segunda-feira, 31 de agosto de 2015

(José Ames)

ACTIVOS VS CONTEMPLATIVOS




"Um homem não pode ser inteiramente activo, se em parte não for contemplativo; e, também, inteiramente contemplativo, se em parte não for activo."

("The Cloud of the Unknown")

Esta é uma verdade que hoje parece incontestável, se a actividade for entendida como trabalho ou prática rotineira. Assim, diz-se de alguém que passou à reforma que já não pertence ao número dos activos. E a rotina alimentar com tudo o que ela involve, e as outras tarefas que pelo menos ao homem civilizado impendem, bastariam para fazer do puro contemplativo uma espécie de unicórnio.

Não é esse, naturalmente, o sentido que o autor anónimo da 'Nuvem do Desconhecido' atribui à palavra 'activo'. O que ele quer dizer é que não basta ao que se entrega à vida de monge (como ele se entregou) orar sem descanso para, porventura, conhecer algo de parecido com o êxtase, que acabaria por ser um fim em si próprio, não muito diferente da experiência alucinatória que nos nossos dias tantos procuram mediante um acto de compra e venda.

O nosso cartuxo aconselha, não certamente o empenhamento político que conhecemos, mas um movimento de amor que, ele só, como um activismo místico poderia 'conhecer' Deus. Este conhecer não seria passivamente fusional mas teria acesso ao que não pode ser pensado, assim se distinguindo o pensamento da 'verborreia' pseudo-filosófica.

Uma ideia em que a anti-filosofia de Wittgenstein se poderia filiar...


sábado, 29 de agosto de 2015

(Alcochete)

O JOGO DAS PARCAS

Cloto, Lachesis e e Atropos
(http://images.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.indym)

Segundo o mito de Er, em Platão, a alma tem de beber a água do Letes, o rio do Esquecimento, para escolher o fardo com a sua nova vida, que é, afinal, a mesma, já que ela não pôde aprender com os erros.

E Beatriz, conduzindo Dante na passagem para o Paraíso, submete o poeta à mesma prova. O que tem duas consequências: que nem sequer a lembrança dos erros é compatível com a felicidade extática e a contemplação do Bem; mas também que o arrependimento e o perdão não chegam para garantir a "imobilidade" da alma.

Não é apenas o revisionismo histórico que abre uma nova causalidade com cada nova leitura do passado.

Mesmo sem futuro, a alma tem sempre que salvar-se do passado.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

(José Ames)

O COMENSAL



"O regulamento da casa colocava-os ao abrigo, a eles, pensionários, de todo o contacto com tais histórias."

"A Montanha mágica" (Thomas Mann)

Histórias de morte. De evacuações pela calada da noite.

E o silêncio tácito de toda a gente perante a ausência do comensal no dia seguinte.


Aqui não se passa nada!


Já dizia Bernarda Alba.

sábado, 22 de agosto de 2015

(Anvers)

MARTE OU A GUERRA JULGADA



Pela vida militar, a hierarquia social entra no corpo. Não creio que a humilhação seja o sentimento normal de todo o recruta. Ninguém recorda com saudade um momento de humilhação e, pelo contrário, não há quem não sinta alguma nostalgia por esses anos em que o carácter se acabou de formar de encontro à disciplina inflexível.

Se é verdade que o oficial tem mais poder sobre os seus subordinados do que qualquer patrão, poder que em tempo de guerra é de vida ou de morte, esse não é um poder arbitrário, nem pessoal. Todo o soldado vê a necessidade da ordem quase mecânica, e mesmo a pena capital e o processo sumário se entendem à luz da segurança de todos e das terríveis consequências.

