quinta-feira, 31 de julho de 2008


Alcácer do Sal (José Ames)

UMA VISITA NOCTURNA


Simone de Caillavet


Quando Proust apareceu, inesperadamente, em casa dos Caillavet com o pedido urgente de ver Simone, a filha do casal, então com 13 anos e, àquela hora, profundamente adormecida, deve ter parecido louco, mas a sua obra corria contra a morte.

Ele precisava dum modelo da "terceira geração" para personificar Mlle. de Saint-Loup (a filha de Robert e de Gilberte), na última parte do romance.

A obra do tempo, como se sabe, surge aí dum modo teatral. O envelhecimento torna as personagens em novos seres, acrescentando ao trabalho do esquecimento. A nova geração é o facto consumado do tempo, e a adolescente que vem ao encontro de Marcel anuncia já um futuro em que este não terá parte.

Há, neste escrúpulo de autenticidade dos sentimentos e das emoções, a marca dum escritor maior que, sem dúvida, temia, além do mais, que a sua gruta de cortiça o tornasse presa das ilusões dos prisioneiros descritos por Platão no Livro VII da "República".

quarta-feira, 30 de julho de 2008


"Omonia" (José Ames)

PRIMEIRO, AS IDEIAS



"Afirma-se frequentemente que a história das descobertas científicas está dependente da invenção puramente técnica de novos instrumentos. Bem pelo contrário, creio que a história da ciência é fundamentalmente uma história das ideias. As lentes de aumentar já eram de há muito conhecidas antes de Galileu ter tido a ideia de as aplicar a um telescópio astronómico. A radiotelegrafia, como é sabido, é uma aplicação da teoria de Maxwell, que remonta a Heinrich Hertz."

"Em Busca de um Mundo Melhor" (Karl Popper)


O monólito que os astronautas do filme de Stanley Kubrick encontram na superfície da Lua, deliberadamente enterrado alguns milhões de anos antes podia ser uma mensagem ou um instrumento desconhecido (ou as duas coisas).

Nos seus fatos espaciais, eles limitam-se a tocar o objecto estranho como o homem primitivo o faria, ou um dos macacos do intróito da "Odisseia".

Não são só as técnicas que parecem às vezes estar disponíveis antes de as podermos aplicar e desenvolver. Passa-se o mesmo com as ideias.

Aristarco de Samos precedeu Copérnico de quase dois milénios, mas a sua ideia heliocêntrica fazia parte de um sistema exclusivo que não se adaptava à mentalidade desses tempos. Se pudéssemos reconstruir, em pensamento, o mundo antigo veríamos, talvez, por que se tinha que dar razão à teoria de Ptolomeu contra as teorias concorrentes.

Só descobrimos porque procuramos, e mesmo se às vezes o que acabamos por descobrir não era o que procurávamos, nunca aí chegaríamos sem uma hipótese e a ideia de um problema.

terça-feira, 29 de julho de 2008


Montargil (José Ames)

UM DOM JUAN QUE NÃO VAI PARA O INFERNO


"Don Giovanni" de Mozart

"Ou devo dizer-lhe para que se vá embora? Aliás, seria muito indelicado, pois os seus modos não são vulgares nem levianos. O melhor será a senhora recebê-lo, protegida por um kichó!(*)

Esta novidade mergulhou a Princesa numa extrema confusão:

- Mas eu ignoro completamente a arte de falar com os homens! - exclamou, e a maneira como recuou para o fundo dos aposentos, deslizando com os joelhos, revelava uma inocência desconcertante."

"O Romance do Genji" (Murasaki Shikibu)

(*) Uma partição de tecido para dividir um aposento na época Heian.


Esta cena encantadora revela da parte da aia um empenho de entremetteuse em que a princesa receba o Genji sob o pretexto de que ele não é qualquer um e de que um biombo os separará.

E a jovem inexperiente, como se sabe, a mais irresistível das tentações para o Dom Juan mozartiano (mas se há muito desta personagem no Genji, isso vem à mistura com uma delicadeza quase feminina e uma fidelidade sentimental à prova do tempo). a princesa, então, invoca a arte de falar com os homens que nos causa alguma admiração, embora, nesse capítulo, as coisas não tenham tanto como parece, mesmo tendo em conta que se trata do Japão do século X. As relações sociais entre os sexos não dispensam, de facto, uma arte de lidar com o desejo ou com a ideia dele (o diferencial é semanticamente produtivo, mesmo na ausência do impulso natural). Daí a importância do subentendido e das tácticas de sedução e diferimento.

Aquele deslizar com os joelhos para o fundo dos aposentos é a negação da arte, mas é delicioso como sinal de perturbação, que não deixaria de excitar qualquer instinto donjuanesco.

segunda-feira, 28 de julho de 2008


"Surfóbolo" (José Ames)

A ARTE DE COMER UM PÊSSEGO




"Do mesmo modo que, em La Rochefoucauld, a educação apenas serve para ensinar a um homem como deve comer um pêssego com maneiras, assim também todo o aparato de ideias romântico, e ao fim ao cabo também político, que Barrès mobiliza para "propagar o culto da terra e dos mortos" não serve para mais nada a não ser para "transformar sensações caóticas em sensações mais cultivadas. Nunca estas sensações cultivadas escondem a sua origem no esteticismo que é apenas o reverso do niilismo."

