quinta-feira, 28 de junho de 2007

NEURASTENIA


http://img327.imageshack.us/img327


"Do mesmo modo o isolamento, a inacção em que vive um neurasténico podem ser urdidos por ele de manhã até à noite sem lhe parecerem por isso suportáveis, e enquanto ele se apressa a acrescentar uma nova malha à rede que o mantém prisioneiro, é possível que sonhe só com bailes, caçadas e viagens."

"Le côté de Guermantes" (Marcel Proust)


Na nossa vida, copiamos "os traços da personagem que somos e não da que nos seria agradável ser".

Tem de ser assim porque temos uma natureza e uma história pessoal que determinam em grande parte o que fazemos como uma continuação do que somos e fizemos e nunca como um começo.

E não podemos dizer que não prefiramos, quase sempre, à consciência disso a sensação de que "tudo é sonho, como realidade por dentro" ou de que a liberdade desceu do céu para poisar-nos no ombro.


Wonder (José Ames)

UMA JUBILOSA SAÚDE


Etty Hillesum (1914/1943)

"Outra lição desta manhã: a sensação muita nítida que a despeito de todos os sofrimentos inflingidos e de todas as injustiças cometidas, eu não consigo odiar os homens. E que todos os horrores e as atrocidades perpetradas não constituem uma ameaça misteriosa e longínqua, exterior a nós, mas que nos são próximas e emanam de nós mesmos, seres humanos. Elas tornam-se assim mais familiares e menos assustadoras. O que é terrível é que os sistemas, desenvolvendo-se, ultrapassam os homens e cerram-nos no seu punho satânico, tantos os autores como as suas vítimas, da mesma maneira que grandes edifícios e torres, no entanto construídos pela mão do homem, se erguem acima de nós, nos dominam e podem desabar-nos em cima e nos sepultar."

"Journal 1941/1943" (Etty Hillesum)


Assim se exprime nos anos da guerra esta admirável Etty, pouco antes de, também ela, desaparecer num campo de concentração.

Por um lado, nesta confissão de que lhe é impossível odiar os seus carrascos, temos mais do que o amor cristão ou o estranho fascínio pelo seu destino, que caracterizou a atitude de tantos judeus perseguidos.

É preciso considerar a jubilosa saúde de um corpo, tal como o vemos nas páginas do diário, amando e pensando, com toda a liberdade e felicidade.

O ódio é o princípio oposto, que estrangula a vida, a razão apenas fornecendo os argumentos para apertar até onde for preciso.

E depois é verdade que os sistemas estão sujeitos a sismos e a derrocadas, e que mais vale pormo-nos a salvo e sair debaixo dele, se for possível, do que nos envenenarmos em bílis.

Em sociedade, a simples mecânica explica muito do comportamento humano.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

ADAM SMITH REFUTADO


Peter Singer

"O movimento em direcção a uma sociedade duradoura não poderá ocorrer sem uma transformação das prioridades e dos valores individuais (...). O materialismo, devido à pressão que exerce sobre os recursos, não pode, simplesmente, sobreviver à transição para um mundo sustentável."


(Lester Brown em "Picturing a Sustainable Society", citado por Peter Singer em "Como havemos de viver?")



O chamado senso-comum diz que a melhor prova da existência de um pudim é comê-lo (embora isso destrua imediatamente a prova).

O que a crise ambiental nos tem vindo a revelar, nos últimos anos, é que o planéta é demasiado pequeno e demasiado frágil para aguentar o nosso tipo de crescimento "ocidental", e que, por outro lado, contra Adam Smith, o interesse individual está longe de ser representativo de um qualquer instinto de sobrevivência da espécie, mesmo em termos estatísticos.

A liberdade de cada um já não pode ser apenas condicionada pela dos seus concidadãos. Uma outra responsabilidade, que não só política, deve emergir da consciência desta realidade "suicidária".

E a maior ironia é que sejam os modelos de vida aparentemente mais "irrealistas", "com os pés menos assentes na terra", os que afinal de contas têm mais condições de sobreviver.

A Natureza pode não "escolher" o conhecimento que supostamente a desvendou.

Toledo (José Ames)

O MERGULHO DE SÓCRATES


Sócrates (470 a.C. - 399 a.C.)



"A fealdade notória de Sócrates, a sua formidável resistência, no combate e na bebida, a retórica do gesto e o repouso da deambulação e da stasis, que engendram as suas perguntas e as suas meditações, encarnam (...) a dinâmica da argumentação e do sentido.

(...) Em incongruentes lugares, nos momentos em que menos se espera, Sócrates mergulha bruscamente numa reflexão profunda - coisa tão indispensável à força do seu ensino, quanto as palavras efectivamente empregues."

"Les Logocrates" (George Steiner)



Um homem que se retira assim, sem aviso, do convívio dos demais para se absorver no debate consigo próprio, contra todas as regras da "boa educação", certamente demonstra que a ordem dentro de si passa à frente de tudo o resto, como se aquele que tem um problema no seu espírito corresse o risco de desencaminhar os outros.

Sabemos qual era o valor da prática filosófica para Sócrates, e o que noutro seria pose e "construção de imagem" é no filósofo a medida do "escândalo" que constitui o pensamento.