Quem manda tem de obedecer e isso é visível para toda a gente. Na sua trincheira, o homem da frente amaldiçoa o estratega e o burocrata, mas o exemplo dum destino comum com o resto da carne para canhão e a complexa organização que suporta paixões e interesses, ao mesmo tempo que esconde aos olhos do incrédulo herói o mecanismo da geral irresponsabilidade, levam-no a pressentir que no gabinete há outro escravo e que é esse espírito, longe do sangue e da terra, que está a ferros.
“Mars, ou la guerre jugée », de Alain, é o implacável veredicto contra esta loucura colectiva, sempre demasiado honrada pelo poder e venerada pelos ingénuos.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Génova

OS NOVOS BÁRBAROS



http://i700.photobucket.com/albums/ww6/shamalbbg


"Não impede que o pobre mundo sonhe sempre com o antigo contrato passado outrora com os demónios e que deveria assegurar o seu repouso. Reduzir à condição de gado, mas de um gado superior, um quarto ou um terço da espécie humana, talvez não fosse pagar demasiado caro o advento dos super-homens, dos puros-sangues, do verdadeiro reino terrestre... Pensa-se nisso, mas não se ousa dizê-lo."

(O padre de Torcy em "Journal d'un curé de campagne" de G. Bernanos)


Conheci um homem de bem que, vivendo no conforto dos seus iguais, era capaz de dizer em público que pensar nos 'humilhados e ofendidos' lhe estragava a sobremesa. Nada de novo porque essa culpa é partilhada por muitos outros (talvez seja isso o que significa ser de esquerda?). Mas sendo os homens o que são, pensando assim e contribuindo, cada um, com os seus hábitos e compromissos para a ordem que legitima a desigualdade crucial, só fazem jus ao fundador da religião que vaticinou o pecado, não sete, mas setenta vezes sete. Eis que o sentimento de culpa que foi o alvo preferido dos sarcasmos do profeta de Zaratustra, se tornou num dínamo congénito à nossa civilização.

Todos pecam. Os que aceitam, conscientemente, o ' antigo pacto com os demónios' (não foi assim com o sacrifício de gerações inteiras, em nome dos 'amanhãs que cantam'?), os que não querem saber, os que polvilham de cinza os seus prazeres e os que fizeram outro contrato demoníaco com a Utopia que lhes garante, para toda a vida, mediante uma quota e o endosso ao partido de toda a visão e de toda a responsabilidade, uma vida, as mais das vezes confortável, com o sentimento de serem, em vez de culpados, 'moralmente superiores.'

É muito crível que todas estas atitudes, com as suas diferenças paradoxais, façam na realidade parte do mesmo paradigma cristão.

Anuncia-se desde há muito tempo o fim desse paradigma. Deixaremos, quiçá, pela primeira vez na história de conviver com anjos e demónios. O certo é que os novos bárbaros já fazem parte de nós.


quarta-feira, 19 de agosto de 2015

(José Ames)

CORAGEM

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Diz Albert Camus nos seus 'Carnets' que "este universo não tende para nada e não vem de nada porque já está feito e sempre existiu. Não há tragédia porque não há história. É inumano tanto quanto podia ser. É um mundo para a coragem." E, mais adiante, que sempre haverá "uma filosofia para a falta de coragem." 

Aqui, apetece dizer que não temos prova de que o universo não se parece connosco e que, portanto, se há uma escolha a fazer nesta incerteza absoluta é, como diria Spinoza, 'perseverar no nosso ser', como se isso fosse o melhor para o universo, ou como se, com a existência, tivéssemos recebido um mandato 'divino'.

Camus decidiu-se pela alternativa e apesar de tampouco poder apresentar provas, escolheu que o mundo é inumano e que só poderemos subsistir com toda a coragem de que dispunhamos. Devemos 'ir à luta' pela luta, ou por uma qualquer dignidade que só tem sentido para nós.

Pascal, na sua célebre aposta sobre a 'salvação da alma' diz que ganhamos sempre em acreditar em Deus, contra qualquer outra alternativa. É uma aposta que chega a ser chocante pelo seu 'pragmatismo', como diríamos hoje, porque, no fundo, é um cálculo do interesse próprio. Deus parece até uma cédula para reclamar a lotaria. Mas Pascal era mais matemático do que crente.

