos. Essa necessidade faz-se sentir, duma forma mais premente ainda, nas crianças, que têm de ser protegidas do mundo dos adultos e do da sua própria "tribo", de modo a que possam entrar, mais tarde, naquele mundo com um mínimo de autonomia.

É o que há de verdade no conceito de privacidade (hoje, ameaçada de todas as maneiras, como se sabe). Embora, normalmente, se reduza a privacidade a uma espécie de "fio de terra".

O espaço público é um espaço de representação, em que é forçoso o uso da máscara, mesmo quando não se é profundo.

quinta-feira, 11 de março de 2010


(José Ames)

O DILEMA DO MESTRE-ESCOLA




"RS - Voltemos a uma outra questão. Quais foram os professores que mais contaram para si?

GS – Fico encantado em responder. Alguns foram professores primários. No jardim-escola, em França, trazia-se uma camisa azul, uma cestinha para o farnel e púnhamo-nos em sentido quando o mestre entrava. Portanto, o mestre entra – lembro-me ainda do seu nome -, olha esses pequenos de cinco, seis anos, e diz: 'Meus senhores, ou são vocês, ou eu.' Quando oiço falar em colégios de formação de mestres na América, faço troça, porque a arte de ensinar é simplesmente saber o que quer dizer a frase."

"L'Art de la Critique, entrevista com George Steiner, de Ronald Sharp)


E o que a frase quer dizer, não é verdade, é que ou os alunos ensinam o mestre, que não sabe tudo e já se esqueceu, por exemplo, do maravilhoso mundo da infância e da aventura que é explorar esse mundo, ou é o mestre que ensina o que os miúdos não podem saber, sobretudo, porque ainda não têm idade para isso, numa relação assimétrica que nada tem a ver com o que se passa na vida política, onde entram conceitos como o de democracia, de igualdade ou dos direitos da pessoa.

Desde experiências como a da chamada escola democrática de Summerhill, de A.S. Neill, que formou tantos "invertebrados sociais", incapazes de lidar com o mundo adulto, que a perfusão do mundo da política no ensino, através de teorias pedagógicas que tratam a criança como um cidadão em miniatura, que se sabe menos do que nunca o que o dilema de que fala George Steiner quer dizer.

quarta-feira, 10 de março de 2010


Portinho da Arrábida (José Ames)

O TEXTO PERDIDO


Nietzsche (Edward Munch)


"Como aconteceu finalmente em todo o iluminismo dos tempos modernos com a Revolução Francesa (essa terrível farsa, completamente supérflua quando julgada mais de perto, na qual, contudo, os espectadores nobres e visionários de toda a Europa interpretaram à distância a sua própria indignação e o seu próprio entusiasmo, por tanto tempo e tão apaixonadamente até que o texto desapareceu sob a interpretação), assim uma nobre posteridade poderia uma vez mais interpretar mal todo o passado e por isso tornar o seu aspecto suportável – ou melhor, não aconteceu isto já? Não fomos nós mesmos essa 'nobre posteridade'? E, na medida em que agora compreendemos isso, não é isso, portanto, já passado?"

"Beyond Good and Evil" (Friedrich Nietzsche)


Noutro lado, diz o filósofo que só quem tem as chaves do futuro possui as chaves do passado. Mas o futuro não é nada ainda e, como dizia Simone Weil, não pode ser fonte de verdadeira inspiração. Mas se esse "futuro" for, na realidade, o presente, a nossa liberdade depende duma chave que não "faça desaparecer o texto do próprio passado". Não o passado reescrito para legitimar a decadência, mas a raiz em que toda a ascensão se apoia.

A ideia de que a Revolução Francesa foi uma espécie de formidável álibi para um corte drástico com o passado, no momento em que se escondia sob a máscara da república romana, talvez contribua para explicar os desastres do século XX.

terça-feira, 9 de março de 2010


(José Ames)

VIVER PARA A SAÚDE


"Encontramos esta mesma atitude de cepticismo ligeiramente divertido, quando ficamos a saber que lhe foi diagnosticada uma angina de peito e lhe foi recomendada uma vida mais calma e saudável. Hannah consente em fazer alguns cortes (tabaco, ritmo de trabalho, etc.) desde que tal não implique uma menor qualidade de vida, pois, como diz "I am not going to live for my health."

"Nas teias de uma amizade: Hannah Arendt e Mary McCarthy" (Maria Luísa Ferreira)


Hannah Arendt teve um primeiro enfarte em 5 de Maio de 1974 e veio a ter morte súbita, com um segundo, sete meses depois. Entre as duas datas, "não viveu para a sua saúde". Provavelmente os seus "excessos" eram-lhe necessários para a qualidade do seu trabalho. Não se pode pensar arrojadamente quando se limita o futuro e se impõe uma "excessiva" prudência ao corpo.

É, decerto, uma ilusão esse futuro que nos damos, mas é preciso escolher entre viver bem e viver por mais algum tempo.