E isto sem se afastar sequer da forma natural: "Em Sócrates, o pensamento, fosse ele na sua forma mais abstracta, a alegoria (...), são experiências vividas irredutíveis a uma textualidade muda."

terça-feira, 26 de junho de 2007

ÉTICA CARTESIANA




"A inteligência humana - mesmo entre os mais inteligentes - está miseravelmente abaixo dos grandes problemas da vida pública. No entanto, põe-se todo o engenho em suscitar artificialmente situações que só podem obscurecê-la. Ter de se perguntar, diante de um qualquer problema político: "Qual é a solução mais conforme à razão, à justiça, ao bem público", isso exige toda a atenção de que um espírito humano é capaz e muito mais.

Se além disso um homem tem de se perguntar: "Qual é a obrigação que me impõe, relativamente à atitude a tomar, em face deste problema, a minha qualidade de representante da maioria (ou da oposição)", ele está perdido. Pela natureza das coisas, um mesmo espírito não pode ao mesmo tempo colocar-se verdadeiramente as duas questões. Se ele se coloca a segunda, não se colocará mais do que a segunda."

"Écrits de Londres" (Simone Weil)




Cortante, definitivo, mas luminoso.

Não sei se este rigor intelectual é compatível com a política que é, propriamente, uma arte que não pode evitar de todo os compromissos.

Por outro lado, só se pode estar de acordo quanto ao efeito dos compromissos e da influência colectiva sobre a inteligência e a capacidade de dizermos a verdade a nós próprios.

E não se pode perder de vista esta espécie de cartesianismo ético, mesmo se a política o nega a toda a hora.


(José Ames)

UM AVATAR PROCURA EMPREGO


"Second Life"


Grandes e reputadas empresas, segundo o L'Express, recrutam no mundo virtual.

Alstom, CapGemini, l' Oréal, Unilog e outras servem-se da comunidade da "Second Life" que conta com "mais de 7 milhões de residentes, para descobrir futuros talentos, em directo e em stands recheados de logotipos de empresas."

Quem participa na entrevista virtual é o avatar do candidato que se movimenta no écrã com o rato, como em qualquer jogo da Nintendo. A resposta "real" virá no prazo de 15 dias.

Num golpe de mágica desaparece toda uma cultura da psicologia aplicada, do contacto pessoal que se julgava do interesse insofismável das empresas.

O perfil do interessado é reduzido ao do "homo-interactivus", valoriza-se a sua destreza digital, o seu à-vontade nos ambientes virtuais, a sua capacidade de dissimulação sob uma personagem fictícia, ao mesmo tempo que se verifica o nível da sua resposta quanto aos conhecimentos técnicos e ligados à actividade que poderá vir a exercer na empresa.

Talvez isto não seja muito diferente de um casamento pela Internet, ou de um curso por correspondência. O que me parece relevante aqui é a natural influência dos que cresceram com os jogos electrónicos e a Web num mundo até aqui fechado a tudo o que não fosse o mais convencional sentido das realidades.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

A DEFORMAÇÃO


Akhenaton (Amenhotep IV)



"A mensagem do Freud tardio seria, assim, a seguinte: em última instância, o inconsciente não desempenha um papel importante no destino dos homens. O que conta, verdadeiramente, é o incógnito que dissimula a fonte das ideias dominantes."

"Derrida, un Égyptien" (Peter Sloterdijk)


A tese é a de que a leitura da história bíblica de Moisés por Freud, no seu último ensaio, faz dessa figura um cripto-egípcio, transportando no êxodo do seu povo o monoteísmo recalcado de Akhenaton.

O êxito desse empreendimento depende da eficácia de uma deformação (Entstellung): "passa-se com a deformação de um texto o mesmo que num assassinato. O difícil não é executar o acto, mas eliminar os seus vestígios. Gostaríamos de emprestar à palavra Entstellung o duplo sentido que pode reivindicar, se bem que não se faça uso disso nos nossos dias. Ela não deveria apenas significar: mudar o aspecto de qualquer coisa, mas também: mudar qualquer coisa de lugar, deslocá-la para outro sítio."

(Sigmund Freud em "L'Homme Moïse" citado por Peter Sloterdijk)

Alcafache (José Ames)

O NICHO HIPNÓTICO


O Clube dos Jacobinos



"Laclos e Prudhomme asseguram, nos seus jornais de Julho, que as secções, as assembleias primárias, estavam desertas. Muitos homens, evidentemente, estavam já cansados da vida pública. Em compensação, há que acrescentar que os que perseveravam tornavam-se mais violentos. Se as assembleias legais eram pouco frequentadas, é porque a vida e o ardor se encontravam nas sociedades jacobinas."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)



Estávamos em 91, dois anos apenas depois da tomada da Bastilha. A Constituinte sobrevive a si mesma, cada vez mais virada para o passado, para a monarquia. Mas não esqueçamos que todos, até certa altura, eram monárquicos, incluindo os jacobinos.

"A Assembleia tinha retirado a acção ao rei, e não a dera ao povo. Faltava o princípio do movimento em toda esta vasta máquina: a agitação estava em toda a parte, a acção em parte nenhuma."

Há uma apreciação fisiológica dos acontecimentos que é inteiramente justa. O entusiasmo não pode manter-se por muito tempo, qualquer que seja o ideal. A "vasta máquina" tem de voltar a apoiar-se no seu soco natural. Depois do impulso para diante, a pausa ou a paragem.

Apenas alguns aguentam o estado de febre permanente. E então precisam de um nicho hipnótico que os isole da vaga que se retira e concentra na grande massa estabilizada.