Para Camus, a nossa situação no mundo é absurda, e a única coisa que podemos fazer contra isso é criar um mundo nosso que faça sentido. Nesse caso, talvez a primeira das virtudes seja resistir à submersão no 'ambiente absurdo'.


terça-feira, 18 de agosto de 2015

(Lisboa)

UMA ESFINGE MODERNA

Martin Heidegger



"Ao que poderemos acrescentar a possibilidade (e eu penso que não se trata somente da possibilidade) de Heidegger ter sido, 'in propria persona' um pequeno carácter, um homem que envelhecia possuído pela astúcia, pela ambição, por certas tradições 'rurais' e profundamente incorporadas de dissimulação e exploração das oportunidades. O seu pedaço de terra talvez tivesse fornecido a colheita do inferno, mas era o seu pedaço de terra."


George Steiner

Um grande filósofo sai da sua nuvem universitária, atraído pela fanfarra nazi, paga as suas quotas ao partido e com a ajuda deste torna-se reitor, depois de ter abandonado às feras o seu mentor, Husserl. Logo depois, ter-se-á arrependido desse entusiasmo, suscitado pela aparente confusão entre o movimento hitleriano e alguns aspectos da sua filosofia da existência.

Não foi o primeiro a enganar-se. Platão, esse grande espírito, apostou no tirano de Siracusa e esteve perto de ser assassinado. E Beethoven não viu em Napoleão o novo libertador, tendo-lhe até dedicado a sua terceira sinfonia, para rasgar a dedicatória quando se anunciou o imperador?

Todos os casos são diferentes. O que muitos não desculpam em Heidegger é o seu carácter (que como o do escorpião da fábula wellesiana era 'mais forte do que ele'). A maneira de se retratar foi um obstinado silêncio, um orgulho intratável, ou, talvez a certeza, bastante misantrópica, de que nunca seria compreendido.

O velho filósofo na sua cabana da Floresta Negra tornou-se uma esfinge moderna.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

(José Ames)

A RÃ E O ESCORPIÃO

Orson Welles em "Mr. Arkadin"


"Eu disse a todos, não invistam mais do que podem perder. Estamos na Bolsa. Há sempre coisas que podem acontecer. As firmas de corretagem podem falir. Eu posso dar em doido e fazer qualquer coisa de estúpido. Invistam em Obrigações do Tesouro. Toda a gente compreendeu a mensagem. Mas todos eram ambiciosos."
Bernard Madoff (Expresso de 26/3/2011)

Orson Welles conta, em "Mr. Arkadin", a famosa história do escorpião que pediu à rã para atravessar o rio. A rã respondeu-lhe que não caía nessa, porque bem sabia que o escorpião, durante a travessia, lhe havia de espetar o  ferrão. Ao que o outro retorquiu: mas que lógica há nisso, visto que nos afogaríamos ambos? A rã deixou-se convencer pela lógica, mas a meio do rio sentiu a temida picada. O escorpião reconheceu que tinha faltado à sua promessa e infringido a lógica, e, enquanto se afundavam, rematou em jeito de conclusão: "- É a minha natureza!"

A lógica pode, na verdade, explicar até um caso como este. Desde que entremos nos detalhes. Porque era lógico que o escorpião reagisse conforme a sua natureza e que a força disso prevalecesse sobre qualquer cálculo ou comprometimento. Se o instinto de sobrevivência não for tão forte como se julga, compreenderemos não só o escorpião, como os 'kamikases' da segunda guerra mundial ou os homens-bomba do Daesh, como também os especuladores que acompanharam Madoff no seu inglório destino.

Afinal de contas, estamos apenas a comparar forças, ou números, o que é da natureza da lógica.

domingo, 16 de agosto de 2015

(Roma)

CRONÓVOROS

Termómetros


No sanatório da "Montanha mágica" (Thomas Mann), os principiantes e os que permaneciam por uma curta estada é que tinham um problema de ocupação do tempo. Esses eram de facto leitores omnívoros.