"Estética e Sociologia da Arte" (Walter Benjamin)


Terá Benjamin compreendido melhor Barrès do que compreendeu La Rochefoucauld?

Podíamos dizer também que "quanto mais entramos nas ideias deste homem, tanto mais estreita parece a sua afinidade com as doutrinas que o presente produz, um pouco por toda a parte."

Felizmente que não há nem pode haver juízos definitivos, nem acima da crítica.

Proust troçava de Sainte-Beuve por este encontrar na vida do artista a explicação da obra. O freudismo não deu razão à crítica dum autor que entendeu melhor os sonhos do que a psicanálise.

A referência ao autor das "Máximas" é, evidentemente, uma blague. As maneiras do século XVIII ainda não tiveram quem as estudasse sistematicamente. Quem, em vez de se render como Proust ao estilo dum Saint-Simon, as procurasse entender como uma linguagem funcional ao mesmo tempo que estase do poder.

A ideia crítica estava tão ausente dessas maneiras, que a Revolução, por contraste, a endeusou. Um último restolhar desse espírito de negação parece estar presente ainda na "autoridade" com que Benjamin fala do niilismo de Barrès.

domingo, 27 de julho de 2008


Ponte de Sor (José Ames)

AS DUAS CASAS


Tibério Cláudio Nero César (42aC37dC)


"(...) e eu entrava no sono, que é como um segundo apartamento que tivéssemos e onde, abandonando o nosso, iríamos dormir.

(...) a raça que aí habita, como a dos primeiros humanos, é andrógina. Um homem aparece aí, passados uns instantes, sob o aspecto duma mulher. As coisas têm aí a aptidão de se tornarem homens, os homens amigos e inimigos."

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


Ninguém descreveu o sono melhor do que Proust e sabemos que é por essa porta que se entra na sua grande obra.

A mudança de casa no sono não é uma simples mudança de mundo ou de lugar.

O provérbio chinês citado num dos filmes de Rohmer, que diz enlouquecer o homem que vive em duas casas, por que é que os sonhos devem dispersar com a luz do dia e recolher ao mundo de Nosferatu.

Estar nas duas casas ao mesmo tempo é a história de Tibério e do seu astrólogo.

Já as metamorfoses sexuais dos habitantes do segundo apartamento se parecem muito com os desejos que perderam o último metro.

sábado, 26 de julho de 2008


"A Crítica" (José Ames)

GLOBALIZAÇÃO



"Desde o motim dos capitães de Vasco da Gama e a sua repressão, a campanha de globalização é uma guerra permanente dos humores e um combate pelos meios de orientação que é da ordem da hipnose de grupo - e desde recentemente: pelo poder de programação nos mass media e pelo poder de consulta nas empresas."

"Palácio de Cristal" (Peter Sloterdijk)


Segundo Sloterdijk, os portugueses são pioneiros da globalização que não começou com a Internet, mas com as viagens de descoberta.

Para enfrentar os perigos da aventura marítima não bastava a vontade nem a fé dos homens que deram o nome a esses grandes feitos, pois era sempre necessário motivar ou forçar a tripulação.

"Após um início de motim durante uma tempestade, diante da costa de África Oriental, Vasco da Gama mandou deitar ao mar as bússolas, os mapas e os instrumentos de medida dos seus capitães e oficiais para eliminar nos membros da sua tripulação quaisquer veleidades futuras de regresso."

Mais prosaicamente, os instrumentos de risco do capitalismo à escala planetária seriam a continuação das proezas náuticas. A mesma loucura e o mesmo pragmatismo, com doses maciças de "hipnose de grupo" ao nível das empresas e dos mercados.

Como observa Sloterdijk, o custo milionário de alguns serviços de consultadoria, cuja competência ou incompetência é de resto irrelevante, diz-nos algo sobre a necessidade de auto-motivação e justificação dos que decidem essas "travessias" financeiras".

O processo das forças produtivas fica muito enriquecido com esta descida aos porões.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

O PONTO DE VISTA DE LÁZARO


O túmulo de Lazaro

"Uma "ideia" do homem "é um meio de transformar uma questão"."

"O Senhor Teste" (Paul Valéry)


Quantas ideias do homem já tiveram curso no mundo?

Se o pensador é aquele que não reconhece as coisas, por estar fora do mundo, na fronteira do ser e do não-ser (ainda o Sr. Teste), as suas questões não são as verdadeiras questões.

Ele diz também: "o essencial é contra a vida". E os ouvidos sãos só podem fechar-se a estas palavras, dignas, de facto, de Lázaro.

O ressuscitado é aquele que reconhece um poder maior do que a vida, não para exaltá-la, mas contra ela.


Porto (José Ames)

O PROGRESSO ILIMITADO


http://www.robutec.com/


"Mas enquanto que a utilização das fontes naturais de energia depende numa parte considerável de acasos imprevisíveis, a utilização de materiais inertes e resistentes efectuou-se no conjunto segundo uma progressão contínua que se pode abarcar e prolongar pelo pensamento uma vez percebido o seu princípio."