A violência é a coisa mais natural nesse ar rarefeito, porque os moderados e os indiferentes deixaram de exercer a sua calmante influência.

domingo, 24 de junho de 2007

ARTE PÓSTUMA


Marcel Duchamp por Man Ray



Na nova galeria do Solar, em Vila do Conde, os recantos do granito oferecem o espectáculo de alguns écrãs paranóicos num mundo que a noite de S. João deixou deserto. Com os aparelhos que passam e repassam as mesmas imagens e algumas fotografias, anunciadas por títulos como "Endless", "Back to zero", o conjunto dá ideia de uma máquina de movimento perpétuo.

Já não se quer significar nada senão que não há nada para significar. Tem-se a impressão acabrunhante duma exaustão das formas e dos conteúdos.

A arte póstuma reduz-se ao indicador, ao gesto que aponta, num espaço consagrado, um improvável sentido.

Todos os seus artefactos parecem apenas clones do urinol de Duchamp.

(José Ames)

A VIRTUDE RESTRITA


http://www3.baylor.edu





"Ninguém que tenha passado a sua vida entre celerados e sem conhecer mais ninguém poderá ter conceito algum de virtude."

Kant (citado por Hannah Arendt em "Responsabilidade e Juízo")


Hannah Arendt diz que Kant só queria dizer que, nesta matéria, o espírito humano é guiado pelos exemplos.

A ser assim, é também de admitir que exista um ponto crítico nas sociedades, a partir do qual determinado conceito de virtude perderá toda a validade por os costumes o terem esvaziado e a própria sociedade se ter tornado "celerada".

No entanto, e como diz Alain, até numa sociedade de ladrões vigora algum princípio de justiça, sem o que se destruiriam uns aos outros.

E "o ladrão reconhece as leis da propriedade, e deseja até ser protegido por elas, limitando-se a abrir, em benefício próprio, uma excepção temporária na observâncias daquelas."

A virtude (a arete dos Gregos) de um grupo (de guerreiros ou aristocratas) é o princípio da sua verdadeira força, mas ela é completamente estranha ao que chamamos humanismo.

É provável ainda que a "justiça", nessa acepção, funcione como um princípio de selecção natural. Só sobrevivem as sociedades que souberem adoptar algum tipo de virtude.

sábado, 23 de junho de 2007


Ericeira (José Ames)

QUESTÕES DE PESO


Roger Debray

"A primeira revolução de todos os valores relaciona-se, assim, com a dimensão dos pesos. Esta inversão dos valores, como o explica Debray numa interpretação estimulante, tem como primeiras vítimas os pesados deuses dos Egípcios cuja imobilidade petrificada os impede de partir em viagem - e à cabeça deles Amon, "o pesado deus do Estado", como lhe chamava Thomas Mann. Se o povo de Israel pôde, a partir de então, transformar-se numa entidade teofórica, literalmente omnia sua secum portans, foi porque tinha conseguido transcodificar Deus, fazê-lo passar do medium da pedra ao do pergaminho (...)"

"Derrida, un Égyptien" (Peter Sloterdijk)


A interpretação "estimulante" de Roger Debray que, em vez de se interrogar sobre a natureza de Deus, seguiu os vestígios das grandes religiões, as pisadas deixadas na areia do deserto ou nas margens dos rios sagrados, dos monumentos aos documentos, pode dizer-nos alguma coisa sobre o espírito vivo?

Alguma vez estará ao nosso alcance, a partir das condições materiais, da dieta de um povo, da sua errância no espaço físico, estabelecer mais do que uma probabilidade?

Mas a abordagem de Debray parece tão original que nos escapa aquilo que a sua teoria mediológica deve ao materialismo tout court.

Confesso que o facto da "portabilidade" das religiões do Livro poder explicar em parte a sua disseminação pelo planeta e a sua congenialidade com a "revolução permanente" e o expansionismo do sistema técnico-económico do Ocidente, me deixa no umbral da compreensão.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

UM VELHO AMIGO


Marcel Proust (1871/1922)

Marcel, encontrando o embaixador em casa de Mme. de Villeparisis, percebe muita coisa e exclui que esses amores pudessem estar na origem da desclassificação da Marquesa: "num mundo em que as mulheres mais brilhantes ostentavam amantes menos respeitáveis do que este que, aliás, não seria provavelmente desde havia muito tempo para a Marquesa outra coisa para além de um velho amigo."

"Le côté de Guermantes" (Marcel Proust)


Com esta insinuação, que se refere à idade relativamente avançada dos protagonistas, o narrador transforma o amor em algo que ficou pelo caminho, chegando M. Norpois e Mme. de Villeparisis ao ponto em que se encontram quase todos os casais que descobrem na amizade o prolongamento natural da paixão e do amor.

Mas Proust utiliza um advérbio (aliás) cheio de significado e que representa aqui a opinião da "boa sociedade".

Como amantes, podiam afastar do salão da Marquesa as pessoas que mais desejariam atrair, mas eles já não o eram.

O tempo trouxera com ele a amnistia. E a idade, o branqueamento em mais de um sentido.


(José Ames)

ENQUANTO HOUVER


Theodor Adorno (1903/1969)

"O mais pequeno vestígio de absurdo sofrimento no mundo da experiência inflige um desmentido a toda a filosofia da identidade que quisesse desviar a consciência da experiência: "Enquanto restar um mendigo, o mito permanecerá.(*); é por isso que a filosofia da identidade é mitológica como pensamento. O momento corporal anuncia ao conhecimento que o sofrimento não deve existir, que isso deve mudar. "A dor diz: passa." É por tal motivo que o que é especificamente materialista converge com aquilo que é crítico, numa praxis socialmente transformadora."

