terça-feira, 30 de abril de 2013

Sem título

 

(José Ames)

 

O VÉU DE MAIA

Andy's Cambodia

 

"Eu diria antes que é provavelmente impossível reclamar, sensatamente, a possibilidade de se estar no centro das coisas, de conhecer a intimidade intacta da vida (se se entender esta palavra não num sentido sentimental, mas na significação que lhe demos."

("O Homem Sem Qualidades", de Robert Musil)


Este conhecimento íntimo só pode ser suposto na imersão do indivíduo em qualquer estado de êxtase ou de dissolução, o que é, evidentemente, um conhecimento paradoxal, em que o intelecto se despoja das suas armas nas margens daquilo que o submerge.

É o sinal de que deve existir um outro tipo de conhecimento, 'activo' e instrumental, que tem a ver com a nossa projecção no mundo, a nossa silhueta ondulando pelos acidentes do terreno, que só nos permite um contacto exterior com um lugar e um tempo. É esse o domínio da razão geométrica e da linguagem.

Nós Ocidentais, chegamos a um ponto tal da nossa evolução que o 'conhecimento íntimo' se tornou numa ilusão e num anacronismo. E o 'véu de Maya' de que fala o hinduísmo se coseu à realidade, representando-a no seu todo.

 

 

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Sem título

(Aveiro)

 

A FEITICEIRA

 

"A mediocridade vingou-se bem; ela foi queimada, ela que era o Espírito e a Vontade, pela burocracia desse tempo. Mas, por minha fé, é talvez a mais bela história humana (...)."

Alain

Ela era, evidentemente, Jeanne d'Arc, a feiticeira de Michelet. O seu processo, manipulado pelo ocupante, fascinou alguns dos maiores nomes do cinema.

Jeanne foi uma heroína transparente como a água dos ribeiros, pela idade, pela fé ingénua, mas ardente. Por vir do país 'profundo'. Por ainda não ter nascido ainda a psicanálise e a psiquiatria. Quem dúvida que muito antes de chegar à audiência do rei recebesse um belo diagnóstico de esquizofrenia ditado pela Inquisição 'científica'? Não ouvia vozes a pastora de Domrémy? Qualquer Zyprexa ou Risperidona privaria a França do seu símbolo maior.

Quis a sorte que 'la pucelle' fosse adoptada pela direita mais retrógada do país, o que equivale a um novo processo e a uma nova injustiça. A mediocridade vinga-se sempre. Pela sua 'burocracia', a das religiões mortas, ou pela estupidez e a falta de coragem.

A 'mais bela história humana' tornou-se simplesmente ilegįvel.

 

domingo, 28 de abril de 2013

Sem título

(José Ames)

 

JACOB E O ANJO

"Jacob e o Anjo" (Delacroix)

 

"E Jacob ficou sozinho; e um homem lutou com ele até ao nascer do dia. E quando viu que não o podia vencer, atingiu-o na coxa; e a perna de Jacob ficou paralisada durante a luta. E disse: 'Deixa-me ir porque o dia amanhece'. E Jacob respondeu: 'Não te deixarei partir enquanto não me abençoares.' E ele perguntou-lhe: 'Qual é o teu nome?'. E ele respondeu:'Jacob.' E então disse: 'Não mais te chamarás Jacob, mas Israel: porque como príncipe tens poder com Deus e com os homens, e prevaleceste."

(do Livro do Génesis)


Esta é, sem dúvida, uma das passagens mais obscuras do Antigo Testamento.

A história parece roçar a blasfémia (como se podem comparar a força divina e a de um homem?). Mas não nos podemos esquecer que é através da figura do Anjo que Deus emprega a sua força, para experimentar Jacob no seu próprio terreno, que pode muito bem ser o do sonho. E como é que Jacob conhece o seu oponente senão pelo toque da coxa? Delacroix mostra-nos, no entanto, que o Anjo se defende e que a iniciativa é toda de Jacob.

O que importa é que tenha sido preciso travar-se uma luta e que dessa luta saiu um novo ser. É mais uma vez a estrada de Damasco. Paulo cai do cavalo, e muda de nome e de religião. Jacob luta com o Anjo até o amanhecer e é ferido na anca, recebendo o nome de Israel.

A técnica literária deste trecho coloca-o, como nos contos infantis, no domínio da criação poética. É inexplicável, onírico e rico de sentidos. Como se só por essa via - e não a da racionalidade e a da lógica - se pudesse lidar com a presença do divino. A dramatização de Deus como um dos actores na história 'sagrada' não é a do teatro burguês. Corresponde a uma necessidade de representação do irrepresentável.

