sexta-feira, 18 de março de 2005

A MENINA NUA

pobresericos.blogspot.com


A Menina Nua, na Praça da Liberdade, é um dos emblemas da cidade do Porto. Tal como o Manneken-pis, o menino que faz xi-xi, o é de Bruxelas. Não o do Porto barroco e o dos “lampiões tristes e sós” da canção do Rui Veloso. Mas o das quintas e das camélias que se descobrem por detrás dos diques de betão, testemunho não dum temperamento austero, da também chamada capital do trabalho pelos mesmos que desterram para latitudes mais a sul as novas babilónias, mas duma graça secreta e um pouco antiquada.

Essa escultura tão indefesa, pela atitude friorenta da banhista e por a custo emergir do aluvião dos automóveis, está outra vez ameaçada pelo esterco das pombas, depois de ter sido ainda há pouco restaurada e limpa.

Por que não se resolve a Câmara a electrificá-la como se vê que fizeram nalguns monumentos, em Lisboa?

Claro que ainda assim ficará à mercê dos garatujopatas, mas isso é outra história.

quarta-feira, 16 de março de 2005

A TELEVISÃO-GODOT



A leitura dum excelente blog sobre "À espera de Godot" mudou o curso dos meus pensamentos. E não acho melhor para salvar a ideia anterior do que relacionar os temas, ao que ambos se prestam, felizmente.

Em que é que a televisão nos distrai como a espera de Godot? O que é que não fazemos para evitarmos o encontro mais perigoso do que a fera na selva?

Os dois vagabundos da peça de Beckett estão no limiar da pobreza de meios. Só têm o descampado em volta e as suas tristes figuras para se iludirem um ao outro.

Que diferente é o que sai dos estúdios duma televisão e da indústria de entretenimento!
Que confortável, e realmente espectacular espera de Godot!

Podemos de facto deixar de fazer perguntas...

LES BIJOUX (BAUDELAIRE)

AS JÓIAS



A amada estava nua e, vendo o meu amor,
Tinha sobre ela só suas jóias sonoras,
De que o brilho lhe dava o ar triunfador
Que as escravas dos Mouros têm em certas horas.

Quando dançando lança o som vivo e trocista,
Esse mundo de pedra e metal que reluz
Em êxtase me enleva, e perco-me de vista
Nas coisas em que o som se junta com a luz.

Ela era então deitada e deixava-se amar,
E do alto do divã pacífica sorria
Ao meu amor profundo e doce como o mar,
Que como a uma falésia a ela subia.

Os olhos em mim fitos qual tigre domado,
De ar sonhador e vago ela ensaiava poses,
Candura e lubricidade de braço dado
Davam um novo encanto a tais metamorfoses.

E o braço, a sua perna, a coxa e a cintura,
Polidos como o óleo qual cisne que ondula,
Em meus olhos passavam, lúcida moldura;
E seu ventre e seus seios, cachos para a gula.

Avançavam mais meigos que os Anjos do mal,
A turvar o repouso em que era a minha alma,
E inquietá-la nessa rocha de cristal
Onde estava sentada solitária e calma.

Ver unidos em novo desenho assim cria
As ancas da Antíope e um busto de efebo,
De tal modo do corpo assomava a bacia.
Na tez morena e ruça, o 'rouge' era soberbo!

- E resignada a lâmpada a amortecer,
Como só a lareira o quarto iluminava,
Cada vez que um suspiro soltava ao arder,
A pele cor de âmbar de sangue inundava!

terça-feira, 15 de março de 2005

CONTRASTES




Finalmente alguém percebeu que a exposição mediática pode fazer ao poder, ou melhor, à imagem deste, o que a publicidade fez à tradição cultural e aos seus valores.

De facto, dum governo cujo 1º ministro tinha a paixão do directo promocional, até ao ponto da transparência, que aqui se deve ler com a conotação de vácuo e de previsibilidade, em vez duma qualquer “glasnost”, passámos para um regime de contenção mediática, e até de relativa opacidade.