"Dialectique négative" (Theodor Adorno)

(*) Benjamin ("Passagenarbeit")


Muitos discursos políticos começam por um "enquanto houver" que é uma promessa com uma certa ressonância bíblica, impossível de cumprir, e por isso mesmo transcendendo, às vezes, a retórica e a política, quando se depara com a aspiração correspondente nos corações de quem a ouve.

O sofrimento não pode ser expurgado do mundo, enquanto o homem for homem, isto é, enquanto tiver um corpo vulnerável às anfractuosidades do acaso e sentir em si ou nos outros o mal físico ou moral.

E suponho que nem o mais policial dos Estados conseguiria erradicar de todo a vagabundagem. Há de sempre haver um indivíduo que prefira enjeitar o fardo da responsabilidade.

A crítica e o materialismo terão sempre motivos para querer transformar o mundo.

E o pior que nos podia acontecer era convencermo-nos de que já passámos a idade dos mitos. Então aquilo que Adorno chama de filosofia da identidade deixaria de possuir a chave para abrir qualquer porta fora de si mesma.

quinta-feira, 21 de junho de 2007

A TENTAÇÃO OCEÂNICA


Herbert James Draper (1864-1920)

"(...) é escapando ao mundo pré-racional, místico, colectivo do canto, é opondo o poder da linguagem, nem que seja interior, às tentações oceânicas, informes, sempre abissais da música, que Ulisses se torna um sujeito livre. É sempre a tenebrosa ressaca das ondas da música, mais antiga do que a palavra, e por esse lado pré-humana, que ameaça - como a maré-baixa - levar consigo a ratio, o pensamento que procura agarrar-se à luz."

"Les logocrates" (George Steiner)


De certa maneira, com o novo paradigma na arte e na ciência, voltamos ao mundo da música e das "tentações oceânicas".

É como se Ulisses, em vez de resistir ao canto das Sereias, no seu regresso ao país natal, as procurasse sobre as ondas, já sem sentir o medo de ser arrastado para o fundo, seduzido por essa imagem da morte.

Ítaca tornou-se todo o universo e a liberdade do pensamento já não se exerce contra a matéria informe e o abismo sem remissão, mas contra o confinamento do espírito em si mesmo, numa espécie de ilha afortunada da infância.


Vagueira (José Ames)

O PODER SAI DO LIMBO


"Cristo no Limbo" (Albrecht Dürer)


"O automóvel conduz ao pecado quando se faz uma ultrapassagem perigosa ou quando é usado por prostitutas e pelos seus clientes."

(do "Público" de 21/6/2007)


O Vaticano com esta pastoral parece querer dar um sinal de que a Igreja se procura adequar, finalmente, ao mundo moderno.

É verdade que o automóvel já tem um século mas, de facto, trata-se de uma das "próteses" humanas que mais se prestam a ser ocasião de injustiça. E a velocidade pode ser, sem dúvida, "uma expressão do poder e da dominação".

O que há de surpreendente nestas "Orientações para o Cuidado Pastoral na Estrada" é o seu carácter avulso e aparentemente arbitrário.

Porque, enfim, o progresso tecnológico coloca novos problemas éticos e a tecnologia que influencia mais directamente a maneira de pensar, como os meios de comunicação de massa, pareceria à primeira vista carecer especialmente de "cuidados pastorais".

Além disso, ao abordar a problemática do poder e da dominação, a Igreja encontra, por definição, o seu princípio inimigo, princípio que séculos de pragmatismo e de diplomacia encerraram numa espécie de limbo.

E esta coincidência da eleição do automóvel entre todas as ocasiões de pecado com a extinção oficial do Limbo dá efectivamente muito que pensar.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

A REVOLUÇÃO DO ABSTRACTO


Kandinsky: "Composição VII"


"Comecei por ficar interdito, depois dirigi-me rapidamente para esse quadro misterioso (no qual via apenas formas e cores cujo tema era incompreensível). Depressa descobri a chave do enigma: era um dos meus quadros que estava apoiado de lado."

"Kandinsky, citado por José Gil em "A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções"


O que teria sido preciso para um pintor da Renascença ficar intrigado com tão pouco? Que paisagem ou retrato, poisado de lado, abriria assim as veias ao sentido? Kandinsky, de facto, já procurava qualquer coisa fora dos cânones.

Aquele seria um dos "acontecimentos e dos gestos fundadores da pintura abstracta".

Podemos dizer então que a arte nesse momento se separou da intencionalidade. Um quadro poisado de lado, ou do avesso, abria todo um mundo de formas e de cores que, apesar de "incompreensível", não se encontrava na natureza.

Quando olhamos as manchas de humidade numa parede, ou a caprichosa formação das nuvens, parece-nos ver aí alguma figuração que é fruto do acaso e da antecipação da nossa "leitura".

O mundo "concreto" (por oposição ao da pintura abstracta) era um mundo fechado, onde só os objectos da nossa percepção ou da nossa imaginação tinham sentido. Naquela encruzilhada, entrámos no que José Gil chama de pré-percepção, num mundo entre o caos e a ordem.

É impressionante como nesse princípio do século, a pintura dava um passo para fora do antropocentrismo, tal como a ciência o acabava de dar com a teoria da relatividade.


Veneza (José Ames)

A LOUCA DA CASA


Santa Teresa de Ávila (1515/1582)


"E, no entanto, tal como a compaixão pela infelicidade não será talvez muito exacta porque através da imaginação, nós recriamos toda uma dor sobre a qual o infeliz, obrigado a lutar contra ela, não pensa enternecer-se, também a maldade não terá provavelmente na alma do mau essa pura e voluptuosa crueldade que nos faz tão mal ao imaginá-la. O ódio pode inspirá-la, a cólera dar-lhe um ardor, uma actividade que nada tem de feliz: era preciso o sadismo para extrair prazer dela, o mau acredita que é a um mau que faz sofrer."

