quarta-feira, 30 de junho de 2010


Taormina (José Ames)

A ATADURA


"O sacrifício de Isaac" (Caravaggio)


"Chamamos 'sacrifício de Isaac' a um episódio das histórias sagradas que tem felizmente um bom fim, porque Isaac se sai bem. Atado como um cabrito em cima duma pedra e o pai com uma faca nas mãos pronto a degolá-lo, é salvo por Deus no último instante. Os hebreus não falam de sacrifício neste caso, mas de akedà, atadura."

"Caroço de azeitona" (Erri De Lucca)


Este precioso livrinho é dum ateu apaixonado pelas histórias da Bíblia. Considera-se ateu porque não é capaz de chamar "Tu" a Deus, na oração. "O outro obstáculo é o perdão. Não sei perdoar e não posso admitir ser perdoado." Para ele, existe o "limite do imperdoável, do jamais reparável." Dir-se-ia que é pouco o que o afasta da comunidade dos crentes. Mas naquele pronome está a verdadeira diferença em relação ao deísmo e ao Deus dos filósofos. Quando Einstein diz que "Deus não joga aos dados", refere-se a ele na terceira pessoa e, no entanto, todas as pessoas são "antropocêntricas".

De qualquer modo, como leitor da História Sagrada, o autor não precisa de outras credenciais, para além da sua sensibilidade de poeta à vibração das palavras, para nos dar pérolas como as do trecho sobre um sacrifício que não chegou a ser. De facto, não houve sacrifício, e Deus nunca o concebeu, embora tivesse iludido Abraão sobre as suas intenções.

"A atadura de Isaac é o máximo de uma obediência que sacrifica mesmo a própria dignidade, que aceita ser enganada."

Repare-se como é justo dizer atadura, no sentido daquela obediência e humilhação, em vez de sacrifício. Mas como, por outro lado, só a palavra sacrifício (que era real para o pai que oferecia o filho "atado como um cabrito em cima duma pedra") dá o verdadeiro sentido à cena. E poderá alguém encontrar outro simbolismo que não denuncie a crueldade deste Deus?

terça-feira, 29 de junho de 2010


(José Ames)

UM CARTUXO


http://premiofotojornalismo.visao.pt/


"Tentamos trabalhar menos na perspectiva de adquirir conhecimentos e competências, do que na de aprofundar a nossa vida e a nossa vivência do mistério cristão. A leitura da Bíblia e dos Pais da Igreja tem um lugar preponderante, mas a nossa biblioteca (cerca de 45000 volumes) oferece também uma larga escolha de obras contemporâneas."

"Silence et Solitude – Une vie de Chartreux" (par un Chartreux)


Este testemunho que aparece na revista do Jesuítas "Études" (7/8-2007) é assinado, simplesmente, por "un Chartreux".

Ao contrário de Jesus que não tinha biblioteca, como diz Pessoa, estes religiosos já não podem permitir-se desconhecer o que se escreveu e o que se escreve. Não pelo valor que isso pudesse acrescentar à pessoa de cada um (ou à comunidade como um todo), porque a pessoa não é o que lhes importa. Se há sagrado, na linha do que pensava Simone Weil, ele é impessoal. Dir-se-ia então que a biblioteca destes monges é uma espécie de certificado de não-ingenuidade, em todo o caso, uma vénia a todos os saberes fora do cânone cristão.

Mas tudo isto é sobrelevado por aquilo que o anónimo cartuxo chama dum viver mais profundo do mistério cristão. Todas as actividades regulares, que incluem a formação monástica, o trabalho administrativo ou a fabricação do imprescindível licor são tempo subtraído à oração. "É na liturgia – 'a parte mais nobre', como dizem as nossas Constituitions – que somos verdadeiramente uma comunidade e que a nossa comunhão se estende até aos confins da terra."

Como é de mais para qualquer homem entranhar-se quotidianamente no mistério cristão ou, já agora, no mistério da vida ela mesma, e do que ele próprio é, é de supor que a comunidade, como geradora de sentido e de identidade seja o resultado , "demasiado humano".

segunda-feira, 28 de junho de 2010


Lisboa (José Ames)

CONVERSA A TRÊS


Doris Lessing


"Doris Lessing, que pertenceu ao movimento, escreveu que, pela sua parte, considerava Staline como um louco sanguinário, e que essa era uma opinião que lhe era possível partilhar com este ou aquele amigo comunista. Ela nota, apesar disso, que desde que três pessoas estivessem presentes, exprimir essa ideia lhe era impossível, e que ela mesma não teria suportado que se dissesse mal de Staline. Porquê? Porque isso teria sido atingir aquilo que cimentava o grupo. A preservação deste cimento pode chegar a representar a principal preocupação da comunidade, sendo a prossecução dos interesses comuns suplantada pela procura e a conservação duma identidade comum."

