Almada |
Hitler com Ernst Hanfstaengl (à direita) |
É preciso aderir a uma espécie de fisiologia social para compreender esta ideia. A política é coisa da palavra e da acção cívica e constitui um mundo separado da natureza ( e da economia, como o acabam, mais uma vez, de demonstrar as eleições italianas ). Essa separação pode chegar a extremos de que o século XX foi fértil.
O actor espera-nos já sentado na penumbra, tendo por detrás um rectângulo iluminado no chão, como uma janela ou uma porta fora do lugar. As palavras começam pelo trilho que pode ter muitos sentidos, a exemplo da escrita. Mais três personagens são ocasião de uma espécie de diálogo que não é mais do que a explicação de se encontrarem ali, junto do guia cego. Cego como Homero. Depois as luzes apagam-se e a viagem começa. Uma viagem que podia ser a da morte, mas que suspeitamos que seja a da 'verdadeira vida', segundo o crente (era Mário de Sacramento que dizia que "diante do bezerro de oiro, somos todos crentes").
A encenação fez o que pôde da incursão teatral do poeta ("um dos três grandes poetas portugueses revelados depois do 25 de Abril", na opinião de Bénard da Costa). O resultado deixa-nos à míngua de poesia ( uma ou outra claridade distante como: "o trilho já te escolheu"), e não é de estranhar.
O público do teatro não é um sujeito, como o leitor silencioso da poesia. No teatro há um jogo de personagens (mesmo os "dois em um" do monólogo de Hamlet) e a palavra é definitiva. É pela palavra que a acção se decide. "Que palavras saltaram a barreira dos teus dentes?", lê-se na "Ilíada". E, dada a sua origem religiosa, no teatro há certamente rito. A convenção de dar a ouvir o pensamento, por exemplo. Pode-se evocar a guerra, no exterior do palco, com o tilintar das espadas, mas o acto deve ser "pré-dito".
"O estado do bosque" certamente que muda durante a peça segundo as palavras ditas. Luís Miguel Cintra não nos podia desiludir no essencial. O desfecho continua "aberto" a múltiplos sentidos. É só a memória da poesia que "estraga a festa". O "estado" do bosque, como o "estado" da nação, além disso, insinua uma avaliação que aqui é interrompida pela viagem nocturna. Depois do "Pater" niilista do centro da peça, essa interrupção só pode ser um sinal de esperança, contra o "estado" do bosque.
Il Paradiso |
André Maurois |
Claudete-Adrien Helvétius (1715/1771) |
Fiama Hasse Pais Brandão |
No último filme de Nanni Moretti ("Habemus Papam"), vemos um papa, que acaba de ser eleito num muito agitado conclave, presa das dúvidas de um contemporâneo, a ponto de encerrar os cardeais com um psicanalista, e a quem a fé não chega para a imolação que lhe é exigida, nem para se sentir à altura das gigantescas responsabilidades que terá de assumir.
A surpresa desta resignação de Bento XVI, a primeira desde o século XV, não pode deixar de chocar a comunidade dos fiéis, como o caso do capitão que abandona o seu navio no perigo, ou o soldado, o seu posto na 'trincheira'.
O lugar exige, talvez, mais do que é humanamente possível, mas a sucessão de pontífices ao longo dos séculos parece provar o contrário. A menos que todos eles mais ou menos se tenham conformado com as suas limitações crescentes (com o peso da idade) e tenham confiado a direcção da Igreja à Providência. Ora, porventura estará aí a diferença entre um intelectual reconhecido e assumido como Bento XVI e todos os seus antecessores. Este papa não tem o 'carisma' de João Paulo II, mas tem uma ideia (mais actualizada?) sobre o papel dum sumo-sacerdote e o papel da Igreja.
Se, como diz hoje o 'Público', há um enigma nesta renúncia que o tempo há-de esclarecer, e que o Papa se sentiria impotente para varrer os 'vendilhões do templo' da própria Cúria romana, este gesto contra a tradição é uma 'pedrada no charco', pois poderá criar as condições para as reformas que ele, Bento XVI, julga inadiáveis.
Não obstante a decepção que inevitavelmente causará entre os fiéis, pois muitos terão sempre a sensação de que é por fraqueza que renuncia, como a do velho actor no filme de Oliveira "Vou para casa" (2001), a verdade é que, no caso de um sentimento de impotência associado ao rigor e à lucidez (pelo que teremos de esperar por um melhor esclarecimento da situação), é sobretudo de coragem que temos de falar. Este papa não confia muito na Providência para resolver os problemas da Igreja de hoje.
Neste caso, não assistiremos à morte de mais um papa, nem à martiriologia de um João Paulo II, que, no seu anacronismo, talvez não tenha servido a Igreja, tanto como se pensa.