"Le côté de Guermantes" (Marcel Proust)


Este texto podia ser a glosa de uma sentença cartesiana contra a imaginação.

Sofrendo na retaguarda o trabalho de "la loca de la casa", como lhe chamou Santa Teresa de Ávila, temos tempo de aumentar o mal pensando ociosamente nele, coisa de que a acção nos liberta por nem nos deixar o tempo de pensar.

terça-feira, 19 de junho de 2007

O TRIUNFO DA CRÍTICA


"A força do sexo fraco" (1964-Ingmar Bergman)


O que quer dizer Ingmar Bergman com o título do seu divertimento "A força do sexo fraco" ("All these women")?

Através dos meios do burlesco cinematográfico, Bergman sai do seu trilho metafísico para nos falar da crítica.

Cornelius, o crítico, sujeita Félix, um violoncelista de génio, rodeado do harém das suas amantes, a um verdadeiro assédio para documentar uma biografia.

O artista defende a sua intimidade, com um zelo que não podemos considerar excessivo nos tempos que correm, furtando-se a uma entrevista.

Mas o mundo feminino que lhe serve de colchão contra a realidade é o mundo da devoção mais sentimental que se possa imaginar.

Cornelius, revela-se um aliado natural das mulheres, jogando a cartada decisiva ao impor ao mestre a execução de uma das suas próprias obras, em troca de uma biografia "imortal".

No momento da traição à sua arte, Félix cai fulminado pela musa.

A conclusão irónica de Bergman é que a Crítica acaba sempre por triunfar, passando à posteridade a única versão que conta, a da ficção que sai da sua própria pena.

A força da crítica é, assim, a mesma do sexo fraco. Ambos vencem a realidade e a morte pelo culto.

Reduzindo a profundidade metafísica ao plano dos sentimentos, o agradável odor do incenso pode alcançar a própria solidão gelada das relíquias.


Alcobaça (José Ames)

A CONCEPÇÃO MÉDICA


http://www.fcsh.unl.pt/cadeiras/plataforma/foralinha/atelier

"Segundo a concepção absolutamente médica que Platão tem da arte política, a justiça penal, que obriga o delinquente a prestar contas, teria para com a legislação as mesmas relações que a terapêutica do homem enfermo tem para a dieta do homem são. A pena, ao contrário do que pretendia a antiga concepção jurídica dos Gregos, não é expiação, mas curativo. O único mal verdadeiro é a injustiça. Este mal, porém, só afecta a alma de quem o comete, não de quem o padece."

"Paidéia" (Werner Jaeger)


Segundo Comte, a primeira idade da razão foi teológica. O que acontecia ao corpo e o fazia padecer era muito mais depressa atribuído aos deuses do que à dieta ou ao regime de vida.

O melhor remédio era, pois, aplacar os deuses e atrair o seu favor.

Mas, com isto, a cultura mágica era o verdadeiro ser do indivíduo, que não conhecia ainda o dualismo do corpo e da alma.

Em Platão existe, talvez, um eco dessa harmonia primitiva. A própria ideia da justiça provirá do corpo harmonioso, em sua casa na cultura e na natureza.

E, como Jaeger assinala noutra passagem, este modelo está na origem da primeira cosmologia.

Compreende-se, assim, a referência a uma concepção médica.

E não é toda a política a procura de um equilíbrio? Sempre haverá instabilidade e forças contrárias a reclamar a cura pela justiça.

No símbolo da balança está bem patente a ideia do equilíbrio.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

NUVENS SOBRE O LAGO


"A Gaivota" pelo Teatro da Cornucópia

Finalmente, consegui ver "A Gaivota", de Tchekov, encenada por Luís Miguel Cintra.

E o milagre aconteceu mais uma vez. Os actores conseguiram recriar o mundo poético do grande dramaturgo.

Mais uma vez, o destino (que melhor palavra para traduzir a impossibilidade de isolar a acção humana dos seus antecedentes e das suas consequências, na sua verdadeira dimensão "cósmica"?) se serve de um homem amável, nem sequer inconsciente do significado dos seus actos, honesto quanto aos seus méritos de escritor e bom juiz da vaidade humana, que "passa, e não tendo mais que fazer", destrói o ser livre e belo que voa sobre o lago.

O facto de Trigorin ter resumido o drama antes dele ser vivido e em que irá representar o papel do destruidor, de o vermos depois da desgraça de Nina, como se tudo lhe tivesse passado ao lado e sem ele, parece sugerir que estamos diante de um caso particular do fatalismo russo.

Mas é só porque na posição do espectador e no tempo do espectáculo, as personagens nos parecem o mesmo homem ou a mesma mulher. Na vida real, podemos tornar-nos irreconhecíveis sem dar por isso.

No final, ouve-se um tiro e, como dizia Gorki, alguém fez o que tinha a fazer, acabando com a vida.

Os actores secundários vão muito bem. O velho Peter Sorin, interpretado por Cintra, é vivo como as coisas vivas. Teresa Sobral, no papel de Irina, é a graça sobre as tábuas. Memorável, memorável.