"Réflexions sur les causes de la liberté et de l'oppression sociale" (Simone Weil)


Ao tempo em que Simone escreveu o seu ensaio, a ideia de um desenvolvimento ilimitado das "forças de produção", segundo Marx, em última análise, o verdadeiro motor da história, encontrava poucos cépticos, e o motivo principal dessa ilusão era o espectacular progresso tecno-científico dos últimos séculos.

Mas à filósofa não escapam os sinais de que na "utilização dos materiais", processo que se desenvolveu com o maquinismo e a automação, se teria entrado num período em que o desperdício gerado pela complexidade da organização do trabalho punha em causa o esperado progresso.

Por um lado, a exploração dos recursos naturais dependente do acaso (de novas fontes de energia ou de novas descobertas da técnica), por outro, as aporias da racionalização do trabalho e da organização descartam a hipótese de um progresso ilimitado (para não falar dos retrocessos, sempre possíveis, causados pela guerra).

Só quando nos compenetramos do significado da falência duma tal ideia é que compreendemos como ela é importante como ideologia que iliba todas as atrocidades cometidas em nome dos benefícios futuros.

quinta-feira, 24 de julho de 2008


"Venice" (José Ames)

CADA VEZ MAIS ALÉM


cena do Livro de Job


"A investigação histórica é uma das razões por que uma teoria tem de ser complexa, e a estética da teoria sofre se for mergulhada no banho dos factos históricos. Mas se uma teoria for suficientemente complexa, pode também reconhecer por si quais das suas assunções tem que mudar ou diferenciar para ser capaz de reformular esses factos na sua própria linguagem teórica."

"Love as Passion" (Niklas Luhmann)


Haverá um limite para o desenvolvimento da complexidade teórica?

O "non procedes amplius" do Livro de Job, que fixava um ponto para além do qual o próprio mar não avançaria, pertence a um mundo harmonioso e concebido por um espírito, mesmo se arquitecto supremo.

Claro que continuamos a viver num mundo relativamente previsível, com as suas leis "naturais", de causas e efeitos, o mundo da "distância média"(Musil).

Mas cada vez mais emigramos para dimensões em que isso é só uma aparência.

A minha ideia é de que se pode conceber uma teoria de complexidade "paralela" à da realidade, sem que, evidentemente, a sua coerência e adaptabilidade (segundo a lei da evolução) possam constituir uma qualquer prova de "verdade".

quarta-feira, 23 de julho de 2008


Praia de Salgueiros: danos colaterais

A SEDUÇÃO DE CLORINDA



"(...) a Europa será séria, ou não será. Será muito menos divertida do que as suas nações, que por seu lado, já o eram menos do que as suas províncias. Temos de escolher entre pôr a Europa em ordem ou permanecer eternamente infantis. As nações serão amáveis Clorindas, felizes por sentirem que representaram seres sensuais, apaixonadamente amados. Mas a Europa será como aquela jovem sábia do século XIII, que ensinava Matemática na universidade de Bolonha e se apresentava com máscara aos seus alunos, para não os perturbar com a sua beleza."

(Julien Benda, "Discours à la nation Européenne", citado por Walter Benjamin in "A Modernidade")


Benjamin estigmatiza no Discurso de Benda a ideologia da intelligentsia do tempo.

Em nome do realismo ( a Europa será séria...), acusa-o de defender "a causa das nações contra a da humanidade, dos partidos contra a justiça, do poder contra o espírito."

Julgando essa posição do ponto de vista do "materialismo histórico", vê nela a cegueira quanto à base económica dos problemas e uma dependência inultrapassável em relação aos preconceitos de classe.

Mas a imagem da máscara para esconder a beleza presta-se a mais interessantes interpretações. Em primeiro lugar, parece ir contra a ideia de que a sedução joga um papel na educação.

Despertar o aluno do seu sono juvenil (parafraseando Kant) não é possível sem arte, nem algum "desvio" do caminho natural que é o da facilidade e o da sensualidade.

A professora de Bolonha talvez tenha encontrado, de facto, o meio de ser ainda mais sedutora ( e menos "sotora") atrás da máscara, com a vantagem de libertar o espírito dos sentidos.


(José Ames)

terça-feira, 22 de julho de 2008

ALI NINGUÉM É HOMEM


Monsieur Teste
(http://www.vigilambulocaolho.blogspot.com)


"O homem é diferente de mim e de vós. O que ele pensa nunca é aquilo em que ele pensa; e sendo o primeiro uma forma com voz, o outro toma as formas todas e as vozes todas. Por ali ninguém é homem, e o Sr. Teste ainda menos do que qualquer outro. Também não é filósofo, nem nada desse género, nem sequer literato; daí pensar muito - pois quanto mais se escreve, menos se pensa."

"O Senhor Teste" (Paul Valéry)


O homem não é a linguagem. Teste, como criatura fantástica, mostra-nos a que exterioridade, em relação ao mundo e aos outros, um homem sem corpo chegaria. Por ali ninguém é homem...

O corpo é onde tropeçam as formas.