"Le symptôme identitaire" (Olivier Rey)


A única força que pode contrabalançar a desagregação característica duma sociedade de massas é essa busca de identidades grupais e, nas palavras do ensaísta, a palavra identidade viu, nos últimos anos, acrescentado um novo sentido à sua definição que é a dum "conjunto de traços próprios a um grupo" ou dum "sentimento de pertença de um indivíduo a um tal grupo".

"É que libertando o indivíduo, se libertam todos os indivíduos. E os comportamentos combinados de todos estes indivíduos compõe um mundo que pode revelar-se, para o sujeito isolado, tão rígido como o antigo." (ibidem)

Por isso, o "cimento" identitário é tão importante, sobrepondo-se ao próprio valor semântico das ideologias.

É curioso que o testemunho de Doris Lessing refira um número que no Cristianismo não é significativo de um limiar identitário, pois "onde dois estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles" (Mt 18,20). Mas o encontro de dois está ainda demasiado próximo do diálogo consigo mesmo. E na sua cabeça, ninguém conversa a três, a não ser, talvez, o poeta dos heterónimos. Não é isto o sinal de que a verdadeira identidade do cristão é a sua relação com Deus e que os grupos identitários têm ainda um vínculo com a Cidade?

domingo, 27 de junho de 2010


(José Ames)

OS NOVOS FEITICEIROS


http://thepotvinreport.files.wordpress.com


"Não é do mercado enquanto instituição da economia no interior da sociedade que é questão, na circunstância, mas verdadeiramente duma sociedade de mercado (…). É a uma verdadeira interiorização do modelo de mercado que estamos em vias de assistir – um acontecimento de consequências antropológicas incalculáveis, que mal se começam a entrever (…). É a constituição íntima das pessoas que ela contribui para remodelar. Do dever do desinteresse que definia o homem público à tácita injunção de se alinhar pelo seu próprio interesse, o passo é imenso, e as consequências prometem ser pesadas."


"La Réligion dans la démocratie" (Marcel Gauchet, citado por Olivier Rey)


O "passo imenso", como uma revolução silenciosa, não precisou de qualquer aparato militar nem duma proclamação urbi et orbe. Se interiorizámos tão rapidamente o espírito de competição próprio duma instituição económica como modelo da relação entre os homens, foi porque todos os dogmas e preconceitos que se poderiam opor a essa reconversão pareciam isso mesmo: dogmas e preconceitos.

À falta dum enraizamento cultural que a terraplanagem do "criticismo" mediático transformou em campo aberto a qualquer sementeira, todas as ideias se valem, e o instinto de imitação aliado ao "horror do vazio" torna-nos vulneráveis a essa ideologia difusa da "sociedade de mercado".

É por isso, já que não estamos a falar, na verdade, de economia, que os economistas são os novos feiticeiros.

sábado, 26 de junho de 2010


Edinburgh (José Ames)

GOETHE E AS ARENAS


Goethe

Goethe, ao visitar pela primeira vez o teatro romano de Verona, observava que o povo na Antiguidade era mais povo do que no seu tempo. “Pois um anfiteatro como este presta-se a impressionar o povo consigo próprio, a divertir o povo com o povo”. “Ao ver-se assim todo junto, este tinha de admirar-se consigo próprio; pois como só está habituado a ver-se correr desordenadamente, a encontrar-se numa confusão sem ordem nem disciplina, este animal de muitas cabeças e muitas sentenças, instável e volúvel, vê-se aqui unido num corpo nobre, destinado a formar uma unidade, associado e consolidado numa massa, com uma forma e animado de um só espírito.”

Depois da viagem a Itália do vate alemão, outras arenas se encheram, culminando nos modernos estádios desportivos (significativamente transformados em prisão em certas crises políticas), em que a multidão se vê como força reunida e se permite uma catarse emocional.

Se fosse um regular espectador da televisão, Goethe não poderia deixar de pensar que o espectáculo do povo para si próprio tinha sofrido uma singular transformação. Sendo com mais eficácia controlado pela televisão, a sua presença diante de si mesmo já não é necessária. Disperso nos seus inúmeros átomos ele funciona como um todo, sem problemas de logística, nem repressão.