(José Ames)

A INJUSTIÇA COMO PREFERÊNCIA


"José e os seus irmãos" (MAULBERTSCH, Franz Anton)


"Este crime, o narrador o mostrará, está carregado de uma profunda ambiguidade. Não se presta somente a representar a psicodinâmica do ciúme e o mistério da injustiça, mistério indissociável do amor que acorda uma preferência; ele oferece ao mesmo tempo uma admirável ocasião de tratar o problema do regresso ao Egipto, que só se pode abordar, num primeiro tempo, sob a forma blasfematória."

"Derrida, un égyptian" (Peter Sloterdijk)


Sloterdijk comenta o romance de Thomas Mann "José e os seus irmãos". Como se sabe, na narrativa bíblica, José distingue-se pela sua capacidade de interpretar os sonhos e de "melhor compreender os homo-egípcios do que eles se compreendiam a si mesmos".

Assim, o crime dos irmãos contra o favoritismo de Jacob pelo filho mais novo, o "mistério" do amor que não adere espontaneamente aos ditames da razão e ao princípio da igualdade (terá toda a injustiça origem numa "preferência" da natureza, como aqui?), acabou, como diz o filósofo, por ilustrar o ditado de "Há males que vêm por bem" e de dar lugar a um outro favoritismo, desta vez, do faraó pelo estrangeiro, fundado apenas na sua "capacidade hermenêutica".

A profecia de um tempo de vacas magras depois de um de vacas gordas terá sido útil ao Estado, mas antes disso revelava já, em José, o que parecia uma preferência dos deuses, os quais lhe desvendavam, a ele, alguns dos seus segredos.

E nesta história o que está mais presente é esse arbitrário poder que intervém na vida dos homens para escolher aqueles que serão o seu instrumento.

domingo, 17 de junho de 2007


Cuenca (José Ames)

A IMPORTÂNCIA DE SER LEAL


Rua dos Douradores



"
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo

À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,

E a sensação que tudo é sonho, como coisa real por dentro."

"A Tabacaria" (Fernando Pessoa)


A palavra lealdade é uma âncora no dilema do poeta. Bem sabemos que está ali sob a forma de um dever, mas como não se confronta com uma paixão e tão-só com a sensação do sonho, é de crer que tenha força suficiente para segurar o mundo flutuante onde vogam ruas, tabacarias e tabuletas.

De resto, Pessoa não era um homem de paixões. Tinha a capacidade de se passear por várias vidas como um espectador de cada um dos seus nomes. Se se apaixonasse numa dessas vidas, talvez pudesse dizer que tinha visto tudo, por se ter perdido a si de vista.

Mas volto à imprtância da lealdade na Física pessoana. Ele que não cria em nada, podia, pelo menos responder por si, quem quer que fosse, e "honrar" uma pertença (à rua dos Douradores ou à língua portuguesa, por exemplo).

Uma biografia, a história dos nossos passos quotidianos ou não, não nos obriga a qualquer coisa como aquilo que ele definiu como lealdade? Quero dizer, não podemos trair o mundo que nos conhece (o do Esteves e da Tabacaria), sem que nos tornemos e o que pensamos em puro nada.

Para podermos dizer que a hora é absurda, é preciso uma plataforma como a de Arquimedes. Só troçaremos do tempo começando uma nova contagem.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

A EXPERIÊNCIA ESSENCIAL


Primo Levi (1919/1987)

"Atenção! A partir do momento em que é formalizado, em verso, em rimas ou estâncias, mesmo o maior grito de revolta acrescenta, ele próprio, um mistério de aceitabilidade ao fenómeno.

O segundo passo, o mais difícil, consistia em dizer: "Não, em relação a tudo e contra tudo, eu posso ainda transmitir, comunicar alguma coisa da experiência essencial."

Na massa considerável da literatura do "Holocausto", três ou quatro escritores somente o conseguiram."

"George Steiner: Entretien avec Ronald Sharp"


A passagem à forma significa, não é verdade, que a experiência traumática foi já, de algum modo, dominada, que pode separar-se de nós, ser mantida à distância.

Não se pode aceitar, mas se podemos pensar o trauma é porque ele já faz parte do passado e que só podemos tentar esquecê-lo, reprimi-lo e "escrevê-lo" nos sintomas, com o nosso próprio corpo, ou expulsá-lo de nós pela criação artística.

Celan e Primo Levi, que estão entre os poucos referidos por Steiner como tendo sido capazes de transmitir a "experiência essencial", contudo, suicidaram-se.

Realizaram o milagre e desapareceram.



(José Ames)

O SABER DA POLÍTICA



"Não foram os arquitectos e engenheiros navais, cujo saber Sócrates enaltece como modelo, quem levantou as fortificações e os portos de Atenas, mas sim Temístocles e Péricles, que, apoiados no poder da retórica, convenceram o povo da necessidade de realizar estas obras."

"Paidéia"(Werner Jaeger)


Este é o argumento de Górgias, o sofista, em favor da sua arte, o qual não convence o nosso filósofo porquanto se põe a questão do abuso da retórica e que o bom ou mau uso desse poder, dependerá, em última análise, da ideia que se tenha do bem.

Nos dias de hoje, a retórica foi substituída pelas "relações públicas" e pela utilização dos meios de comunicação de massa. A imagem e a encenação da política, mediadas por técnicos especializados, contam mais do que a eloquência, sem impediram (o que acontece muito raramente) que às vezes se estabeleça uma corrente da palavra e que a eloquência desempenhe um papel marginal.

