sábado, 9 de junho de 2007

ANIMULA VAGULA


Marguerite Yourcenar (1903/1987)



A certa altura, o amigo pede-me emprestado o livro da Yourcenar, e eu começo a marcá-lo. É como se tivesse o privilégio de ler por cima do seu ombro. Não é sem pudor que o faço, porque receio não ver o diamante escondido. Todos nós fazemos um pouco de batota para não sermos julgados pelos signos mais pobres. É verdade o que diz Hadrien de só os velhos terem o privilégio de abandonar a máscara.

Querer agradar talvez seja mais do que um pecado das outras idades, um acordo de paz para guardar o domínio de si próprio. O velho e o doente conhecem a experiência mais profunda da solidão. A morte só aceita a visita do homem nu. Nada de companhia frívola ou zelo amoroso. E o corpo, através da doença, aprende a separar-se dos homens. Contudo, é preciso frequentar o pensamento dos séculos para conservar os olhos abertos na entrevista solitária com a dama de espadas. Por isso me parece que a autora tem razão ao dizer que é possível viajar no tempo recorrendo à forma humana. E o século II é ontem, é o passado duma maneira geral.

A infância é um mito irredutível. Por muito que se limpem e componham as ruínas, não encontraremos habitantes. E a palavra que nos indica uma passagem, o contacto dum povo é ainda pedra sobre pedra. O homem que nos fala atravessou as eras da humanidade. Como a célula permite a reconstituição do corpo, no homem há um resíduo da história.

Este fragmento poético tão íntimo, cheio de diminutivos, animula vagula, blandula é o diapasão que identifica a verdade dum sentimento e duma sensibilidade. A poesia abre-nos o coração do homem, como a ideia da infância nos desarma e despe aos nossos próprios olhos. Uma mulher, dezoito séculos depois, parte à descoberta desse espírito que foi o imperador romano. Adriano não aparece junto ao túmulo, ou na mesa de trabalho. Mesmo os seus amores são pó agora. A imagem do favorito repartida pelos cantos da Ásia e da Europa dirige-se à emoção de todo o estranho que a contemple. O nome do bitínio não esconde a dissolução dos corpos e da memória viva.

Só se pode viver como Adriano uma vez. Mas Yourcenar, para escrever a história que compreende a “animula” e o imperador – esta tradução do sentimento no mundo da política, a reunião da sensibilidade e do poder, para além da consciência do homem sem Deus, característica deste período, segundo as notas da escritora, é o motivo da obra como se adivinha – deixa-se tomar pela personagem pouco a pouco recriada a partir do núcleo poético, das leituras e dos documentos.

Ela tenta pensar o romano como coisa sua. Com o amor do passado pessoal. E se é evidente que haverá tantos Adrianos quantos os médiuns que convocarem o seu espírito, isso não é apenas uma fatalidade dos séculos que nos separam. É fatal que aconteça porque se conta a vida.

Adriano seria o primeiro a trair-se. Mas é o espírito que é verdade.

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