Como é que a luta de Jacob com o Anjo se poderia conformar à descrição duma cena 'real'? Os 'milagres' e o onirismo, uma profunda obscuridade, não são acidentes numa narrativa plausível, são a própria essência do poético.

 

 

sábado, 27 de abril de 2013

Sem título

Sé de Aveiro

 

O MOSTEIRO NA CURVA

 

Mosteiro da Batalha


O mosteiro da Batalha não merece aquela vista da auto-estrada (nem a poluição desta).

Quem passa vê a forma agachada do que podia ser uma floresta de pedra ou a couraça dum animal mitológico.

Imagino o que seria a perspectiva do que talvez seja o mais belo monumento nacional do mais longe possível, como se vê, por exemplo, a catedral de Chartres.

Para ser devidamente valorizado era necessário abrir o espaço em volta para não tolher o seu ímpeto de altura.

Surpreendê-lo assim numa curva do asfalto e rasgado pelas guardas da estrada é um atentado à sua dignidade.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Sem título

(José Ames)

 

O DESPORTO FAVORITO

 

"(o actor Danny Kaye) Referindo-se a uma mulher de quem não gosta, diz: 'A sua posição favorita é atrás de si própria e o seu desporto favorito é saltar para as conclusões.'"

(Daniel Kahneman)

Já viram como o mundo andaria muito mais devagar se não fosse aquele desporto? As pessoas seriam menos categóricas e só se decidiriam diante de evidências fortes ou, num estado de dúvida, se não houvesse evidência nenhuma. Ora, neste último caso, podemos chamar a isso 'querer'?

Se duvido, a meio do salto, de que sou capaz de saltar, eis-me no fundo da vala com uma perna partida. Porque isso é, simultâneamente, querer e não querer. Em vez disso, todos 'saltamos para as conclusões' se é preciso decidir depressa, ou pôr fim a uma discussão interminável connosco mesmos.

Claro que há os que podem (ou têm de) viver mais devagar, como os velhos e os doentes, mas poucos, dentre eles, têm a sorte de não estarem rodeados de pessoas que gostam tanto de ser categóricas que não resistem a encurtar o pensamento no dito desporto.

A situação está longe de dizer respeito apenas a uma minoria. A mulher de que falava Danny Kaye podia ser qualquer pessoa. A 'sociedade' não pensa porque não é uma pessoa. Mas as pessoas que são a sociedade pensam o menos possível. Governam-se pelo Sistema 1 (Kahneman), isto é, pela intuição e pelo hábito.

 

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Sem título

(José Ames)

 

PRAGMÁTICOS TALVEZ

http://www.contrepoints.org

 

"As mulheres dotadas são observadoras impiedosas dos homens que amam; simplesmente, elas não têm teorias e não fazem qualquer uso das suas descobertas, a não ser que estejam exasperadas."


("O Homem Sem Qualidades", Robert Musil)

 

As 'teorias' simplificam a vida, mas reduzem a nossa percepção do mundo. De resto, não poderíamos viver em constante descoberta, por muito que isso nos custe a admitir. Em vez de encontrar um novo ser a cada momento, servimo-nos do modelo mais ou menos acabado que construímos dentro de nós. São ideias da caverna platónica, mas permitem-nos ter outros interesses.

Ora, o pensamento de Musil (ou da sua personagem) é, na verdade, muito lisonjeiro para o 'sexo'. Mas Sigmund (como Freud) pode também ir na outra direcção:"Tratam-se os choros e os altos gritos das mulheres sempre a partir do mesmo ponto, para falar educadamente!"

Os homens que 'teorizam' (em princípio todos, ou não fossem, segundo o estereótipo o sexo activo; teorizam para não pensar demasiado no caso) são os mesmos que se dividem, na política, em 'pragmáticos' e doutrinários. Os primeiros só quando se zangam é que revelam as teorias de que é feito o seu pragmatismo.

Resumindo, não posso esquecer, especialmente tratando-se do cônjuge, o ditado que reza que 'santos da casa não fazem milagres'. Isto indubitavelmente significa que a família nuclear vive imersa em 'teorias'.