Foi-se o povo, mas ficou a massa, que às vezes se dá também em espectáculo, mas em diferido, no pequeno ecrã.

sexta-feira, 25 de junho de 2010


(José Ames)

AS BRUXAS DE SALEM




"Em 1689, Cotton Mather, um proeminente pastor protestante num colonial Massachusetts, proferiu um enérgico sermão intitulado 'Um discurso sobre Bruxas', no qual detalhava a disseminada ameaça da bruxaria no mundo e a natureza da relação entre as bruxas e o Diabo."

"A Hystery of Colonial Witchcraft" (Roger Gatchet)


Tal como os efeitos da retórica de Hitler foram ampliados num contexto mais do que propício e, por grande que fosse a sua paixão política, essa mesma retórica pareceria apenas grotesca noutra Alemanha, em Salem, Massachusetts, o discurso do reverendo Mather pôde provocar tais ondas de choque que, apenas três anos depois, "no pânico que se seguiu, cerca de 200 pessoas, mulheres na sua maior parte, foram acusadas de praticar bruxaria. Quando a caça finalmente foi dada por terminada pelo governador William Phips em Outubro de 1692, 19 vítimas (14 mulheres, 5 homens) tinham sido executadas, um homem tinha sido apedrejado quase até à morte, e três mulheres, um homem e várias crianças tinham morrido na prisão." (ibidem)

O que é que a bruxaria tem a ver com a crise de hoje? No século XVII, a Bíblia estava acima da razão, e o Êxodo era claro: "Não deixarás que viva uma bruxa." (22:18)

Substituamos a intimação bíblica pela "opinião dos mercados", e aí está.

terça-feira, 22 de junho de 2010


Campanhã (José Ames)

O PECADO DE SATÃ


Satã (Gustave Doré)


"É Platão que é o verdadeiro precursor das minuciosas descrições de Dante; porque em Platão encontramos pela primeira vez não somente o conceito dum juízo final, decidindo da vida eterna ou da morte eterna, das recompensas e dos castigos, mas a separação geográfica do inferno, do purgatório e do paraíso, tanto quanto a ideia horrivelmente concreta dos graus dos castigos corporais."

"La crise de la culture" (Hannah Arendt)


A ideia do inferno pertence à doutrina política do filósofo, destinada à multidão. Para os poucos, era a doutrina "estritamente filosófica" da imortalidade da alma.

Esta duplicidade não é exclusiva de Platão e encontra-se dela um eco no próprio Evangelho, com o recurso às parábolas, linguagem, por um lado, mais apropriada aos "simples" e, por outro, desarmando pela indecisão do seu sentido os raciocinadores.

Qualquer especialista, não importa a sua disciplina, usa dessa duplicidade. Por isso temos a economia para a televisão e a economia para os técnicos. É fatal que as ideias precisem de ser "trocadas por miúdos" e a ciência ou a grande literatura de ser objecto dessa palavra horrível que é a vulgarização.

Isso não põe em causa a democracia, nem pode encontrar nela uma solução.

Apesar disso, tal como os crentes que, com a ideia do inferno, foram tratados como crianças, não esperemos que aqueles que têm de "trocar por miúdos" se sintam genuinamente iguais. É por isso que o orgulho é o pecado de Satã.

segunda-feira, 21 de junho de 2010


(José Ames)

A POLÍTICA DESSUBLIMADA




"Inspirados no trabalho de Antonio Gramsci, os teóricos pós-marxistas Ernesto LaClan e Chantal Mouffe oferecem uma alternativa à noção de Marx de classe fixa e duma consciência unificada. Como explicam em 'Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics', a classe não está ligada aos meios de produção ou às condições sócio-económicas, mas é antes o resultado do discurso e da prática hegemónicos."

"Outing The Marlboro Man" (Teresita Garza)


É simplificar demasiado a ideia marxista e ignorar as mediações implícitas no conceito de "última instância". É claro que Marx não pretendeu que as condições sócio-económicas determinassem directa e automaticamente a consciência de classe, nem que esta se encontrava unificada. Devemos, antes, atribuir esse pensamento primário ao chamado "marxismo vulgar".

No fundo, o que a autora do ensaio diz é que a classe se impõe através da ideologia que "naturaliza" a sua hegemonia.