Não é de crer que os filósofos antigos que ensinavam dever o pensamento consagrar-se à preparação da morte fossem especialmente mórbidos. Que diferença faz ser a idade o mestre nessa matéria ou a filosofia? Poderia o filósofo ignorar que a vida e a morte não se compreendem uma sem a outra?

segunda-feira, 8 de março de 2010


Valongo (José Ames)

ATÓNITO LUAR


Clair de lune -- Painted by Claude-Joseph Vernet (1714 - 1789), in 1769.

"Por vezes, no céu da tarde passava uma lua branca como uma nuvem, furtiva, sem brilho, como uma actriz fora da sua hora de representar e que, da sala, com roupa de sair, observa por um instante os seus companheiros, encoberta, sem querer atrair as atenções para si mesma."


Alain de Botton, nesta citação de Proust, diz que ele incluiu a lua no primeiro volume do seu romance, "mas evitou dois mil anos de discursos prontos-a-usar sobre a lua, criando uma metáfora invulgar para melhor captar a realidade da experiência lunar".

Ah! Se a linguagem de todos os dias evitasse o pronto-a-usar que tempestade assolaria as comunicações! No entanto, e como diz Heidegger, essa linguagem já foi poética, já nos deu o mundo no momento da criação. Agora, porém, "esgotada pela usura" é neutra e permite-nos falar, não só sem conhecermos a história das palavras e das expressões que usamos, mas sacrificando a realidade à cultura dessa linguagem.

É como se nos fizessem ouvir como "música-ambiente" a obra de Bach, ao ponto de a ela nos tornarmos insensíveis e indiferentes. A lua é dos objectos mais saturados de literatura. Proust renovou o nosso satélite com uma imagem mundana. Mas onde está o poeta para nos devolver o primeiro espanto?

domingo, 7 de março de 2010


(José Ames)

OBSCUROS CAMINHOS


Georg Trakl (1887/1914)


"Mais de um que anda em viagem…"

"Não são todos os mortais que são chamados, nem aqueles que são muitos: apenas 'mais de um' – esses que viajam por obscuros caminhos. Esses mortais estão em condições de suportar morrer (das Sterben); e eles suportam-no como a viagem até à morte. Na morte recolhe-se o mais alto retiro do ser. A morte já se antecipou a todo o morrer. Aqueles que andam 'em viagem' precisam em primeiro lugar de arranjar uma casa e uma mesa pelo caminhar na obscuridade dos seus caminhos; não só, nem mesmo, antes de tudo, para eles próprios; mas para aqueles que são 'muitos'; porque estes crêem que lhes basta instalarem-se nas casas e sentarem-se às mesas, para já disporem das coisas e terem chegado à morada."

"Acheminement vers la parole" (Martin Heidegger)


O poema é "Uma noite de Inverno", de Georg Trakl e a epígrafe é o começo da segunda estrofe.

No seu dialecto quase impenetrável, Heidegger tenta explicar que a palavra, a da língua quotidiana, é no fundo um poema "esgotado pela usura, do qual só a custo se pode ouvir um apelo".

Só no recolhimento do silêncio se pode resgatar esse poema e entender o que diz, verdadeiramente, a palavra. Porque não é o homem que se encontra no silêncio. Aí, o homem, naturalmente falante, encontra a palavra.

A interpretação do poema de Trakl tem evidentes ressonâncias evangélicas, porque a palavra heideggeriana, que se distingue do falar, tem tudo a ver com o Logos cristão e platónico, e nela se detecta, também, uma espécie de missão no viajante dos obscuros caminhos. Um materialista poderia resumir a ilusão dos "muitos" no conceito de alienação. Mas a ideia da morada é salvífica.

sábado, 6 de março de 2010


Veneza (José Ames)

BELA, GORDA E DOUTA




"Bolonha está entre as cidades mais belas da Itália e da Europa. Não existe cidade que se lhe assemelhe, e que possa substituí-la. É bela pela carga, pela abundância das cores; e a cor que a satura é prevalentemente o vermelho ou o avermelhado, a mais física, a que mais apela ao corpo e ao sangue humano. Florença é magra, longilínea. Enquanto em Bolonha, os pórticos, os arcos, as cúpulas, tudo faz pensar numa rotundidade carnosa. O próprio dialecto, o sotaque, são abundantes e arredondados. Algumas ruelas medievais do centro aproximam-se da vida real da Idade Média mais do que em qualquer outra cidade com passado arqueológico."

"Viaggio in Italia" (Guido Piovene)


Descrever uma cidade como uma pessoa, dotada de um físico e de um carácter, ainda é a forma mais fácil de tornar sensível o meio humano que ela sobretudo é.

Entre nós Bolonha é quase só o nome dum tratado. Para muitos, até Lisboa ou o Porto são pouco mais do que um clube. Mas só conhecemos verdadeiramente uma cidade quando lhe pudermos atribuir um rosto e um corpo, ao mesmo tempo que uma "mentalidade".

O livro de Piovene faz desfilar diante de nós, ao sabor das suas andanças nos anos cinquenta, uma galeria de personagens vivas que também são cidades. Todas fascinantes e diferentes umas das outras. Como as pessoas.