Mas os pensionários antigos, ali há muitos meses ou mesmo anos, "tinham desde há muito aprendido a destruir o tempo, mesmo sem distracções nem ocupações intelectuais e a fazê-lo escoar-se graças a uma virtuosidade interior."

Tal como a burocracia que não precisa de outra justificação para a sua existência do que ser ela própria, também a verdadeira ociosidade desconhece o problema da finalidade e do emprego do tempo.

Basta observar algumas divisões (as refeições e a tomada da temperatura, por exemplo) para se obter o resultado zero.

sábado, 15 de agosto de 2015

(José Ames)

OS MEIOS DA SERPENTE



"- O sr. Naphta, respondeu Settembrini, é, quanto à sua pessoa, tão pouco capitalista quanto eu.
- Mas, interpôs Hans Castorp, porque a resposta que senhor deu comporta um "mas", sr. Settembrini.
- Pois bem, essa gente nunca deixa morrer os seus à fome.
- Quem? "essa gente"?
- Os padres.
- Padres? Padres?
- Mas, engenheiro, eu quero dizer: os jesuítas."

"A Montanha mágica" (Thomas Mann)

Assim, o fascínio que as palavras de Naphta tinham exercido sobre Hans Castorp e o primo, nessa visita que o pedagogo Settembrini via com tão maus olhos, por causa duma presumida má influência, ganhou de repente um outro sentido e perdeu toda a sua virulência.

A argumentação "teológica" de Naphta aparentava de facto uma liberdade - um pragmatismo, diríamos hoje, que não permitia "situá-la".

Percebemos depois que Thomas Mann acabava de nos dar o mais conseguido retrato do espírito jesuíta, e da maneira mais sensível: quando não estamos ainda "imunizados" pelo preconceito.

Em política, são os estereótipos que garantem o funcionamento do jogo, e esconjura-se uma folga excessiva com nomes, por exemplo, como o de "troca-tintas".

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

(Vila da Conde)

PARA QUÊ?



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"Não fiz neste mundo nada que valesse a pena e que antes não me tivesse parecido inútil, inútil até ao ridículo, inútil até à náusea. O demónio que habita no meu coração chama-se: Para quê?"
Georges Bernanos

Acreditemos que o autor de "Diário de um pároco de aldeia" nunca foi jovem e nunca foi verdadeiramente cristão. Um dos privilégios da idade é não ter que ser fiel ao seu próprio passado. Sabemos quanto isso conta para muitos. Mas a questão é que para se ser, realmente, fiel a esse passado se tem que deixar de viver a vida na sua actualidade. É como se decidíssemos escrever as memórias definitivas e trancar os desenvolvimentos possíveis da vida que temos. Surge então o demónio do 'para quê?', em todas as ocasiões em que nos interroguemos sobre tudo o que não seja a nossa obsessão.

Quem escreve, neste sentido, na realidade transcreve, para si, o que julga ser o seu passado. O modelo é o de "Buvard et Pécuchet" de Flaubert. Os dois burgueses reformados, depois de correrem por um tempo atrás de um 'enciclopedismo' sem objecto, devotam-se, como os monges da Idade Média, a copiar o 'conhecimento'.

A 'Era da Técnica', nas palavras de M.Gonçalo Tavares, ter-lhes-ia hoje tirado também essa resposta ao 'para quê?'.




quinta-feira, 13 de agosto de 2015

(José Ames)

A GRANDE NOITE



"Medito neste momento numa palavra de Augusto Comte, que diz que as mudanças possíveis são muito pequenas, mas que elas serão suficientes."
Alain

Parece que essa suposta lei já não tem validade, depois da revolução digital.

Compreende-se que as grandes transformações políticas que ocorrreram nos tempos modernos, desde a Revolução Francesa às revoluções do século XX, na Rússia e na China, foram mais reorganizações do que existia antes, confirmando os poderes emergentes e impondo uma solução a situações caóticas provocadas pela crise económica ou pela guerra, do que o estabelecimento de uma sociedade realmente nova e de acordo com os ideais proclamados. Afinal, a França revolucionária caiu nas mãos de um 'tirano esclarecido', Napoleão, antes de se entregar aos barões e burgueses enriquecidos da nova/velha ordem. E tanto russos como chineses retomaram os hábitos do despotismo, desta vez, mais do que 'esclarecido', 'científico'.