Essa teoria é, porém, incapaz de explicar o novo tipo de discurso e de prática hegemónica num contexto de aceleração tecnológica. Podia dizer-se que ambos, discurso e prática, se tornaram de certo modo independentes de qualquer classe caracterizada por um corpo de valores e uma tradição.

As diferenças, mesmo extremas, existem, notoriamente, mas é como se já não solicitassem uma ideologia defensiva. É um processo semelhante ao da dessublimação sexual. O oportunismo é, assim, a única ideologia.

domingo, 20 de junho de 2010


Porto (José Ames)

ESCULÁPIO


Esculápio


"Cada um dos meus dias e também cada uma das minhas noites teria a sua história, se se quisesse escrever em detalhe o que me acontecia ou contar qual era a providência do deus, que fazia as suas prescrições tanto estando abertamente presente, quanto me enviando um sonho. Pelo menos quando me era possível encontrar o sono; mas isso era raro, por causa do meu corpo em tempestade. Eis as considerações que me fizeram tomar o partido de tudo remeter ao deus como a um médico, para fazer absolutamente tudo o que ele quisesse. Agora vou indicar-vos qual era o estado do meu baixo-ventre; farei o balanço dia a dia."

Aelius Aristide (d.C. 117 - 181) (in "L´élégie érotique romaine", de Paul Veyne)


Há todo um tom confidencial nesta homenagem a Esculápio que livrou o grande orador, do tempo de Marco Aurélio, dos seus males intestinais. Como observa Veyne, não esperávamos dum clássico greco-latino este novo objecto da literatura, nem mais nem menos, o ego do seu autor.

Em vez de conceitos e ideias, as tripas de Aristide aparecem, casualmente, como um tema não despiciendo para a atenção do leitor. Isto é, de facto, tão surpreendente como, por exemplo, se o expressionismo pudesse ser antecipado pela escultura grega. Abandona-se o cânone, mas não em todo o lado, nem todo duma vez.

O culto de Esculápio, pelo seu lado, sobrevive ainda hoje no doente que tem de se entregar completamente nas mãos do seu médico, como se de um deus se tratasse. E suponho que em todo o moderno esculápio exista a nostalgia do perfeito paciente.

sábado, 19 de junho de 2010


(José Ames)

sexta-feira, 18 de junho de 2010


Cabedelo (José Ames)

OS FILÓSOFOS




"Para muitos, sem dúvida, este processo é simplesmente a descoberta gradual de que o mundo real é diferente daquilo que esperávamos, e a velha oposição a Galileu ou aos ladrões de cadáveres (body-snatchers) é simples obscurantismo. Mas essa não é a história toda. Não é o maior dos cientistas que se sente seguro sobre se o objecto, despido das suas propriedades qualitativas e reduzido a uma quantidade, é totalmente real. Pequenos cientistas tal como os seguidores não-científicos da ciência, podem pensar assim. As grandes mentes sabem muito bem que o objecto, assim tratado, é uma abstracção, que alguma coisa da sua realidade se perde."

"The Abolition of Man" (C.S. Lewis)


Desde sempre que a loucura nos confrontou com o que julgamos ser a realidade. Os loucos não saberiam viver sozinhos numa sociedade organizada. Mas a organização tem um custo que é a perda do real. Por isso a razão tem a sua loucura que é conforme à eficácia da abstracção que lhe é própria.

É como se, na verdade, nos separássemos do ser para atingirmos uma certa especialização. Podemos imaginar o "homo sapiens sapiens" como uma etapa da colónia humana, cada vez menos terrestre.

Só os sonhos orientais de imersão na totalidade contrariam a espécie em formação. E os filósofos.

quinta-feira, 17 de junho de 2010


(José Ames)

A IDADE DE OURO


Jean-Jacques Rousseau (1712/1778)


"Está provado que não há direito do mais forte, e que não se é moralmente obrigado em relação à força, mas forçado."

(Jean-Jacques Rousseau)


Esta ideia do "Contrato Social" leva-nos muito longe e, de facto, como diz Alain, "Jean-Jacques foi o primeiro e talvez o único que raspou o poder até ao osso."

Compreender-se-ia a ideia da Revolução sem esta liberdade (que começa por ser interior) em relação a tudo o que está instituído?

Digo tudo e não o poder instituído, porque o poder não se pode isolar num homem ou num grupo de homens.

Existe uma teia cujos fios puxam pensamentos, palavras e práticas. As instituições são ainda organização e poder.

