quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

(José Ames)

O EU INESGOTÁVEL

Joseph Vissarionovitch Djougachvili

"O caso, para o formular claramente, com certa dureza e sem nos limitarmos mais ou menos segundo os indivíduos, é que lhes faltavam duas coisas: pelo alto, a ciência e a filosofia; pelo baixo, o instinto popular. A filosofia que constantemente atestavam, o povo de que estavam sempre a falar, eram-lhes bastante estranhos. Viviam dentro de uma certa média, abaixo da primeira e acima da outra. Esta média era a eloquência e a retórica, a estratégia revolucionária, a táctica das assembleias. Nada afasta mais da alta luz que há na filosofia, da fecunda e calorosa vida que há no instinto do povo."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)

Michelet refere-se, evidentemente aos jacobinos. Os mais influentes dentre eles, jornalistas como Desmoulins e advogados como Robespierre. Filhos tardos de Rousseau, quanto à retórica, mas com o génio desconfiado e tortuoso dos jesuítas.

"Esta hipocrisia manifesta, esta denúncia sem provas, esta personalidade espantosa, este inesgotável eu que por toda a parte se encontrava nas suas palavras de chumbo, eram bem capazes de, com o tempo, esfriar os mais calorosos amigos de Robespierre."

No princípio do século XX, na Rússia, uma outra intelligentsia, já sem as recaídas românticas no eu, mas igualmente acima do povo e interpretando a sua vontade, seguiu as pisadas dos jacobinos. Começou pela filosofia alemã e acabou na inquisição de Joseph Vissarionovitch Djougachvili. Contudo, a história não se repete, nem como farsa. Há só uma mesma tragédia que resulta de se interpretar a chamada vontade do povo. Pois mesmo que, conjunturalmente, o povo pareça identificar-se com um indivíduo, a sua "vontade" é coisa que não pode ser interpretada.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Angra do Heroísmo 

UM URINOL NÃO É UM URINOL

"Fountain" (1917-Marcel Duchamp)

"A situação é diferente se os ready-made manifestam os desejos escondidos dos artistas, os seus rituais inconscientes e as suas fixações fetichistas. Neste caso, o espaço profano deixa de ser homogéneo, para se tornar o domínio da expressão do inconsciente.

(...) Não se estava a ver de que maneira o método de Duchamp em geral podia ser continuado. As diversas teorias do inconsciente, muito particularmente o estruturalismo e mais tarde o post-estruturalismo, acabaram por indicar a via."

"Du Nouveau" (Boris Groys)


Este caminho continua a permitir que qualquer objecto retirado do espaço profano (por oposição ao espaço da cultura) seja transformado em arte, pelo simples efeito duma legenda. Quanto maior for a distância entre esse objecto quotidiano e o seu comentário, mais se justifica a invocação do inconsciente e, logo, duma originalidade "compulsiva".

Quando Maigritte representou numa das suas telas um cachimbo para negar que fosse tal na legenda, criou um outro precedente que pode ser aplicado ao ready-made. Porque basta recusar a um objecto o nome do seu uso, para se criar um artefacto que passa a corresponder à definição estética da inutilidade e da ausência dum fim.

Mas é certo que isso nos levaria aos impasses de Duchamp. Não se poderia distinguir a minha denegação da de qualquer outro.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

"Dead leaf" (José Ames)

SIMPLIFICAÇÕES

http://hugues-bazin.recherche-action.fr/2006/12/06/complexite/

"Os sistemas complexos são incapazes de completamente apreender a sua própria complexidade (...). Eis por que, nos sistemas complexos, todas as operações são dispostas de maneira redutiva, e isso tanto relativamente à sua própria complexidade como à do seu ambiente. (...) Cada auto-observação e cada auto-descrição deve desde logo assentar sobre uma auto-simplificação."

"Politique et Complexité" (Niklas Luhmann)

Observo-me porque não me conheço. Mas as informações que recolho correspondem a uma selecção em função duma teoria simplificadora sobre mim próprio. Só essa redução pertinente da complexidade me permite comunicar com o meio ambiente sem nele me dissolver.