Mas, assim como podemos "morrer" na "petite mort", temos também momentos Teste (momentos de cabeça - tête, de onde terá origem Teste). Aí podemos, miseravelmente, enganarmo-nos sobre aquilo em que pensamos, pois se diria melhor que, então, somos pensados.

A outra frase sugere, aliás, que, do mesmo modo, a escrita nos desencaminha. É o efeito de todo o medium alienar-nos do (no) pensamento ( a cabeça como medium é o Senhor Teste).

Porque pensar nasce do corpo ou é como um simples chapéu que qualquer tira e põe.

segunda-feira, 21 de julho de 2008


Nápoles (José Ames)

NARCISO COM AS SETAS


Yukio Mishima


No filme de Paul Schrader "Mishima, a Life in Four Chapters" (1985), o corpo explode na escrita.

Enquanto o leitmotive da acção final que culmina os ensaios repetidos nas palavras vai cosendo os capítulos, vemos as histórias retiradas das obras do escritor, em que a morte está sempre presente no narcisismo das personagens, caminharem para a coda final.

Mishima gostava de se fazer representar como S. Sebastião, figura em que a beleza morre ao espelho, como o vira Derek Jarman , cerca de dez anos antes.

Numa das histórias, um homem, preocupado com a decadência física, passa a dedicar-se ao culturismo para alcançar a forma ideal. Escolhe depois morrer com uma mulher que, evidentemente, não ama, porque é apenas um espelho que lhe vai talhando no corpo, até à morte, pequenas incisões como as setas do santo.

Com o seppuku , a pena finalmente encontra a espada e Mishima rouba o corpo à decadência, num acto de escrita em que as palavras são imediata e irremediavelmente eficazes.

A arenga que antes de se suicidar dirige aos recrutas reunidos na parada, sem os apetrechos de amplificação que qualquer demagogo não deixaria de usar, sob o ruído ensurdecedor de um helicóptero - e a sua admissão de que nem sequer o ouviram vem dar mais força ao caso - justifica a imagem da opinião triunfante: a de que se trata de um louco vociferante a pedir um colete de forças.

Vou ter de voltar aos textos para salvar o verdadeiro Mishima. Em qualquer caso, cometeu o erro de pensar que qualquer acto, por mais trágico, pode salvar-se por si só do esquecimento.

domingo, 20 de julho de 2008


(José Ames)

PENSAR SEM REDE



"Despreza os teus pensamentos, que acabam por passar - e tornar a passar - sozinhos..."

"O Senhor Teste" (Paul Valéry)


Isto é cartesianismo puro e duro e releva da coragem de pensar e duma esperança que só a fé na religião do Homem pode sustentar.

O que se rejeita é o automatismo, sobretudo o do piloto e ao mais alto nível. Não se trata dos músculos, nem do sistema neurovegetativo. Podemos realmente assistir distraídos ao cinema mental.

Mas Descartes quer que sejamos responsáveis por todas as acrobacias e que a rede não esteja por baixo. Isso é que é decisivo, essa é que é a verdadeira separação das águas.

Uma fórmula no PDA não é pensada, a mesma fórmula na nossa memória tampouco o é. O grande desafio é recusar resumos e atalhos, as máquinas que facilitam a tarefa, mas que nos transformam a nós próprios em servomecanismos.

A compreensão do fenómeno mais simples, da lei da mecânica mais comum, daquilo que fazemos, afinal, sem consciência, vale mais do que as "descobertas" no fim da linha, que saem das nossas fórmulas sem as podermos ver como um todo.

sábado, 19 de julho de 2008

A MÁQUINA OPRESSIVA



"A supressão da divisão dos homens em capitalistas e proletários não implica de modo nenhum que deva desaparecer, mesmo progressivamente, a "separação entre as forças espirituais do trabalho e o trabalho manual."

"Allons-nous vers la Révolution Prolétarienne?" (Simone Weil)


O extremismo desta dicotomia não nos deve fazer esquecer que já no tempo de Marx havia um mundo de gradações sociais entre os dois pólos.

Simone pensava que os técnicos que comandavam as máquinas (servindo-se estas dos homens como de engrenagens vivas) exerciam a verdadeira opressão, mesmo se não era pessoal. Mas que até esses se especializavam, cada vez mais, num certo tipo de máquinas, o que elevava a opressão para o nível da coordenação.

Essa situação de opressão era evidentemente independente do regime de propriedade.

Como muitas vezes aconteceu na história, se alguma coisa de fundamental mudou não foi pela revolta dos oprimidos, nem pelos esforços da filantropia.

A revolução informática fez reequacionar o problema da coordenação. Mas as novas máquinas contêm cada vez mais "espírito e organização" incorporados, de modo que, talvez pela primeira vez, todos os que trabalham se podem rever no pólo oposto dos que decidem a estratégia (se a táctica for deixada à computação).

sexta-feira, 18 de julho de 2008

O CUIDADO DOS DESVIOS


Galeno exercendo como médico de gladiadores


"(...) um médico como Galeno considera que é da sua competência não apenas curar os grandes desvios do espírito (a loucura amorosa era tradicionalmente do domínio da medicina), mas cuidar das paixões ("energia desregrada, rebelde à razão") e os erros ( que "nascem de uma opinião falsa"); de resto, "globalmente e num sentido geral", uns e outros "chamam-se erros"".