Comte concordaria que, apesar disso, no essencial, houve uma pequena mudança que não pode ser negada. E que até os massacres e a perda de vidas, em toda a parte, encontrarão justificação nessa diferença, aos olhos de muitos de nós.

Com o salto tecnológico, as mudanças na vida de cada um podem, em si, continuar a ser pequenas. Mas são mudanças sistemáticas que abrangem todos os sectores da sociedade e, sobretudo, acontecem a uma velocidade nunca observada em nenhuma revolução política. Daí que, em boa verdade, já não se pode dizer que sejam pequenas. A aceleração do seu desenvolvimento e disseminação desactualizaram todos modelos revolucionários conhecidos.

Tão depressa vamos nesta caótica exploração do conhecimento, que a palavra revolução agora só faz sentido se for um projecto 'conservador' no sentido de parar para pensar, o que é o paradoxo dos paradoxos para os que acreditam na 'Grande Noite' da Revolução.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

(Roma)

CINISMO E CASTIDADE

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"Mantenho que o cinismo confina com a castidade."

(Gustave Flaubert)


O cínico (no sentido moderno) é um homem que, doutrinariamente, ou fundado na experiência pessoal, se priva de acreditar. Enquanto os seguidores de Antístenes procuravam a felicidade através de uma vida virtuosa, de acordo com a natureza.

Que espécie de virtude encontra, então, o romancista neste cinismo mudado, já que se supõe que a castidade seja virtuosa, pelo menos de um ponto de vista religioso?

Que há, nele, de puro ou de sacrificial? Aparentemente nada. E, no entanto, podemos facilmente imaginar que na base desta descrença sistemática se encontre algo de aparentado com a atitude anti-social daqueles gregos que os seus contemporâneos acusavam de viverem como cães. O cínico moderno coloca-se a si mesmo fora da sociedade (como os 'dissidentes' se colocavam 'fora do partido'), ao romper com as crenças comuns. Isso, também se pode entender como um sacrifício (à sua 'ideia') como o 'casto' que oferece a sua sexualidade activa à sua religião.

A diferença é que o novo cínico é um individualista e que provavelmente não acredita que a sua 'auto-exclusão' seja o caminho para a felicidade ou para qualquer perfeição...


terça-feira, 11 de agosto de 2015

(José Ames)

O VÍCIO E A VIRTUDE


"Alegoria do vício e da virtude" (Andrea Mantegna)

"O mundo moderno não é mau: em alguns aspectos, o mundo moderno é até muito bom. Está cheio de virtudes selvagens e desperdiçadas. Quando um esquema religioso é abalado (como a Cristandade foi abalada pela Reforma), não são só os vícios que ficam à solta. Os vícios, na verdade ficam à solta, e vagueiam fazendo estragos. Mas as virtudes também se soltam; e as virtudes vagueiam mais bravamente, e fazem estragos mais terríveis."

"Orthodoxy" (G.K. Chesterton)


Um mundo exclusivamente virtuoso seria um mundo processional em volta de Deus, como se vê no 'Paraíso' de Dante. Só imaginar esse tédio sem fim confirma-me no amor do mundo, isto é, da vida. Porque a teoria dantesca sugere-nos a contemplação das almas por fim 'libertas' do fardo corporal que é, na realidade, a causa de sentirmos tédio e de estarmos vivos.