 

 


 

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Sem título

(José Ames)

 

PIETÀ

Pietà de Florença

 

"Savonarola, sem dúvida, admirava e amava Platão. Ainda assim, pensava que o o objecto da arte devia ser a edificação religiosa e mostrava esse ideal aos artistas 'no rosto de uma mulher piedosa, quando está a rezar, iluminado por um raio de beleza divina'. Miguel Ângelo desprezava tal arte feita para os devotos e deixava-a aos Flamengos. Tinha horror à sentimentalidade e quase ao sentimento. 'A verdadeira pintura", dizia, 'nunca fará ninguém derramar uma lágrima'."

(Romain Rolland, "Miguel Ângelo")


Não sei se devemos atribuir essa opinião de Miguel Ângelo ao facto de ele próprio nunca se considerar pintor (apesar dos frescos inultrapassáveis da Capela Sistina).

Como escultor que queria ser, a declaração impõe-se naturalmente. Toda a escultura que quer comover é ridícula. Mesmo a mais dramática (como, por exemplo, nos 'Burgueses de Calais') pode ser 'expressionista', mas nunca sentimental.

Porém, num tempo em que o cinema não existia ainda para imitar na perfeição os sentimentos humanos ( e não se pode descartar o cinema dos sentimentos como consistindo apenas em dramalhões), por que é que a pintura não lhes poderia ser dirigida? Foi, de resto, essa eficácia dramática da pintura que foi usada na Contra-Reforma para 'motivar' as almas tentadas pelo espírito do 'livre exame', que se atribuia aos seguidores Lutero.

O mármore não pode imitar a expressão humana (a não ser a dos 'corações de pedra'). Por isso, é por outras vias que a escultura convoca a emoção e o sentimento. Miguel Ângelo deu, ele próprio, o melhor exemplo nos seus 'toscos'. A verdade é que a Pietà de Florença (ou de Bandini, de 1550) é mais comovente do que o frio classicismo da outra Pietà que se encontra no Vaticano, e que o grande artista esculpiu nos seus verdes anos.

 

terça-feira, 23 de abril de 2013

Sem título

(Santo Tirso)

 

QUESTÃO INFINITA

 

"A Razão ocidental edificou-se quando Platão lançou as suas bases em reacção ao questionamento radical e infinito de Sócrates."

( Michel Meyer: "Principia Rhetorica")


Esquecemos, muito naturalmente, que aquilo a que chamamos Razão corresponde apenas a uma tradição filiosófica, e gostamos de pensar que a razão noutras latitudes se manteve sempre mais próxima da 'natureza', como o nosso 'senso comum'.

Mas não foi por acaso que os progressos da ciência, tal como a praticamos, foram mais espectaculares precisamente no terreno já preparado por essa tradição do pensamento.

Nada foi inútil, desde a sofística grega às disputas teológicas, coisas o mais afastadas possível da ciência que 'transforma o mundo, em vez de interpretá-lo' (perdoem-me a glosa marxista), mas não da sua lógica nem da sua retórica. A Idade Média, ao contrário do chavão, aperfeiçou a ferramenta helénica através da linguagem e da especulação teológica. O desafio do espírito divino foi a sementeira das futuras teorias e especulações sobre a própria matéria.

Mudando agora para um campo completamente diverso, é tentador ver nas actuais disputas sobre o económico, como diria Alain, uma nova teologia, a prenunciar, talvez, uma nova abertura, a qual, na verdade, faz falta às ciências sociais.

 

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Sem título

(José Ames)

 

REGRA DE SILÊNCIO ("The company you keep")

 

Nick Sloan (Redford), ex-activista dos anos sessenta, que vivia sob um falso nome, em Albany, educando a filha, é obrigado a fugir porque uma sua antiga 'companheira de armas' (Sharandon), cansada de se esconder, resolve entregar-se.

Ora, Nick não chegou a fazer parte do grupo que roubou o banco nos anos setenta, assalto de que resultou a morte de um guarda. Só Mimi Lurie (Julie Christie), que vive numa clandestinidade romanesca, pode testemunhar o facto, o que significa para uma 'idealista' impenitente, que voltaria a correr os mesmos riscos e a cometer os mesmos erros, porque o sistema não mudou, senão para pior, sacrificar a sua liberdade, a ilusão da sua superioridade moral, a uma velha amizade e ao futuro duma rapariga de 12 anos.

A corrida de Nick Sloan à frente da polícia que o persegue tem por único objectivo persuadir Lurie a redimir o seu nome.