"O Cuidado de Si" (Michel Foucault)


Quase um milénio e meio depois, Descartes escreve o seu "Tratado das Paixões", que dedica à princesa Elisabeth da Boémia, e em que cada um pode ser o médico de si próprio.

Hoje, fomos mais longe ainda. Listaram-se os "desvios", que já não são erros, nem podem ser tratados pela filosofia e as paixões foram completamente psiquiatrizadas.

Não há tristeza que não se possa classificar de depressão, nem volubilidade que não tenha direito a um chavão freudiano e a uma pré-história familiar.

Depois da tipificação dos desvios e dos questionários em que cada um procura enquadrar os seus problemas, não há quem não se sinta anormal, mas apaziguado por saber o que tem e por ter os medicamentos à mão.

quinta-feira, 17 de julho de 2008


Angra do Heroísmo (José Ames)

A HIENA PRECIOSA



"Acontecia, no 2 de Junho, que Brissot acabava de atacar violentamente Lindet numa brochura, acusando o seu ar de hiena, o seu amor ao sangue. Foi justamente este ataque que permitiu a Lindet ser moderado. Esta brochura, à qual respondeu com amargura, esta preciosa qualificação de hiena que a Gironda lhe conferia, cobria-o perfeitamente e permitia-lhe fazer coisas sábias e humanas que ninguém podia ter arriscado."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


Vemos aqui que a geografia da esquerda e da direita não tinha coordenadas assentes e podia mudar violentamente com as paixões.

Nesse tempo em que um homem se salvava ou se perdia com um discurso, em que as palavras podiam ser transparentemente fatais, porque a política se tinha tornado uma questão de vida ou de morte e todos os conflitos tinham nela expressão, os mais violentos pareciam os mais eficazes e sinceros, os únicos conscientes da urgência dos males a atacar.

A justiça e o bom senso, as próprias soluções, só tinham uma hipótese tergiversando, impondo-se através da astúcia. E cada actor devia reservar para si o segredo da sua humanidade.

quarta-feira, 16 de julho de 2008


(José Ames)

O MELHOR MÉDICO


Marte e Afrodite


""(...) as discórdias e as recriminações que o leito provoca, não são fáceis de apaziguar noutro lugar"; ou ainda, quando se tem o hábito de dormir em conjunto, não recorrer a um quarto separado porque se verificou uma disputa; pelo contrário, é esse o momento de evocar Afrodite "que é o melhor médico nesse género de males.""

"O Cuidado de Si" (Michel Foucault)


Foucault cita Plutarco e os seus preceitos conjugais.

Nessa sabedoria, há uma grande confiança nos deuses e nos mistérios do corpo, na radiação da sua aura ou, diria um materialista redutor, na sua química.

É claro que a razão está aqui fora do seu território. A sua embaixada não funciona por falta de intérpretes.

A invocação de Eros ou de Afrodite é então o primeiro passo na direcção certa, porque entrega a decisão do litígio a um juiz favorável ao amor.

terça-feira, 15 de julho de 2008


Lisboa (José Ames)

TROPA DE ELITE




A fronteira entre o cinema e a propaganda atravessa-a, claramente, o filme de José Padilha "Tropa de Elite"(2007).

O que pode confundir alguns é a extrema actualidade do tema e a tragédia que se vive nas favelas do Rio de Janeiro, onde o narcotráfico de tal forma criou raízes na miséria da população e na corrupção da polícia que a violência da tropa especial, treinada para a guerra sem quartel, parece um mal menor.

De resto, o comentário do narrador, o capitão Nascimento (Wagner Moura), é a continuada justificação dos métodos e do patriotismo da missão.

O grupo dos consumidores de droga, que financia o tráfico, é constituído pela elite universitária que ao mesmo tempo utiliza as ideias dum pensador como Foucault ("Vigiar e Punir") como justificação moral da sua posição degradante.

Pode ser que a desumanidade do instrumento seja a necessária contrapartida do mal que tem de combater, embora o filme não nos deixe antever qualquer esperança de sucesso. A polícia regular é parte do problema, e os poucos honestos que querem "endireitar o mundo", deixam-se vencer pelo "sistema" ao fim de algum tempo se querem preservar a pele.

É evidente também que a formação quase fanática desta elite militar (o BOPE) e a sua capacidade no terreno parecem desproporcionadas face à organização espontânea dos traficantes, filhos da favela, que está longe, apesar da sua crueldade, de ter a eficácia duma "Cosa Nostra".

Propaganda deliberada eram também os primeiros filmes de Eisenstein, como "A Greve" e "Outubro", em que abundam a caricatura e a distorção dos factos. Apesar disso, era cinema e do melhor.

Um efeito do poderoso domínio da forma revolucionária sobre o conteúdo, por mais actual que um momento tivesse sido, é que a propaganda, neste caso, se assemelha à "mentira" dos mitos, os quais, no entanto, são um tema recorrente em todas as artes.

segunda-feira, 14 de julho de 2008


(José Ames)

ORIENTAÇÕES


O Planeta Saturno


"O local era totalmente desprovido de graça e ela aborrecia-se imenso, pelo que decidiu refugiar-se numa aldeia da montanha, pois como a partir desse ano a montanha se encontrava numa direcção considerada nefasta, instalou-se num local indigno dela, apenas para evitar o tabu."