Por isso o mesmo homem que inventou o "bom selvagem" deu-nos a ideia do melhor meio para regressar à "Idade de Ouro".

quarta-feira, 16 de junho de 2010


Bairro Alto (José Ames)

A POESIA QUOTIDIANA


Jean de La Fontaine


"Mas na natureza humana não há para o esforço outra fonte de energia senão o desejo. E não é próprio do homem desejar aquilo que tem. O desejo é uma orientação, um começo de movimento em direcção a alguma coisa. O movimento dirige-se a um ponto onde não estamos. Se o movimento apenas começado se fecha no ponto de partida, anda-se à volta como um esquilo na gaiola, como um condenado numa cela. Andar à volta provoca sempre agonia.

A agonia, a lassidão, a repulsa é a grande tentação dos que trabalham, sobretudo se estão em condições inumanas, e mesmo noutros casos. Por vezes ataca mais os melhores essa tentação."

"Condition première d'un travail non servile" (Simone Weil)



Em linguagem de gestor modernaço, isto quer dizer que mesmo se és pago principescamente para exercer uma função, porque isso é qualquer coisa que já tens, não te sentirás suficientemente motivado para fazer o esforço que conta. Daí os estímulos e os prémios para animar os que são mais bem pagos a fazer aquilo para que são pagos.

Como se vê, é o mesmo problema abordado por Simone Weil, mas aplicado já não ao operário do trabalho à peça mas, como diria La Fontaine, aos animais maiores, dos quais não se espera que trabalhem em "condições inumanas".

O remédio para a agonia e a lassitude que provoca o esforço sem desejo depende do grau de necessidade. Aquele que pode extrair as suas energias do poder do dinheiro encontrou uma espécie de solução.

"Mas uma vez que o povo é constrangido a limitar todo o desejo àquilo que já possui, a beleza é feita para ele e ele é feito para a beleza. A poesia é um luxo para outras condições sociais. O povo tem necessidade de poesia como de pão. Não a poesia encerrada nas palavras; essa para ele não tem qualquer utilidade. Ele tem necessidade que a substância quotidiana da sua vida seja ela mesma poesia. Uma tal poesia só pode ter uma fonte. Essa fonte é Deus." (ibidem)

Hoje que, depois do ópio da religião, já conhecemos o ópio revolucionário, podemos compreender melhor este "privilégio". ("C'est là leur privilège. Ils sont seuls à le posséder.")

terça-feira, 15 de junho de 2010


(José Ames)

O QUE DIZ SANTO AGOSTINHO


http://www.melancholyrhino.com/images/gravity.jpg


"Ninguém ama o que suporta, ainda que ame suportá-lo."

Santo Agostinho


Não é deste espírito que poderia vir a resistência contra o hedonismo na educação?

Devia-se gravar no bronze que a ideia do menor esforço, como princípio, é vil e nos torna iguais aos graves que são atraídos pela terra. Que há uma maneira, erecta, de lidar com o necessário e com o que nos desagrada que não obscurece o nosso juízo sobre o verdadeiro valor dessas coisas. Salvando a beleza e salvando-nos. É, como diz Agostinho, provar a liberdade e a nossa própria força.

segunda-feira, 14 de junho de 2010


Campanhã (José Ames)

O BEZERRO DE OIRO



"Começando nos anos 80, contudo, um novo tipo de Cristandade evangélica começou a ver o problema das classes dum modo muito diferente. A Teologia da Prosperidade (Prosperity Theology), também conhecida por uma variedade de nomes – World of Faith, Health and Wealth, Name It and Claim It – enfatizou a generosidade de Deus nesta vida e a capacidade dos seus seguidores experienciarem essa generosidade através da acumulação de riqueza e das posses materiais. Muitos neste movimento observaram que um Deus que te ama não quer que abras falência. Um tema consistente na Teologia da Prosperidade é o de que se és rico deves ser favorecido por Deus."

"Class Morality" (Luke Winslow)


As classes são um problema que causa má-consciência aos Americanos. Segundo a sua mitologia, uma sociedade em que qualquer cidadão, por mais humilde que seja a sua origem, pode chegar a ser presidente da nação, é uma sociedade sem classes.

O desconforto vem não duma maior desigualdade (que sempre foi grande), mas duma crescente percepção pública desse facto.

A tese deste ensaio é a de que há toda uma retórica tendente a confundir a moral com o estatuto de classe. Sem nunca se abordar directamente o problema político, defende-se que a riqueza e o sucesso material, na medida em que são uma graça divina, são mais morais do que a pobreza e o insucesso.