O que se passa no mundo é a prova provada que a virtude mais pura é também a mais perigosa. Robespierre, 'O incorruptível' ( alguns sonharão com alguém como ele que torne desnecessárias as operações Lava-Jato) e Saint-Just, o Anjo da Morte, foram, sem dúvida, virtuosos, mas marcaram a Revolução Francesa não-oficial de uma tal desumanidade que só a engrenagem assassina de Hitler e de Staline ultrapassariam. E os talibãs, os alqaedistas e o Daesh não são puros e virtuosos, sem os vícios ocidentais que juraram varrer da face da terra? Quando essas organizações se deixarem minar pela corrupção e o compromisso perderão o seu poder de atracção sobre tantos jovens, alguns dos quais são filhos das nossas elites.

Não há generosidade no vício, só egoísmo e fraqueza. Mas a virtude pode ser generosa, sobretudo nos jovens. Essa força faz toda a diferença entre os malefícios da exclusividade entre o vício e a virtude.

Apesar das aparências, a virtude é que é senhora do mundo. E o melhor do vício é a homenagem que lhe presta, desde sempre, porque por ele não poderia criar nada.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Sem título

 

(Burgos)

 

O CAMINHO DA PERFEIÇÃO

 

"Estas passagens traem a exasperação algo humorada do recluso, nervoso, fastidioso e hiper-sensível, amando o silêncio e a paz, mas compelido à companhia diária e de hora em hora com pessoas de um tipo menos contemplativo: alguns encontrando em gestos extravagantes e sem sentido um escape para a vitalidade suprimida; outros transbordando de uma terrível euforia quais 'raparigas aos risinhos e impostores dando-se importância' (japping jugglers); outros tão longe do repouso que 'nem podem estar de pé, nem sentados, nem ficar quietos, a não ser que abanem os pés ou estejam a fazer qualquer coisa com as mãos.'"

(Introdução de Evelyn Underhill a "The Cloud of Unknown")

A 'Nuvem do Desconhecido' foi publicada em 1400 por autor anónimo. Sabe-se que era um discípulo de Dinis o Aeropagita e que viveu em reclusão em algum convento austero, com outros monges.

Não esperávamos que esta experiência fosse vivida com um espírito crítico tão moderno, virado para as 'fraquezas humanas', presentes em qualquer comunidade. A descrição dos tiques de alguns monges parte de um sentimento de curiosidade entomológica e está desprovida de qualquer resquício de 'caridade cristã'.

Faz-me lembrar a caracterização da personagem do "Ferdydurke" de Gombrowicz, sempre instável e em conflito mecânico consigo mesma.

Percebe-se que o autor gostaria realmente de estar só, o que é a definição mesma de monaquismo. Mas nenhuma regra pode apagar um espírito crítico. Os trapistas que se impõem um silêncio sem compromissos, não podem deixar de falar por todas as fibras do seu corpo disciplinado para a mortificação. Freud ainda não tinha inventado o 'retorno do recalcado' que faria desse silêncio imposto a homens na força da vida uma violência com maus resultados.

Mas antes que aparecesse essa consciência, esses protestos do corpo foram outras tantas etapas no 'caminho da perfeição'.

 

 

 

domingo, 9 de agosto de 2015

Roma (Piazza Della Repubblica)

CONCLUSÕES E MEDIDAS A TOMAR


Flaubert


"A inépcia consiste em querer concluir."

(Gustave Flaubert)


As conclusões são precisamente a parte mais importante de uma reunião política. Elas, e as 'medidas a tomar', sobretudo, entre a velha esquerda, são uma espécie de 'démarrage' indispensável para se distinguir da justamente desprezada 'conversa de café'. No "Homem Chamado Sexta-feira", Chesterton põe o 'Cérebro' dos anarquistas a discutir, a concluir e a distribuir tarefas num restaurante frequentado e usando a linguagem sem qualquer rebuço. Falar abertamente da bomba era, para 'Sunday', a melhor protecção.

Uma verdadeira conversa 'filosófica', pelo contrário, não procura um desfecho que remeta cada um ao seu lugar, numa qualquer relação de forças, seja ela de ordem intelectual.