"O Romance do Genji" (Murasaki Shikibu)


Noutro passo, o Genji faz um enorme desvio porque a "posição de Saturno o impede de ir para casa".

De acordo com as interessantíssimas explicações da tradução, estas superstições tinham uma origem continental (da China) e impregnaram o xintoísmo autóctone. "Entre elas, destacam-se as "tábuas de orientação" ou kataimi. Segundo as doutrinas do Yin e do Yang, havia orientações propícias e nefastas. A orientação noroeste era sempre de mau augúrio. Às vezes, a idade ou as circunstâncias podiam influir."

É possível que esses tabus tenham tido origem em factos históricos, num tempo em que era preciso interpretar a Natureza pelo temor dos deuses.

Não se pode falar aqui em psicologia, mesmo primária, como a que uma criança aprende a reconhecer nos adultos. De facto, esta antropomorfização da Natureza procede como diante de entidades regidas por leis desconhecidas que se podem talvez aplacar através dos ritos consagrados, mas sem nenhuma garantia que se tenha cumprido o que era preciso fazer.

Entre nós, a coisa mais próxima duma orientação funesta exprime-se naquele ditado de que de Espanha, nem bom vento... mas aqui as causas históricas são mais do que evidentes.

domingo, 13 de julho de 2008


Lamego (José Ames)

A HISTÓRIA NA BARRIGA



"Todos "bons burgueses" típicos, pouco dotados, mas hábeis e bastante triviais, tanto como os seus leitores de resto. O outro grupo é constituído apenas por algumas dezenas de nomes e compreende os maiores criadores do realismo crítico e do romantismo revolucionário. São todos dissidentes, "filhos pródigos" da sua classe; nobres arruinados pela burguesia escapados à atmosfera sufocante do seu meio. Os livros deste grupo de autores europeus são-nos indiscutivelmente preciosos a duplo título: primeiro, enquanto obras tecnicamente modelares; em seguida, enquanto documentos explicando o processo do desenvolvimento e da decomposição burgueses, documentos estabelecidos pelos dissidentes desta classe que esclarecem como críticos os seus costumes, tradições e comportamentos."

"Le Métier des Lettres" (Maximo Gorki)


Interpretações como esta terão tido algum papel progressista (nos termos da própria doutrina) no desenvolvimento das Letras?

Gorki põe-se na posição de, com toda a boa consciência, indicar aos autores, grandes e pequenos, o caminho do Céu ou do Inferno. Mas quem não vê que esta selecção que põe os autores burgueses fora da literatura é uma cláusula do critério mais geral que põe certos grupos e certos indivíduos fora da humanidade?

Se a classe está condenada, não há razão para esperar dos seus criadores mais do que apologia e serviço de divertimento.

Quanto aos dissidentes da burguesia (mas em nome de quê?) podem ter um interesse documental ou simplesmente técnico, mas são do mesmo modo irradiados da literatura do futuro.

Ora, este método praticamente corta com a literatura do passado, mesmo a mais eminente, e comete à chamada literatura revolucionária a tarefa de forjar uma tradição anti-burguesa.

Mas isso foi de imediato sufocado no ovo pela censura dos novos poderes. De modo que, se há um método original em obras como "A Mãe" do mesmo Gorki, terá deixado imitadores, mas não deixou descendência, por falta de condições para a criação literária.

sábado, 12 de julho de 2008


(José Ames)

VIOLÊNCIA E PAIXÃO


"Judite e Holofernes" (Caravaggio)


A vida de Caravaggio (Michelangelo Merisi) é das mais trágicas da história da arte.

A peste levou-lhe o pai ainda criança e logo teve que separar-se da mãe para estudar num atelier de Roma.

Nas ruas da Cidade Eterna, naquele tempo, campeava a desordem e as brigas entre os bandos acabavam muitas vezes com a morte de alguém.

Merisi sentia-se atraído por esse meio e tinha a espada pronta. Diz uma testemunha que costumava trabalhar durante duas semanas e desaparecer a seguir por dois meses no basfond da cidade, entre as figuras dos seus quadros.

Tendo morto um homem num duelo viu-se obrigado a fugir para Nápoles e depois para Malta, donde a condenação do papa o pôs de novo em fuga, para vir morrer, exausto e doente ao desembarcar em Porto Ercole, na Toscânia.

Deixou-nos uma obra em que a sua experiência da beleza do corpo humano sob a luz, colhida durante as suas imersões na vaza da cidade, ainda hoje nos impressiona, pela teatralidade e por um erotismo que não olha a géneros nem idades.

Por isso o que chamaram de tenebrismo e às vezes de realismo não me parecem dar conta do génio deste pintor.

Pintar a virgem com as feições duma prostituta não era pintar uma prostituta, nem sequer aquela mulher. S. Pedro não é tal mendigo encontrado numa praça da cidade, nem o seu corpo é um corpo real, por muita exactidão anatómica que pareça revelar.