É a ideia de Max Weber, com a sua ética protestante que teria estado na génese do desenvolvimento do capitalismo.

Mas não podem restar dúvidas que a ética do sucesso não é senão a actualização da passagem bíblica do Bezerro de Oiro, o que, afinal, está na ordem natural das coisas. Não se pode esperar que o espírito duma religião se tenha refugiado na retórica.

domingo, 13 de junho de 2010


(José Ames)

O FIM DA ESTRADA


"The Road"


Do protagonista (Viggo Mortensen) do filme "The Road" (2009, John Hillcoat) não se poderá dizer como Arendt dizia de Hermann Broch: "o mundo morrerá, mas vós vivereis. Assim deve ter soado a 'boa nova' aos ouvidos do mundo ameaçado de morte da Antiguidade, e foi assim que Broch, com o ouvido apurado da intuição poética, a voltou a escutar no mundo moribundo do século XX" ("Homens em Tempos Sombrios").

Em 2929 já tudo está perdido e nem o instinto maternal se salva (a mãe abandona o filho para desaparecer na noite devastada). O canibalismo triunfante é a prova de que o homem acabou. O pai tem uma só ideia: dirigir-se para o sul, para a costa, mas só tem um mar cinzento e letal para mostrar à criança.

O filme, porém, não cumpre a sua promessa de desespero. Morto o pai, o filho encontra logo a seguir a humanidade numa família completa de "good guys", um casal, um filho e uma filha, mais um cão. Que ainda por cima seguiam, havia algum tempo, os dois caminhantes, com os sentimentos dum anjo da guarda. A plateia oblige.

sábado, 12 de junho de 2010


Constança (José Ames)

RECUSATIO


Julius Caesar (100 BC – 44 BC)


Recusatio é: "uma invenção de Calímaco, da qual os seus sucessores mudaram o sentido. Em Propércio, consiste em recusar-se a escrever longos poemas, desculpar-se por não escrever epopeias e, em particular, por não cantar as conquistas do imperador por não ter talento bastante."

"L'élégie érotique romaine" (Paul Veyne)


Com o poder imperial qualquer gesto de independência devia começar por ser negado, invocando-se, neste caso, a (falsa) modéstia. Não são os feitos de Augusto que não merecem o louvor, o poeta é que se sente indigno de os cantar.

É ainda lisonja, naturalmente, mas não servil.

Outras vezes é o ambicioso demagógico que finge recusar, como César, em Shakespeare, resistindo três vezes: "was the crown offer'd him thrice?"

sexta-feira, 11 de junho de 2010


(José Ames)

A COISA EM SI


Aristóteles (384/322 a.C)


"Interpretei também a doutrina de Kant da impossibilidade de conhecer as coisas em si mesmas como correspondendo ao carácter para sempre hipotético das nossas teorias."

"Unended Quest" (Karl Popper)


Na altura, Popper considerava-se como um Kantiano não-ortodoxo. Mais tarde ("Conjectures and Refutations"), critica o facto daquele filósofo "querer demonstrar de mais, na sua tentativa de ilustrar como é possível o conhecimento."

Mas a diferença aristotélica entre o fenómeno e a essência é que parece "datar" o Kantismo. Na verdade, prescindimos dessa distinção na ciência moderna e parece bastar-nos a descrição dos fenómenos (que podemos conhecer, segundo Kant) para haver um certo progresso no conhecimento, porque tudo aquilo que ainda não conhecemos ou que nunca viremos a conhecer cai sobre a presunção de que são ainda fenómenos a que falta uma teoria e um sujeito para os observar. Por outro lado, a "coisa em si" talvez seja um "mero" nexo conceptual.

Contudo, esse progresso é também uma série de erros históricos e conhecer já não pode ser o que pensava disso a filosofia clássica.

Não é nada que não tenha um valor precário, mas essencial para nós. É como quando dizemos que conhecemos alguém. Se nem ele próprio se conhece…

quinta-feira, 10 de junho de 2010


Cabedelo (José Ames)

O CÁLCULO DA MISÉRIA OU A MISÉRIA DO CÁLCULO


Stokely Carmichael


"Para Carmichael (*), os problemas das pessoas negras eram tanto económicos como políticos. Argumentava que a pobreza era 'bem calculada' nos Estados Unidos e que os programas contra a pobreza não poderiam resultar porque os 'calculadores da pobreza' é que os administravam."

