domingo, 31 de março de 2013

Sem título

(José Ames)

 

MÁCULA

(Macular degeneration)

"Um comediante fez notar um dia que a morte, na nossa sociedade, parece uma simples faculdade, dito de outra maneira, 'não se via objecção em morrer desde que não se fosse obrigado a estar presente quando tal acontecesse."

 

A verdade é que quem está 'presente' é a imaginação, a qual nos leva a morrer mil mortes. Mas a falta de perspectiva sobre a morte de que se fala também naquele artigo é como o que se chama em oftalmologia a doença macular. Ficamos reduzidos à visão periférica, por não podermos focar o sol negro dentro de cada um de nós.

As nossas igrejas estão saturadas dos sinais da morte e da ressurreição de Cristo ( e não é hoje dia de Páscoa?), mas são ilhas perdidas, cada vez mais exóticas (e mais visitadas do que habitadas). A lição era que Deus dá e que Deus tira. Fica só a passagem entre duas eternidades com emissão de luz.

A religião do Homem ocupa-nos totalmente. Ofusca-nos com o seu brilho. Mas não pode pensar a morte. Ela é um escândalo para a razão.

Por isso arranjámos as coisas de maneira a não termos que estar presentes. A que a morte não nos pertença, nem tenha um significado. Temos a 'faculdade' de morrer. E é só.

 


 

sábado, 30 de março de 2013

Sem título

Aveiro
 

 

 

O CASTIGO DA MÁQUINA

 

Maître Chapotard lisant dans un journal
judiciaire l'éloge de lui-même par lui-même
Honoré Daumier : Les gens de justice 1846

 

"Uma condenação à morte por uma falta leve, infligida de certa maneira, seria menos horrível do que, nos dias de hoje, uma condenação a seis meses de prisão. Nada de mais atroz do que o espectáculo tão frequente de um acusado que, na situação em que se encontra, não tem outro recurso perante o mundo senão a sua palavra, mas que é incapaz de a manejar por causa da sua origem social e da sua falta de cultura, abatido pela culpabilidade, a infelicidade e o medo, balbuciante diante de juízes que não escutam e que o interrompem, ostentando uma linguagem refinada."

Simone Weil ("Espera de Deus")


A pena é legítima se decorre directamente da lei, diz Simone. Mas até que ponto pode esta ser justa quando destrói uma pessoa sem outro direito do que o do contrato social?

A psicologia judiciária e a cultura da assistência social vieram temperar este poder destruidor, deixando-se emaranhar, muitas vezes, no conceito de culpa objectiva da sociedade e numa desresponsabilização degradante.

É o castigo consentido, como ela defende, que reintegra o criminoso na humanidade.

Mas é verdade que a mais perfeita máquina de justiça é incapaz de procurar o consentimento e de salvar a pessoa no castigo.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Sem título

(José Ames)

 

PIOLHEIRAS

D. Carlos I

 

D. Carlos, o nosso rei baleado no Rossio, ter-se-á uma vez referido à situação do país como de 'piolheira nacional'. Não imaginamos, mesmo em privado, um presidente da república a ter esse desabafo. Mas todos nos sentimos no direito, mesmo sem 'sangue azul', a imaginar piolhos na cabeça de todos os políticos.

Assim, temos a ilusão de ser diferentes deles e que, a partir do momento em que se é investido num cargo, ocorre uma transubstanciação fatal. Passamos a ser "eles". Que pena que o Nuno Crato não tivesse continuado a escrever as suas inteligentes crónicas e a malhar no "eduquês"! Agora já só fala a língua deles e faz parte da quadrilha.

E Sócrates? Dizem os comentadores encartados que não mudou nada, que está igual a ele mesmo (leia-se, uma vez político, sempre político; ainda por cima arrogante e malcriado - parece que aprendeu a só dizer o que quer na televisão e a não se deixar 'encurralar'), como se o seu 'ano de sabática' em Paris devesse corresponder a uma 'travessia do deserto' cheia de aparições sobrenaturais. É claro que ele não mudou, e os outros também não. Mesmo uma 'piolheira' precisa de figurantes de todo o jaez, como na 'commedia dell'arte'. A diferença entre 'animais ferozes' e os 'animais de pastorícia' é bem vinda e de consequências imprevisíveis.