Luhmann diz mais, que "quanto mais rico for o equipamento semântico da auto-observação, mais o sistema pode fazer depender as suas operações internas dos acontecimentos exteriores aos quais ele deve tratar como relevando do acaso (...)"

Está aqui esboçado um esquema de interacção entre dois sistemas. Vemos, assim, que quanto maior for a informação dum sistema sobre ele próprio (e não necessariamente num sentido realista), mais está em condições de se abrir ao meio envolvente. Mas também que deverá abdicar de compreender o outro sistema (ou o seu meio ambiente) como dotado duma lógica. Em relação aos outros a teoria do acaso é a que mais se assemelha à da própria complexidade.

Claro que a psicologia constantemente infringe esta regra, e não podia ser de outra maneira.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Castelo do Queijo 

A ARTE INSTANTÂNEA

(Kasimir Malevitch)


"Aqui, Malevitch envia-nos para a tradição cultural valorizada da contemplação mística, para o platonismo e o seu amor pela geometria, como para o ícone cristão. Assim, a grande tradição cultural, que em Duchamp permanecia em plano de fundo, encontra-se em Malevitch no primeiro plano. Mas, ao mesmo tempo, o "Quadrado Negro" de Malevitch é uma figura geométrica profana que remete em primeiro lugar para o mundo profano da técnica, das construções técnicas e da produção de massa estandardizada; por outras palavras, é igualmente um ready-made."
"Du Nouveau" (Boris Groys)

Portanto, uma intrigante ausência de "valor acrescentado", do ponto de vista da capacidade técnica e da criatividade artística que é característico de tanta pintura moderna, como justamente aquele quadro de Malevitch ou a obra de Rothko, quando comparada, por exemplo, com a tradição clássica, cujo nível técnico era difícil de alcançar, compreende-se à luz do gesto inaugural de Duchamp que, pela simples descontextualização do objecto profano acedia ao valor artístico.

É que, de facto, dentro deste espírito, não é importante o trabalho a que o artista sujeita as formas, seja deformando a "Mona Lisa" ou entregando ao acaso mecânico a modificação duma obra consagrada ou de qualquer objecto do mundo 'profano'. O caso é que este objecto já está pronto (ready-made) para receber o estatuto de obra de arte, pela pura intenção do artista.

Toda essa cultura teria redundado numa grande insignificância e na desvalorização geral da arte se não se tivesse que se medir com aquilo a que Groys chama de arquivo cultural (de que fazem parte, por exemplo, os museus e as bibliotecas).

"A cultura é já sempre uma hierarquia axiológica. Todo o acto cultural ratifica ou modifica esta hierarquia. (...) Obras de arte e teorias são comercializadas no mercado conformemente ao valor que lhes é atribuído pelos acontecimentos culturais."

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

(José Ames)

DESFAÇATEZ SNOBE

http://platea.pntic.mec.es/cvera/exfrances

"Quem quer que o conhecesse teria ficado tão surpreso como eu. A gente mundana de bom grado se dispõe a falar calão, e aqueles a quem se pode censurar certas coisas, a mostrar que não receiam falar delas. Prova de inocência aos seus olhos. Mas essas pessoas perderam a escala, não se dão conta do grau a partir do qual um determinado gracejo, se tornará demasiado especial, demasiado chocante e será uma prova mais de corrupção do que ingenuidade."

"Le côté de Guermantes" (Marcel Proust)

Este tipo de audácia, ou de descaramento, é a confirmação de que podemos moldar o interior pelo exterior.

Já Platão queria banir da sua utopia a imitação de certos estilos orientais na poesia e na música, por causa do seu efeito desmoralizante sobre os guardiões da cidade.

O próprio pode deixar de pensar na contradição e só um observador alertado que possa comparar essa atitude com os actos que a contradizem não cairá no logro.