"Remembering and Forgetting – Black Power in 'Mississipi burning'" (Kristin Hoerl)


Com este raciocínio, Carmichael acabou, naturalmente, por declarar que era absurdo manter o apelo à não-violência, já que os "supremacistas brancos haviam mantido a sua posição de poder graças à supressão violenta".

O reconhecimento do padrão formal por detrás desta "pescadinha de rabo na boca" dos "calculadores que administram a luta contra a pobreza" levar-nos-ia facilmente a outras situações de impasse social e político, a reclamar a Revolução porque o sistema calcula a exploração e administra as pretensas reformas.

O esconjuro, através de fórmulas mágicas, duma realidade "injusta"corresponde aos poderes sobre-humanos (de cálculo e de dominação) que se atribuem aos capitalistas exploradores.

Na verdade, os últimos tempos, mesmo que não nos ensinassem outra coisa, parecem eloquentes quanto à completa falência duma "razão de classe".


(*) Stokely Carmichael era líder do SNCC (Student Nonviolent Coordinating Committee) e foi um dos advogados do "Black Power", nos anos sessenta.

quarta-feira, 9 de junho de 2010


(José Ames)

FARRONCAS


"O eng. José Sócrates, como é sabido e lamentado, anda por esse mundo a pedinchar dinheiro para Portugal. Começou com farroncas de 'modernizador' e acabou caixeiro-viajante da nossa miséria."

Vasco Pulido Valente (Público de 6/6/2010)


VPV tem o condão de pegar a coisa sempre pelo lado mais feio, a prestar-se à sátira e ao seu gosto pela verrina.

É claro que um indiferente poderia fazer a justiça de reconhecer que o país precisa de oportunidades de exportação, mesmo que se tenha de distinguir as relações entre estados das relações com pessoas "mal educadas e repelentes". Tampouco discutiria que a vontade de modernizar não é independente das condições internas e externas, as quais, se não mudaram em meia-dúzia de dias, sempre fizeram sentir o seu peso ( não basta querer, e isso até se pode conceder ao engenheiro, mas é verdade que o simplismo também não é o melhor caminho).

Sabe-se, porém, que as palavras permitem tudo, com justiça ou sem ela. O que trai o bilioso é passar da sátira anti-socrática para o verdadeiro e inesgotável objecto que é a idiossincrasia nacional: "o português, coitado, assiste ao espectáculo caladinho e quieto, porque tem um longo hábito do vexame e porque a experiência histórica já o ensinou que a cavalo dado não se olha o dente."

Com os "300 mil" da manifestação do fim-de-semana passado e com o cada vez maior número de inimigos políticos do engenheiro Sócrates, o menos que se pode dizer é que VPV vive no país da retórica e que, felizmente para quem gosta de o ler, o seu estilo só tem a ganhar com isso.

terça-feira, 8 de junho de 2010


Amarante (José Ames)

A ÉTICA RECLINADA


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As nuvens adensam-se sobre o futuro da educação. Apesar da "levée de boucliers" contra o "eduquês" e o behaviourismo duma maçonaria sem rosto, todos os dias nos assaltam novos motivos de preocupação. Mas não é o sinal de que isso é, para essas luminárias, uma coisa tão óbvia, um tal imperativo dos tempos, que faz de quem se lhes opõe outros "velhos do Restelo"?

João Lopes dizia no "De Rerum Natura" que a imagem da escola (lúdica) se deteriora aos olhos dos próprios alunos "levando-os a apresentar comportamentos que não são de esperar naquele contexto, embora o pudessem ser em contextos de diversão ou de tempos livres."

Depois do "salto de ano" para gáudio da preguiça e desfeita dos que trabalham, agora é a famigerada Parque Escolar a querer revolucionar o ensino através da arquitectura (mas cabe a uma empresa um desígnio desses?). A coberto de palavras como modernização, flexibilidade e descentramento, a ideia é modelar o aluno novo (sequela do falido homem novo) e injectar a partir do ambiente a motivação para brincar, já que o ensino a sério foi condenado pelo "progresso" da nova pedagogia ( e lá se foram os autoritários estrados dos professores e chega a plena informalidade propícia, ao que parece, à vontade de aprender).

Faz-me lembrar aqueles anúncios de ginástica passiva ou os de musculação sem esforço, em que o candidato a um tórax apolíneo só tem que deixar a máquina levantar os pesos por ele.

segunda-feira, 7 de junho de 2010


(José Ames)

O ANTI-DEMAGOGO



"He was a kind of nothing, titleless, till he had forg'd himself a name a' th' fire of burning Rome."