Há em Caravaggio um poder de transfiguração que não se equipara ao de nenhum outro artista. Ele parece frequentar os infernos para provar que Deus existe, e cada amostra que nos traz dos abismos é mais obra da luz e do ideal do que da natureza.

Não. Caravaggio não é um realista. Haverá alguma das suas figuras, por mais grotesca, que não revele o esplendor da forma humana?

Mesmo a velha que assiste Judite cortando a cabeça de Holofernes é um planeta do rosto da heroína que contribui para realçar, como o jogo da luz e da sombra realça e dirige o gesto que designa Mateus no quadro de S. Luís dos Franceses.

Um filme como o que Angelo Longoni fez para a RAI (2007) exprime todas estas coisas com mestria. Mas surpreende que a conhecida homossexualidade do pintor lombardo seja aflorada apenas quando ele é objecto do desejo e não tenha qualquer relevância no filme. Poder-se-ia quase dizer, tendo presente a versão de Derek Jarman de 1987, pelo contrário toda centrada nela, que Longoni pretendeu provar que era possível falar desta pintura sem a ter em nenhuma conta.

Se os costumes fossem outros e a história da Igreja não fosse tão refractária ao corpo da mulher, talvez pudéssemos saber se tem afinal razão...

sexta-feira, 11 de julho de 2008


Porto (José Ames)

A LATRINIZAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO




Se não podes vencê-los, junta-te a eles. É a moral que se pode aplicar à Câmara de Lisboa no seu plano de recuperação de fachadas no Bairro Alto.

Segundo a notícia no "Público" de hoje, a Câmara irá pintar apenas a parte de cima dos prédios, por falta de verbas.

Tudo isso é normal, menos as negociações com os principais responsáveis pela degradação daquela zona histórica da cidade, como de tantos outros lugares por todo o país: os "graffiteiros", também conhecidos por "writers", quando se dedicam a uma espécie de balbúcie caligráfica com que marcam o espaço público.

Pois bem, os "writers", de acordo com o jornal, mostraram-se "desagradados com o estado actual do bairro, principalmente ao nível da limpeza" e ameaçaram mesmo borrar os segundos e terceiros andares (já há pelos vistos equipamento para isso).

A doutrina que vigora nalguns destes grupos é a de que é preciso tornar o feio mais feio ainda, até acabar com ele... Infelizmente, a dissidência, maldosamente, nem dá tempo para se inaugurarem as paredes de novo pintadas nem os monumentos restaurados.

Como esta notícia não surge numa rubrica de humor negro, a qual, de resto, nem existe no "Público", devemos ver aqui mais um exemplo dos nossos "brandos costumes".

O que espanta é o conformismo geral. Parece que as pessoas estão reféns da sua incompreensão da arte moderna, aliada a uma acrítica reverência por tudo o que leva o carimbo de cultura nos media e na opinião pública.

Alguns artistas, involuntariamente, terão contribuído para esta desorientação. Não se sabe no fundo se aquilo é arte ou se é só o que parece. Alguns não verão mesmo nenhuma diferença entre um "tag" e um esboço de Picasso. Por isso são incapazes de pôr o nome aos bois.

quinta-feira, 10 de julho de 2008


(José Ames)

IDEIAS DE ESTUFA

T
The Crystal Palace


"Se retomámos a expressão "Palácio de Cristal", foi sobretudo para exprimir a impressão de que a fórmula corrente "mercado mundial" é pouco adequada para caracterizar a modelação da vida sob o fascínio de relações monetárias que tudo penetram. O espaço-interno-do-mundo do capital não é uma ágora nem uma feira ao ar livre, mas uma estufa que arrastou tudo o que antes era exterior para o seu interior."

"Palácio de Cristal" (Peter Sloterdijk)


Mais à frente, Sloterdijk inclui os textos e as imagens nos estados do capital, socorrendo-se das reflexões de George Franck.

Não tenho dúvida de que a noção de sistema implica o funcionamento integrado da "superestrutura", como dizia Marx. Mas é paradoxal dizer-se que o exterior implodiu com o capitalismo na sua fase actual.

Não que a chamada descoberta do Cosmos seja realmente uma viagem no exterior ou que as teorias aparentemente menos antropocêntricas sobre a origem do universo tenham descolado do nosso cérebro.

Parece-me é que vivemos, desde o início, na estufa humana, e que não há como sair dela, sem sair da "forma".

Haverá um sentido cósmico, como há um sentido da justiça?

Se há, ele deve ser independente da construção científica e tanto pode alcançar-se no nirvana (mas contra a doutrina), como no êxtase sem palavras.

quarta-feira, 9 de julho de 2008


Porto (José Ames)

LÚCIDO COMO TESTE


Paul Valéry (1871/1945)

"- Quem sabe se a maior parte destes pensamentos prodigiosos sobre os quais, desde há séculos, empalidece uma porção de grandes homens e de uma infinidade de pequenos, não é feita de monstros psicológicos - Ideias-Monstros - concebidas pelo exercício ingénuo das faculdades interrogantes que aplicamos um pouco por todo o lado - sem reparar que devemos interrogar apenas o que pode, realmente, responder-nos?"