Não interessa que as razões para não poder ser implicado como os outros sejam ténues. Nick não se arrepende dessas velhas ideias, nem dos erros que elas o levaram a cometer. Em vez disso, cresceu, diz ele. Tomou consciência de que há sempre vítimas inocentes. Enfim, apenas a sorte ditou a sua ausência da cena do crime, mas ele deixou de ter ilusões sobre o poder de mudança ao alcance dos indivíduos. A sua fidelidade ao passado consistia quase só na sua vida dupla.

No entanto, a entrevista com Mimi Lurie, apesar das suas palavras sempre iguais, duma retórica pseudo-revolucionária que hoje está ao lado do machado de sílex no museu de antropologia, calou fundo. Ele desmascarou a morte do 'bicho álacre e sedento' nos olhos da libertária. Por detrás da fachada, apenas a desilusão três vezes negada e três vezes rearmada.

Por fim, num gesto de generosidade ( a verdadeira homenagem à juventude e aos seus ideais, feitos para se desfazerem) rende-se aos 'justiceiros' do FBI, a essa justiça do sistema que não pode ser a justiça.

 

 

domingo, 21 de abril de 2013

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S.João do Estoril

 

O BRANQUEAMENTO DO KITSCH

 

(kitsch: Derived from the German verkitschen etwas, kitsch means to 'knock something off'. Today it is synonymous with objects of bad taste that are so bad they're good in an ironic way. In the fifties and sixties kitsch was - and still is - highly collectable. Kitsch can be anything from flying ducks to Tretchikoff paintings and Elvis toilet roll holders. Definition from BBC News Online.)

"(...)Verifiquei que o fechar com chave de ouro era pôr o Marco Paulo a cantar a "Nossa Senhora". Todo o espectáculo teve aquele doce tom "kitsch" que eu tanto aprecio - dentro daquilo que Barthes sagazmente designou como "la fascination de la bêtise"(...)".


Eduardo Prado Coelho


A chamada música pimba acaba de entrar no kitsch, juntamente com alguns apresentadores de televisão.

Isso, por um lado, é mais um sintoma da crise dos valores estéticos (há-os fora da bolsa?). O mau gosto que era a característica principal do kitsch certifica todas as práticas, indiferentemente do gosto, e de reivindicarem o estatuto de arte.

Por outro lado, estamos perante uma difracção do juízo, como a que opera o tempo ou a mudança de contexto.

Pelo simples facto de não se fazer já cinema como os dos anos 50, por exemplo, esses filmes adquirem uma auréola de originalidade ( como a que a Benjamin atribuía à obra de arte, antes da sua reprodutibilidade), para além da mais-valia sentimental que também possam ter, evidentemente.

Portanto, incluir a música pimba e a televisão no kitsch é como se fôssemos extemporizados e postos fora do contexto, como se viéssemos de outra época e doutra cultura.

É, de certo modo, uma espécie de "branqueamento" da fealdade.

 

sábado, 20 de abril de 2013

Sem título

(José Ames)

 

SUPERMERCADOS E LABIRINTOS

 

2001-2004 Karluozzi.com


O supermercado, com todas as suas ciladas, é um labirinto.

As paredes são falsas evasões e conduzem-nos sempre ao alimentar que, na maioria dos casos, foi a razão da entrada.

A lista de compras é uma espécie de fio de Ariane que nos permite encontrar a saída, se quisermos. Porque o problema é que, como todo o labirinto, o supermercado é o lugar do monstro. No caso, os arquitectos pensaram no nosso ventre que é a sede dos apetites (na tríade platónica) e foi para ele que o labirinto foi armado.

Devemos saber, ao entrar, que não somos apenas observados pelas câmeras, mas que, como insectos, estamos na mira de flores carnívoras.

 

sexta-feira, 19 de abril de 2013

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Porto (José Ames)

 

QUANDO PANÇA SE PÕE A PENSAR

Madrid (Plaza de España)

 

 

Quando Sancho pára a pensar em como há-de sair do aperto, na aldeia de Toboso, quando o amo o manda em embaixada a uma Dulcineia sem par que nenhum deles conhece, não reflecte como um simplório, mas como um ser dotado da razão que irmana todos os homens.

Ao escolher a primeira campónia, montada no seu burrico, que lhe surge no caminho, para contentar um espírito que em tudo vê artifício de encantadores que por todos os meios o perseguem, sabe que com um tal critério (o dos encantamentos) não há gato que não possa passar por lebre.

O discurso de alguns políticos faz de Sancho Pança o mais racional dos homens.

 

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Sem título

(José Ames)