"Coriolanus" (Shakespeare)


A paixão de Coriolano contra Roma é ainda amor da pátria. Alguém disse que o contrário do amor não é o ódio, mas a indiferença. É o que ele julga ser a ingratidão do povo que transtorna a sua lealdade.

Porque se recusa os meios da política ( a demagogia ), quer que só as feridas ganhas em combate falem por si e desde o princípio da peça que ele é empurrado para a traição. E já que o povo não o ama pelo que ele realmente é e preferia que se rebaixasse à vil lisonja de um soberano de mil bocas em discussão umas com as outras, resta-lhe marcar o seu nome com o ferro em brasa na carne viva da cidade.

É a paixão luciferina do orgulho que move Caius Martius. Como se as suas feridas de guerra estabelecessem um preço inegociável.

domingo, 6 de junho de 2010


(José Ames)

O VALOR DO MU


"Nada"

"Tu próprio deves ter o rosto do Bodhidharma para o ver. Um só relance bastará. Mas se dizes que o encontraste, então nunca o vistes."

(comentário de Mumon em "The Gateless Gate")


Diz um outro koan que no mesmo instante em que falamos duma coisa falhamos o alvo. Não devemos recorrer à linguagem se queremos ter a "experiência directa".

Tudo quanto acreditamos no Ocidente é desfeito por este pensamento. A separação do corpo e do espírito, o domínio das paixões, tudo isso é atingido por uma via estranha ao cânone grego ou judeo-cristão. Nós temos de fazer para desfazer. Concentrar a realidade no indivíduo para a jogar no fracasso das nossas ilusões.

O Oriente do Zen não é fanático (como o de Pessoa), pois começa por onde nós acabamos, desfazendo. É, em todos os sentidos, uma dieta de baixo teor calórico. A negação deste espírito não tem nada de dialéctico. Parte-se do princípio que a vida é ilusão. Mas a ilusão é para nós uma bênção dos deuses. Só a rejeitamos quando não nos podemos iludir, nem, do mesmo passo, agir.

A acção é o que nos separa do outro "hemisfério".

sábado, 5 de junho de 2010


Porto (José Ames)

UM SÍMBOLO DO INFINITO


Proust: O olhar invisível do vértice da pirâmide


A propósito do verbo proustificar (Fernand Gregh) e da interminável e desconcertante delicadeza de Proust. Se desviamos o olhar da obra, impressionante, sem tentar explicar a vida por ela ou o contrário (cavalo de batalha do escritor contra Sainte-Beuve), são pequenos apontamentos como aquele que insinuam, indiciam apenas, o mistério irredutível que é a existência de cada um de nós. E, assim, a correspondência não é entre a estrutura e os temas dum romance psicológico em oito volumes e a vida do seu autor, mas entre a linguagem e o ser, termos irredutíveis um ao outro, numa relação que torna a obra-prima da literatura em não mais do que um símbolo do que não tem forma nem limite.

sexta-feira, 4 de junho de 2010


(José Ames)

TENTADO PELA INQUIETAÇÃO


"Tentação" (Salvador Dali)


"Os admiradores da beleza das coisas exteriores: não guardam para ti a sua fortaleza (…) malgastam-na em trabalhos voluptuosos. (…) Fracassam, mas ao fazê-lo não deixam de dar-se egocentricamente uma importância falsa, posando como gozadores e entendidos nestas coisas, ao mesmo tempo que fazem como se estivessem em contacto íntimo e fraterno com o sentido do mundo e com os mistérios da vida."


(Agostinho in "Estudos sobre mística medieval" de Martin Heidegger)



Agostinho refere-se àqueles que vivem numa posição falsa, pois têm de mentir-se a si próprios ao assumir uma pose perante os outros. Aquele "como se" é uma máscara com que se significa a profundidade da existência naquilo que ela tem de mais superficial. Isto é negar a autenticidade da própria volúpia no momento mesmo em que parece esgotar o sentido da vida.

O espírito de Agostinho é a negação do que existe, tanto mais "encarniçada" quanto ele pretende reformar a sua vida e cortar radicalmente com o passado.

Com isto, o santo cede completamente à tentação da inquietação (tentatio tribulatonis), tornando-se "um problema para si mesmo". Nesta agonia, o que é que fica para Deus?

quinta-feira, 3 de junho de 2010


Vila Franca de Xira (José Ames)