Só não sei se, alguma vez, poderemos esperar, na política, uma surpresa como a que nos reservou Francisco. Também ele tem na Cúria a sua 'piolheira'...

 

 

quinta-feira, 28 de março de 2013

Sem título

Batalha

 

CLÁSSICO E EXÓTICO

Páris e Helena de Tróia

"Uma passagem da 'Helena' de Eurípides (312 a.c.) condensa eficazmente qual era então a hierarquia de valores:'Terrível é a minha vida e o meu destino, por culpa (...) da minha beleza - diz Helena -, Oh pudesse eu tornar-me feia de repente como uma estátua, da qual tivessem desaparecido as cores!' Mas é uma hierarquia que estamos ainda longe de aceitar."
(Salvatore Settis in "Il Sole 24 Ore")

O articulista de 'Il Sole' levanta uma questão fascinante: o que fazer com a cor das estátuas e dos monumentos da Grécia clássica? Talvez fazer de conta que não é nada, como ele próprio sugere.

A todos os que descobriram primeiro o branco dessa escultura e de edifícios como o Parténon, parece que a cor, a garridez das cores primárias, significa um recuo incompreensível no gosto. É como se soubéssemos que a leitura dos diáligos platónicos era confiada a histriões obscenos (uma faceta do teatro grego de que Luís Miguel Cintra, nos deu, há uns tempos, um pequeno vislumbre).

Há evidentemente um 'raccord' a fazer com esse povo tagarela que parece ter inventado tudo. O clacissismo é demasiado nosso. Talvez projectássemos na arte grega a ética do cristianismo, como alguns padres da Igreja fizeram com Platão, tornando-o um discípulo do profetismo hebraico. Já no nosso tempo, Simone Weil descobriu no primeiro dos filósofos a grande inspiração do cristianismo.

A verdade é que a pintura das estátuas e dos frisos se adequa, por outro lado, a um meio que produziu a sofística como a arte de discutir tudo e de tudo pôr em causa. Um certo 'saber viver', em que alguns quererão ver frivolidade, uma paisagem e um clima propícios, a palavra 'alada' como dizia Homero, são sem dúvida traços pertinentes que dizem bem com a cor das estátuas.

Mas a arte 'sonhada', as obras que o tempo também assinou, decapando-as, dando a Helena o contra-modelo da fealdade, faz parte dum dos principais mitos europeus, o da Idade de Oiro da nossa civilização.

Por isso é tão difícil rever a história.

 

quarta-feira, 27 de março de 2013

Sem título

(José Ames)

 

THE LAST TIME I SAW MACAO

 

O documentário "Alvorada Vermelha" sobre o mercado macaense é um massacre sanguinolento de frangos e peixes que ficam, depois de cortados, a estrebuchar. O tom imperioso da montagem não deixa lugar para dúvidas: estamos nas entranhas da "Fábrica do Mundo" (alguma vez o português beliscou esta ordem 'alimentar'?).

O sapato do travesti deixado na rua, que faz a ligação com o filme intitulado "A última vez que vi Macau", conta uma história muito diferente da de Cinderela, uma história de insucesso e morte. O narrador vai-nos contando como, tendo vivido na cidade há muitos anos, regressou respondendo ao apelo 'duma amiga', Candy, o travesti que se meteu em sarilhos com a seita de Madame Lobo.

Os encontros falhados com Candy são o pretexto duma viagem onírica pelo passado macaense do narrador que a linfa duma selva mecânica invade no pulsar dos néons da contrafacção. A pseudo-Las Vegas tem a sua melhor expressão no travesti que imita Jane Russell em "Macao" de Sternberg.