Pode-se assim dizer que a "retórica" mediática se tornou de facto tão poderosa e a questão da finalidade tão dependente da sanção eleitoral, que praticamente deixou de ser pensada, por si mesma, e de influenciar as escolhas, que acabam então por ser motivadas pela auto-sugestão daquela retórica e por um acrítico "estado de graça" favorecido pela legitimidade democrática.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

DE TORRES E PIRÂMIDES



"Aquilo a que o filósofo chama de desconstrução é apenas, na verdade, num primeiro tempo, um acto relevando da securização semântica mais radical - ela é o materialismo semiológico em acção. Poder-se-ia descrever o procedimento desconstrutivo como um modo de emprego para a outorga de igrejas e castelos do antigo regime metafísico e imortalista nas mãos do Terceiro Estado dos mortais."

"Derrida, un Égyptien" (Peter Sloterdijk)


Sloterdijk diz que com Derrida "o que chega ao seu termo é a viragem linguística ou semiológica a partir da qual o século XX tinha pertencido à filosofia da linguagem e da escrita" e considerando a aptidão da teoria desconstrucionista para se aplicar a si mesma, pergunta se "seria possível que a desconstrução, conformemente ao seu impulso central, seja um projecto de construção que visaria a produção de uma máquina de sobrevivência indesconstrutível." Qualquer coisa como a pirâmide egípcia que só é eterna porque "foi logo construída conforme o aspecto que teria depois da sua derrocada."

Temos no marxismo um exemplo de uma teoria dotada de uma cláusula de actualização automática, pela aplicação a si mesma do seu método crítico, e que teve o destino escolástico que se sabe.

O futuro, simplesmente, não pode ser antecipado. A crítica é tão impotente nesse sentido, quanto o espírito absoluto hegeliano.

A metáfora da Revolução Francesa pode revelar-se bastante irónica, se pensarmos que "as igrejas e castelos" passaram para mãos igualmente privilegiadas e que o Terceiro Estado sucumbiu ao despotismo napoleónico.

O "materialismo semiológico", ao pretender reduzir o espírito a espécies linguísticas ou semióticas, na realidade acaba por erguer apenas uma torre de Babel, cuja forma, felizmente, não é eterna como a dos monumentos de Gísé.


Alcochete (José Ames)

A AMBIVALÊNCIA DE RAQUEL


"Imagination-tree"http://www.innovationtools.com

"Eu dava-me conta de tudo o que uma imaginação humana pode pôr detrás de um pequeno pedaço de rosto como era o daquela mulher, se foi a imaginação que a conheceu primeiro; e, inversamente, em que miseráveis elementos materiais e destituídos de todo o valor, se podia decompor aquilo que era a finalidade de tantos sonhos, se, pelo contrário, isso tiver sido percebido de uma maneira oposta pelo conhecimento mais trivial."

"Du côté de Guermantes" (Marcel Proust)


Robert via a amante por um dos "lados do mistério", em que a imaginação amorosa e o amor próprio são o único princípio da realidade.

O próprio facto de gastar uma fortuna para obter o que qualquer outro obteria por "vinte francos" contribuía para radicalizar essa paixão e elevar o objecto do amor a alturas acima de qualquer desmentido de ordem prática.

Para Marcel, "Raquel aquando do Senhor" era apenas uma prostituta, porque ela lhe tinha aparecido assim da primeira vez. E o que ele admira é "o poder da imaginação humana, da ilusão sobre a qual repousavam as dores do amor."

E este é o outro lado do mistério.

Como acontece em todo o lado na obra-prima proustiana, mais tarde vamos ser surpreendidos pela evolução da personagem de Robert Saint-Loup, a ponto de termos de voltar a esta paixão para a ver com outros olhos e julgá-la ainda mais independente do seu objecto amoroso.

terça-feira, 12 de junho de 2007

UMA FLOR NÃO É UMA FLOR


Paul Celan (1920/1970)


"A morte é uma flor que só abre uma vez.

Mas quando abre, nada se abre com ela.
Abre sempre que quer, e fora de estação.

E vem, grande mariposa, adornando caules ondulantes.

Deixa-me ser o caule forte da sua alegria."


"A Morte é uma Flor" (Paul Celan)

A quem se dirige a prece final?

Do "roseau pensant" de Pascal, imagem da fragilidade humana, a este caule forte do voto de Celan, forte porque aceita a alegria que lhe é mais estranha.

A morte como órgão sexual do nada que desabrocha para o ser.

E este outro poema:

"No brilho da terra
pedir o sono
à virgindade do céu
ao lado."

Não o brilho que se deseja eternizar, sob um céu de olhos fechados, mas o brilho de que nos temos de defender pela inocência.


(José Ames)

UM CABELEIREIRO DE QUALIDADE



"A emigração, a ruína de muitos que não emigravam tinham atirado para a rua uma quantidade de criadagem, de gente ligada aos nobres, aos ricos, a vários títulos, agentes da moda, do luxo, da diversão, da libertinagem. A primeira corporação do género, os cabeleireiros, estava como que aniquilada. Florescera durante mais de um século, pela bizarria das modas. Mas a terrível palavra da época, "regressai à natureza", matara estes artistas, cabeleireiros e cabeleireiras; tudo se orientava para uma simplicidade assustadora."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


Uma das maiores tragédias da Revolução, a matança do Campo de Marte, de 17 de Julho de 1791, começou por uma inconsequência de um desses artistas no desemprego que, mais um companheiro, se escondeu sob as tábuas do altar da Pátria para espreitar as pernas das mulheres na cerimónia no dia seguinte. Foram denunciados e arrastados pela multidão. Primeiro, viram nisso um ultraje ao sexo, mas depressa correu o boato de que o que pretendiam era fazer ir pelos ares a tribuna. Acabaram degolados pela turba enfurecida.