"O Senhor Teste" (Paul Valéry)


O Senhor Teste é declaradamente anormal e a sua existência não poderia "prolongar-se no real por mais de uns tantos quartos de hora". Mas porque é possível nesse lapso de tempo, podemos imaginá-lo como uma personagem real e endossar-lhe todos os nossos pensamentos sem futuro, condenados pelas suas "contradições ocultas".

A sua especialidade seria, pois, a das questões irrespondíveis. E a tese é que se pudéssemos aplicar os pensamentos "justos e fecundos" que concebemos ao tentar dar-lhes uma resposta, conheceríamos que, tal como os monstros, essas ideias não têm condições para viver.

Mas há um domínio em que essas quimeras não se confrontam com o real, pois nele as ideias são apenas um pretexto para os actos sociais que servem para lubrificar: é o da conversação.

Toda a argumentação que decorre sob esse signo não se destina a pôr à prova as ideias, mas tão-só a facilitar as relações. A vontade de agradar, as boas-maneiras ou a simples amizade, tanto como as paixões e as qualidades contrárias, criam apenas a nuvem propícia à nossas posições.

A lucidez do Senhor Teste não lhe permite ter uma vida social, e é por isso que ele próprio é uma quimera.

terça-feira, 8 de julho de 2008


(José Ames)

DAMASCO NA ESCURIDÃO


Murasaki Shikibu


"Estimando, contudo, que o facto de contemplar sozinho estas flores avermelhadas equivaleria a vestir um traje de damasco na escuridão da noite, decidi compartilhar esta visão; mostre este ramo à sua senhora quando se apresentar uma ocasião favorável."

"O Romance do Genji" (Murasaki Shikibu)


A vaidade do Genji não nos surpreende porque é vista pelos olhos duma mulher que, ao longo do romance, não se cansa de enaltecer as qualidades femininas do príncipe.

Claro que temos presente um modelo sexual que não se pode aplicar à época Heian, no século X. Estes homens choram amiúde, adornam-se, empoam o rosto e borrifam "generosamente de perfume o cabelo e as roupas".

Toda esta feminilidade (segundo os nossos cânones) não impedia que os sexos tivessem, politicamente, papéis muito distintos, os homens detendo o poder e ocupando a cena pública e as mulheres confinadas a uma vida exclusivamente privada no seu "pavilhão da ala norte".

O machismo é inconcebível nesta cultura, em que os sexos, longe de aprofundarem as diferenças naturais, parecem não ter necessidade da dramática demarcação que nos caracterizou até há bem pouco tempo.

E, na falta de um critério suficientemente subtil para distinguir os géneros, sentimo-nos tentados a comparar a desigualdade política entre homens e mulheres à que existe entre as classes, com a sua "pré-história" de domínio e submissão.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

SEGREDOS DE MULHERES



É um lugar-comum dizer-se que Ingmar Bergman compreendia melhor do que ninguém a alma feminina. Em "Segredos de Mulheres" ("Kvinnors Väntan", 1952), estamos ainda longe das preocupações metafísicas do mestre, mas esboça-se já o jogo da verdade entre os sexos, semeado de desilusão e ironia, que se vê em obras-primas como os "Sorrisos de uma noite de verão".

Estas mulheres, em tempo de confissões, de que se queixam? Da fuga do amor, da perda de contacto com os homens, imaturos e apenas interessados no mundo exterior. Nas vaidades da "acção".

Elas, depois de uma pequena humilhação a que sujeitam o viril companheiro, para levá-lo a compreender que a vida não é um jogo, por apaixonante que seja, resignam-se a conviver com as suas fraquezas e esperam-no alvoroçadas no fim do recreio.

O último flashback, com Eva Dahlbeck e Gunnar Björnstrand, presos no elevador, exemplifica com ironia o cúmulo de circunstâncias exigido pela reconciliação e a retoma do contacto.

O desejo é apanhado como um peixe no espaço exíguo, confirmando o preceito de Plutarco de que Afrodite é o melhor médico para as perdas de contacto (e para a claustrofobia nos elevadores).


Matosinhos (José Ames)

O SENTIMENTO DA JUSTIÇA


David Hume (1711/1776)


"Foi portanto a preocupação do nosso próprio interesse e do interesse público que nos fez estabelecer as leis da justiça, e nada pode ser mais certo do que não ser uma relação de ideias que nos dá esta preocupação, mas sim as nossas impressões e sentimentos, sem os quais tudo na natureza nos é perfeitamente indiferente e não pode afectar-nos absolutamente nada. O senso da justiça não se baseia pois nas nossas ideias, mas nas nossas impressões."

"Tratado da Natureza Humana" (David Hume)


Nenhuma casuística pode substituir o sentimento da justiça. O carácter arbitrário da moral casuística vem-lhe da sua pretensão de interpretar um princípio geral nas suas aplicações concretas e não da ausência de um qualquer princípio.

Se a justiça fosse "uma relação de ideias", essa impossibilidade não existiria.

Por isso é que nos é tão difícil julgar em termos de justiça ou injustiça as épocas passadas ou as culturas estranhas.

E talvez a ideia da justiça tenha, por causa disso, desempenhado um papel tão "invasor" na aculturação dos povos quanto a força económica.