Mas a submersão da Macau "dos" portugueses na religião dos animais da Grande China (o contraponto do mercado), só foi mantida em suspenso na memória do amigo de Candy. A actualização chinesa é pouco mais do que subjectiva. O que está ameaçado e prestes a sucumbir como Candy às mãos dos novos poderes, é a presença portuguesa que não chegou, temos de perceber, a ir além da epiderme.

João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata dão-nos um filme fascinante que, receio bem, não tenha visto de entrada na "Cidade Proibida".

 

 

terça-feira, 26 de março de 2013

Sem título

Lisboa

 

O SORRISO DE MELISSA




"Nisto, ela estendeu a mão e colocou-a sobre a minha enquanto se ria franzindo o nariz; rindo com tanta candura, tanta leveza e ausência de esforço, que ali e naquele momento decidi amá-la."


"The Alexandria Quartet" (Lawrence Durrell)


Tratar-se-ia, então de uma decisão? É verdade que nunca saberemos o que queremos sem uma escolha, quer ela tenha um motivo racional ou não.

"Ali e naquele momento", Darcy, o inglês encantado na cidade de Kavafis, perdido nos seus labirintos, entregou-se ao vislumbre de felicidade que Melissa, a 'traviata' de Alexandria, lhe oferece num sorriso de 'grande abertura', como se diz da objectiva em fotografia. Melissa queria seduzí-lo com essa espontaneidade? Talvez nem tenha pensado nisso.

Mas também ela decidiu, 'ali e naquele momento', intuitivamente, sem deliberação, entregar-se.

Ora, essa não é a única decisão do amor. O 'piloto automático' da paixão entra em greve frequentemente, até se despedir de vez. Apesar do que dizem os romances de gare, o amor não vive duma jura eterna, mas dum renovo constante dos votos.

É que aquele 'ali e naquele momento' quer dizer isso mesmo e, em breve, se perde no tempo e na distância.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Sem título

(José Ames)

 

A HIPÓTESE DO UNIVERSO NÃO É NECESSÁRIA


"O mapa mais pormenorizado de como era o Universo 380 mil anos depois do Big Bang foi divulgado esta quinta-feira."
( do 'Público' de 21/3/13)

Compreendo que os cientistas não devam falar do que ninguém sabe, das questões que permanecerão, 'ad aeternum', insolúveis porquanto não podem ser objecto do conhecimento científico.

Assim, sempre que alguma descoberta se refere ao universo, temos de rapidamente fazer uma adaptação semântica que nos restitua o verdadeiro contexto. É que este universo de que se fala com tanta suficiência na divulgação científica não é, nem nunca poderia ser "o" universo, pelo menos segundo o que a palavra quer dizer. E não me refiro às especulações sobre os "universos paralelos" de que fala Michio Kaku e explorados na ficção científica, mas à impossibilidade de alguma vez se provar que a origem 'deste' universo, o célebre 'Big Bang', não seja um de inumeráveis recomeços, duma 'parte' apenas do verdadeiro universo.

As aporias filosóficas do nosso saber sobre o cosmos não foram vencidas pelo extraordinário desenvolvimento dos nossos telescópios e da nossa observação indirecta. Foram apenas 'varridas para debaixo do tapete' duma incomensurável vaidade.

Parafraseando a resposta de Laplace a Napoleão, poderíamos, pois, dizer que a hipótese do universo-universo não é realmente necessária.

Assim se vai convencendo a maioria dos leigos de que o poder da ciência não tem limites, fomentando um espírito de credulidade que predispõe as pessoas a confundirem as proezas tecnológicas com o desenvolvimento humano e o descobrimento da "verdade". É o mesmo espírito que entronizou meia-dúzia de especialistas em 'economia' e os seus discípulos, para desgraça da União europeia.