Não é caso para dizer que “nem oito nem oitenta”, porque estamos longe de saber que espécie de reserva convém ao poder para que seja eficaz, em que medida se tem que defender da devassa, ou quando é que a contenção não passa a ser a “alma do negócio” e colide com o espírito democrático.

Por contraste, é para já um grande alívio e um considerável acrescento de dignidade para a política que, menos que tudo, não pode cair ao nível dum “reality show”.

Por alguma razão era preciso “caçar” o homem que não queria ser rei, como nos relata alguma antropologia.

segunda-feira, 14 de março de 2005

MIL GARATUJAS FLORESCEM

 

 
A sequência das janelas e parede é interrompida de súbito pela rúbrica escarrada. O ordenamento da moldura e o fundo em que se destaca colapsa pela irrupção duma hedionda garatuja. Percebe-se em certas ruas que nessa demência garatujal existe o horror do vácuo. Nada lhe escapa, desde a fachada secular que atesta da vetustidade da urbe à pedra polida da nova agência bancária. O soco das estátuas sucumbe a esse vómito, os cafés emblemáticos, os bancos dos jardins, os transportes públicos. Escapa a altura e o que não existe no estado sólido. A sanha não consegue atingir o primeiro andar, como uma inundação infecta a que o dedo divino fixasse um limite. O ar, as águas não podem ainda ser pichados. Valha-nos o céu e o mar.

Não se sabe quantos (mas não têm de ser muitos; pode ser um maníaco apenas, um serial-killer da arquitectura) se entregam a esta nefanda actividade nocturna que nenhuma polícia persegue, nem nenhuma censura pública condena. Imagina-se o encolher de ombros do cidadão comum, perante mais este “vandalismo juvenil”. Juvenil? Se o médium é informal, a loucura é tão velha como a razão.

O pior é que a publicidade e o anátema multiplicariam as garatujas. Na impunidade (quem pode vigiar as paredes ou impedir a venda da tinta?), veríamos a peste estender-se a novos territórios. Alastrar dos edifícios para os automóveis, criando o pânico e uma verdadeira cólera, infelizmente impotente.

Mas quem conspurca o rosto da cidade devia ser punido como quem polui a água que bebemos. Aqui nem sequer estão em jogo os postos de trabalho de qualquer empresa infractora, no melhor, trata-se duma auto-terapia selvagem, predadora, para os portadores dum vírus anti-urbano de novo tipo.

Primeiro, actualizar a lei que estabelece o crime e a punição. Depois, investigar a partir dos indícios, num trabalho detectivesco, certamente menos complicado do que outros. Finalmente, punir, mas sem televisão, porque esta pode compensar o crime, proporcionando o espaço de afirmação e a notoriedade que esta psicopatia procura.

A estranha passividade perante esta praga tem uma explicação plausível. O desleixo nacional pelo que é de todos é a infeliz contrapartida da omnipotência que se espera do Estado a quem se comete a resolução de todos os problemas, atitude que é ainda o fruto das décadas de ditadura, vindo esta no seguimento duma menoridade mais longa.

Aquele que deita os papéis para o chão ou escarra nas calçadas, à espera que os serviços competentes tratem do seu lixo, é o mesmo que facilmente se conforma com a cal das nossas paredes conspurcada por mão demente.

Nas garatujas, não há palavras, mas há uma mensagem. Esta é uma espécie de baba que anexa a realidade de alguém ou de um grupo que perdeu o contacto, a quem a chamada sociedade de informação nada diz e que regrediu para os rituais de reconhecimento animal.

Apesar da mensagem não ser política (mas é contra a cidade), nem aparentemente subversiva, deveria merecer toda a atenção dos poderes públicos e das autoridades sanitárias. Este desalinho urbano que nos desfigura contribui, mais do que se pensa, para a baixa de auto-estima do cidadão comum.