A anedota muda muitas vezes de registo no palco da vida, como se um todo poderoso encenador, sem se preocupar com a coerência, mudasse o cenário da peça sem informar os actores.

A corporação dos cabeleireiros era povo pelo nascimento, mas dependia em tudo da aristocracia. Como o homem é aquilo que faz, na Revolução, encontrava-se dividida e desmoralizada.

Naquela ocasião forneceu a mecha no paiol.

segunda-feira, 11 de junho de 2007

O ARCO RETESADO


Cabeça de Amásis


"Eis como ele tratava os assuntos: desde o despontar do dia até à hora em que o mercado se enche de gente, dedicava-se a julgar as causas que se apresentassem. O resto do tempo passava-o à mesa onde troçava dos seus convivas e só pensava em divertir-se e em fazer partidas engenhosas e indecentes. Os seus amigos, consternados por uma tal conduta, objectaram: "Ó rei, disseram-lhe, tu não sabes manter a honra do teu estatuto e torna-lo vil. Sentado com dignidade sobre o teu trono, devias ocupar-te todo o dia dos cuidados do Estado."

Mas Amásis, o faraó, respondeu-lhes:

"Não sabeis que só se retesa o arco quando dele temos necessidade e que, depois de nos termos servido dele, o distendemos? Se estivesse sempre tenso, partir-se-ia e já não nos poderíamos servir dele quando fosse preciso."

"Histórias" (Heródoto)


Este belo exemplo de sabedoria cessa de ter pertinência se pensarmos em rentabilidade a curto prazo e a todo o custo.

Substituindo os homens pelas máquinas, precisaremos cada vez menos de "distender o arco".

Mas há uma outra visão, essa sim indefensável, que pretende tratar os homens como máquinas, desde que o "arco" não se parta nas mãos de quem o retesa o tempo todo.

Veja-se como tantos jovens, no seu emprego precário, têm de obedecer à "norma da casa": " - Aqui há horas de entrada, mas não há horas de saída!"


Burgos (José Ames)

DESIGUALDADES


Karl Marx (1818/1883)


"Se a abundância e a superabundância eram os fins originais do sonho marxista de uma sociedade sem classes, baseada no excedente natural do trabalho humano - isto é, no facto de o trabalho estimulado pelas necessidades humanas produzir sempre mais que o necessário à subsistência individual do trabalhador e à subsistência da sua família -, então estamos hoje a viver a realidade do sonho socialista e comunista, ressalvado o facto de esse sonho se ter realizado, ultrapassando a fantasia mais extrema do seu autor, por meio do progresso tecnológico cujo último estádio é provisoriamente a automação. O nobre sonho transformou-se assim em qualquer coisa que se parece muito com um pesadelo."

"Responsabilidade e Juízo" (Hannah Arendt)


De um ponto de vista económico parece ser assim: as relações de produção, de facto, não entravaram o desenvolvimento das forças produtivas, como augurava Marx (resta saber até que ponto esse desenvolvimento está, pelo contrário, na razão directa dessas relações).

E o resultado, a abundância de que fala Hannah Arendt, mesmo tão desigualmente distribuída, talvez permitisse, nalgumas sociedades, pelo menos em teoria, satisfazer o lema "de cada um segundo as suas capacidades, a cada um conforme as suas necessidades."

Mas contra essa ideia, levantam-se desde logo as chamadas questões de definição.

É evidente que as necessidades são, hoje em dia, nalgumas sociedades, cada vez menos naturais e definidas, cada vez mais, pelas estratégias de produção e de distribuição de bens artificiais. A própria noção de trabalho deixou de caber no enquadramento clássico da criação de mais-valia.

O certo é que a desigualdade tem um ponto crítico e este é muito menos económico do que político.

Em nome da justiça, que se invoca para acabar com a desigualdade no próprio plano económico, não se pode, porém, atrair uma injustiça maior representada por uma mais decisiva desigualdade no plano político.

De certo modo, embora se tenha de reconhecer que a força mais revolucionária seja a tecnologia, há um ponto cego na luta pela igualdade, em todos os domínios, que favorece o progresso.

Porque a economia não pode ser um mundo "natural", onde domina o mais forte e o mais apto.

domingo, 10 de junho de 2007

O ROMANCE DE IDEIAS



"P - Terão as ideias na ficção um papel subordinado?

GS - Aí está uma questão difícil. Existem romances que qualificaríamos de grandes, mas que vivem do facto do seu conteúdo ideológico e intelectual. Poderia ser o caso de uma boa parte da produção de Thomas Mann. "O Homem Sem Qualidades" de Musil inspira tanto os filósofos quanto os críticos literários. Mas é raro."

"George Steiner - Entretiens avec Ronald Sharp"


Esta ideia do génio ficcional e da criatividade de um Tchekov ou até de um Simenon, especialmente admirado por Steiner, tem uma razão.

Os chamados romances de tese são um exemplo da lógica aplicada à literatura e que lhes é fatal. Tudo é esperado pelo desenvolvimento da ideia.

Mas Musil consegue o prodígio de apresentar os seus conceitos na aparente anarquia de uma criação da natureza. Decerto não encontraremos no seu romance a experiência de um sujeito no tempo, que a própria narração vai transformando num outro.

As personagens de "Os Maias", por exemplo, sofrem todas esta passagem do tempo. O que une os extremos destes caracteres desconhecidos numa mesma pessoa é o romance.

Em Musil, talvez se tenha de procurar na "acção" do intelecto um eco desse efeito do tempo.


"Creta" (José Ames)