 

domingo, 24 de março de 2013

Sem título

Lisboa (José Ames)

 

O AZEDUME DUM GÉNIO

 



"Um rei em Nova Iorque"(1957-Charles Chaplin)


"Um rei em Nova Iorque" já foi transitado em julgado como uma sátira tendenciosa, cheia de ressentimento contra o país em que a estátua à entrada do continente, em vez da liberdade prometida, anunciava a "caça às bruxas" de que Chaplin foi, porventura, a vítima mais famosa.

Enfim, a sua desilusão esteve à altura das enormes esperanças não do pobre imigrante que ele foi, visto que teve um grande sucesso, mas das suas ideias sociais.

Mas, ao mesmo tempo em que se entrega à sua vingançazinha, pretende fazer-nos rir. E é aí que o filme falha, apesar de algumas cenas bem conseguidas.

A malícia do dr. Hyde não consegue sobrepor-se a um dr. Jekyll moralista. E as suas crises têm o mesmo efeito perturbador do boneco de Charlot que às vezes irrompe desarticulando a pose do rei Shahdov.

sábado, 23 de março de 2013

Sem título

(José Ames)

 

DO SUBLIME AO RIDÍCULO

 

"O suplício da crucificação chega a ser ridículo. De acordo com a representação da cena que vemos em quadros antigos, as pessoas junto da cruz entretinham-se a jogar e com outras distracções, mas não quero ocupar-me deste assunto por mais tempo. Perante uma santidade tão grande, tão assustadora, parece-me mais indicado o respeito."


Robert Walser ("Uma estalada e outras coisas")

Compare-se isto com estas palavras de Simone Weil:


"Os mártires atirados às feras que entravam na arena cantando não eram infelizes. Cristo era infeliz. Ele não morreu como um mártir. Ele morreu como um criminoso de direito comum, misturado com os ladrões, apenas um pouco mais ridículo. Porque a infelicidade é ridícula."

("A Espera de Deus")

Nada parece mais longe do sagrado do que o riso. Mas, segundo Simone, era necessária essa distância para se atingir a humilhação e a infelicidade supremas.

E se nos aproximarmos duma representação da cruz, sem amor e despidos dum olhar esteta, e nos conseguirmos abstrair do sofrimento em efígie, ocorrer-nos-á, talvez, pensar que para os Romanos e para os que o crucificam hoje, ele não é mais razoável do que o herói de Cervantes e, como ele, atinge o ridículo, embora dum modo sublime.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Sem título

Leça da Palmeira

 

SECRETAS GRAVITAÇÕES

 

"A recordação desta primeira manifestação à qual assisti de maneira consciente permaneceu poderosa. Era a atracção física que eu não podia esquecer e que me fazia desejar vivamente fazer parte da massa; não se tratava de modo nenhum de reflexões ou de suposições e não foram também as dúvidas que me retiveram de dar o último salto. Mais tarde, depois de ter cedido, quando me encontrava verdadeiramente na massa, tive a impressão que se tratava de qualquer coisa que se conhece em física com o nome de gravitação. Naturalmente, não se trata de facto duma explicação deste processo perfeitamente espantoso, porque não somos qualquer coisa de inanimado, nem antes quando estamos isolados nem depois quando estamos na massa e o que nos acontece quando aí estamos é uma total modificação da consciência, tão radical quanto enigmática."

Elias Canetti ("Le Flambeau dans l'oreille")



A força de atracção que o jovem Canetti experimentou pela primeira vez durante uma manifestação dos anos 20, numa cidade alemã, é de facto algo que verificamos todos os dias, mas em que não queremos acreditar.

O seu caso é sintomático porquanto nada sentia em relação às palavras de ordem, não tinha grande formação política e, além do mais, era um estrangeiro.

Contudo, esse acréscimo do ser, essa expansão do colectivo atingiu-o com toda a força.

Basta lembrar o que se passou entre nós no 25 de Abril para saber que é assim.

Mas será verdade que essa "gravitação" só se exerça quando nos encontramos numa multidão, como se diz, mobilizada?

Seguindo a mesma comparação com a Física, seria a dispersão da massa que permitiria aquilo que chamamos de consciência.