Donde a inépcia filosófica seja uma das condições da prática política. Porque aqui se conclui e decide permanentemente, tomando os meios pelos fins e julgando todos os outros, políticos e não-políticos, sob categorias como 'adversário', 'apoiante', 'indeciso a convencer, e, fazendo surgir entidades estatísticas e abstractas, apoiadas em coisas como médias e sondagens para justificar a 'praxis' do seu partido ou a do seu governo.

É ainda do grande autor da 'Bovary' esta outra citação: "Um homem que julga outro é um espectáculo que me faria morrer de riso, se não me condoesse."

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

(José Ames)

GLASNOST




"O seu médico observa que ele (Mao) nem sequer lavava os órgãos digitais: 'Eu limpo-me no corpo das mulheres.'"

"Femmes de Dictateurs" (Diane Ducret)

Eis o último estádio da divinização ou 'culto da personalidade'. O objecto deste culto, coerentemente, pode considerar ambrósia (o alimento dos deuses) todas as suas excreções.

Os erros monumentais de Mao Tse Tung vêm desse parapeito que fizeram para ele e donde julga ver mais do que todos os seus súbditos juntos. Apesar disso, estou certo de que a História o julgará com os olhos vesgos da grande política. Como certos bancos, o líder que apaixonou, nos anos setenta, a 'inteligentsia' europeia, é demasiado grande para 'falir', isto é, para ser mostrado como realmente foi.

É possível 'engolir' uma mentira deste tamanho? É, porque a história de Mao passou à qualidade mitológica que é um chapéu para as mais diferentes cabeças.

E, afinal de contas, talvez seja essa a maneira menos traumática de o enterrar e esquecer, continuando a servir os superiores interesses do 'estado proletário'.

Compreende-se que o grande terror seja o de uma nova 'Glasnost' idealizada por um ingénuo maior do que o outro.



quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Cuenca


A ATADURA



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"Os Hebreus não falam de sacrifício neste caso, mas de 'akedà', atadura. 

(Erri De Lucca, "Nocciolo d'oliva")


O 'sacrifício' do filho, Isaac, pedido por Deus a Abraão, repugna à sensibilidade moderna, mas já foi um costume arcaico. Na Bíblia há menção de um sacrifício humano, e o próprio Cristianismo assenta num sacrifício tornado simbólico. É provável que a prática dos Romanos, entre outros povos, de 'oferecerem' certos animais aos deuses, seja um vestígio de antigos rituais envolvendo vítimas humanas.

Mas o caso é que o ritual do Monte Moriah, segundo os Hebreus, era, na verdade uma 'atadura', que podia significar uma astúcia do patriarca 'visionário' (teria sido numa visão que Abraão recebeu a ordem de Jeová). Aqui conoto a corda que amarra Isaac com o laço com que Abraão pretendeu ligar Jeová à sua nação. A responsabilidade (noção demasiado humana, hélas) por um crime inaugural seria uma espécie de seguro de vida para a descendência israelita.

Só que no momento em que se preparava para afundar a faca nas entranhas da vítima pré-disposta, o velho lobrigou um carneiro nos arbustos e a ideia da substituição veio-lhe à cabeça como um raio salvador. O anjo não encontrou nada para dizer e Jeová não se fez ouvir. A visão do sacrifício foi anulada pela visão da substituição de Isaac pelo animal.

Jeová não caiu no laço, mas a 'atadura' ficou.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

(José Ames)

MINOTAURO


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"É evidente, como Schlomo Pines mostrou com clareza, que para um grego o conceito de liberdade define um status e uma condição social e não, como para os modernos, algo que possa referir-se à experiência e à vontade de um sujeito."

(Giorgio Agamben, "La Potenza del Pensiero")

Assim posta a questão, claríssimamente, a liberdade, tal como a entendemos, é uma coisa moderna e não aparece na origem da nossa civilização. O paradoxo de uma sociedade de homens livres, cuja base económica é constituída por escravos, cessa de nos confundir e tal sociedade torna-se muito mais próxima de nós.

Algumas abstracções importantes interpuseram-se entre o escravo que, entretanto, mudou de nome e a quem foram atribuídos 'direitos' (que correspondem a outras tantas 'qualidades' funcionais no sistema de produção) e o antigo senhor que agora pode ser uma sociedade anónima ou um especulador bolsista. Tudo isto já foi dito pelo profeta de Tiers.

Não é por acaso que o Cristianismo é, por vezes, chamado de religião dos escravos. É com a lei moral judaico-cristã que a liberdade se torna uma experiência do sujeito que culmina no pensamento romântico do indivíduo 'cósmico'. No mundo da justiça religiosa, todos os homens são iguais, apesar do poder de cada um ser tão desigual como sempre foi, no terreno de César. Espártaco foi o proto-João Baptista malogrado por confundir o Céu e a Terra.

No nosso tempo, não existem, de facto, homens livres no sentido do grego antigo, só porque não chegam a constituir uma sociedade e nem sequer uma classe. O poder que possuem, quando não é capital acumulado ou golpe especulativo, é sobretudo funcional, o que os coloca do lado das forças naturais e mecânicas, do lado do Minotauro.

Que mais impressiona no exemplo da 'União Europeia'?: a falta de liberdade dos seus líderes. O discernimento se existe, não é o deles.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

(Génova)

DISTOPIA



"Um dos jogos de DVD 'Gothic' começa com a sabedoria: 'Cada Evento é precedido pela Profecia. Mas sem o Herói, não há Evento.' Qualquer pessoa pode facilmente traduzir esta obscura sabedoria em termos marxistas: 'Os contornos gerais de cada acontecimento revolucionário pode ser previsto por teóricos sociais; contudo, este acontecimento só pode ter efectivamente lugar se houver um sujeito revolucionário".

(Slavoj Zizek)

Por outras palavras, não é a ocasião que faz o herói. A situação pode estar 'madura', profetizada e teoricamente 'certificada, mas nada acontece. O 'sujeito revolucionário' escapa a todos os GPS, é imprevisível e elusivo como Proteus que não se sabe nunca como se nos apresentará.

Mas o mais desconcertante é que isso não invalida a profecia nem a representação do evento. Lembremo-nos como o "fim dos tempos' e o 'julgamento final' foi indefinidamente adiado na história do Cristianismo. A certo ponto, a 'espera' do acontecimento dispensa a contagem do tempo e transita para o simbólico.

A Profecia e o Evento tornam-se independentes do curso do mundo. E o Herói, o seu aparecimento e a sua missão, podem cumprir-se no eterno adiamento. De certo modo, a Profecia cumpriu-se, o Herói chegou e o Evento já teve lugar, pois que a nossa vida se transformou graças a essa lenda. Por que é que um não-Evento que mudou sentimentos e maneiras de pensar não há-de ser 'real'?

Os que insistem no sentido literal só podem testemunhar o fracasso dos ideais. O pior dos mundos é a utopia 'realizada'.



domingo, 2 de agosto de 2015

(José Ames)

ENTRE A BOFETADA E O CILÍCIO

Santa Isabel da Hungria


"Era uma crítica perfeitamente absurda considerar o castigo corporal como particularmente humilhante. Santa Isabel tinha sido flagelada até ao sangue pelo seu confessor, Conrad de Marbourg; segundo a lenda, "a sua alma exaltara-se até ao terceiro coro"; e ela própria havia vergastado uma pobre velha que tinha demasiado sono para se confessar."

São as trevas associadas à Idade Média que parecem soltar-se destas palavras de Naphta, o jesuíta de "A Montanha mágica" (Thomas Mann).

Por muito que o Romantismo tenha reabilitado essa época, a ideia da mortificação do corpo continua a repugnar à nossa razão, quase tanto como o dualismo do corpo e do espírito.

Mas que os mações, por exemplo, se apliquem ainda o cilício, o que de resto banalizam, comparando-o à tortura que se infligem alguns atletas desportivos, não significa forçosamente uma excepção. A politização do corpo, essa, sabemos que é a regra.