terça-feira, 31 de maio de 2016

(Porto)

O ANIMAL POLÍTICO


(George Orwell)


"Orwell era um animal político. Reduzia tudo à política...Não podia assoar-se sem moralizar sobre as condições na indústria dos lenços."

(Cyrill Connolly, citada por Simon Leys)

Conheci pessoas assim. E, se calhar, todos temos um momento na vida em que somos 'apenas' animais políticos. Claro que a política, enquanto profissão, é compatível com outros interesses, e só os que se deixaram 'deformar' por ela se tornam estranhos ao que é humano.

Um desses de que falo, era um operário, em férias do seu duro ofício e aprendendo rapidamente a adaptar-se à sua nova vida e à 'consciência de classe' determinada pelo círculo bem-pensante (ou à 'linha correcta' do momento) que ponderava, nessa altura, nos meios políticos e sindicais.

Esse meu amigo, numa discussão, tinha certezas monumentais. Uma delas era que, até no acto mais privado do indivíduo (cumprido no local que Proust destinava aos devaneios e ao onanismo), a política, tal como o 'alien' na barriga de Sigourney Weaver, tinha grandes dificuldades em conter o apetite do seu focinho não-humano. Também ele dizia que tudo era político. Contudo, essa era uma convicção que em nada mudara a sua personalidade e, até certo ponto, o seu comportamento. Era alegre, 'bon-vivant', e sendo tão 'doutrinário' parecia que nada o impedia de ser extrovertido e ecuménico. A doutrina não era de modo nenhum um fardo. Era mais uma farda, em que ele podia continuar, sem se sentir constrangido, uma pletórica sociabilidade.

Uma questão interessante que se poderia levantar, a propósito de George Orwell, o autor da famosa profecia que é o seu romance "1984", é a de saber se ele seria capaz de imaginar um futuro tão negro se não fosse a sua obsessão pelo 'tudo é política'. Não podemos esquecer que a 2a. Grande Guerra já foi uma 'actualização' desse futuro. Orwell não inventou o seu '1984'. Deduziu-o do passado recente, com o pessimismo que está associado à fórmula do 'tudo é política'.

O seu grande antecessor foi, talvez, Cervantes. Este autor do século XVII descreveu o mundo imaginado por um velho fidalgo, enlouquecido pelos romances de cavalaria. O seu tema não era de todo realista, mas dizia muito sobre todos nós. Também o pesadelo de Orwell é revelador da loucura que está por detrás da nossa razão.



segunda-feira, 30 de maio de 2016

(José Ames)

CONSENSOS

(José Cutileiro sobre Margareth Thachter)

"Achava que se os apóstolos tivessem saído à rua a pedir consenso a gente nem teria sabido que houvera uma coisa chamada cristianismo."
(Margareth Thatcher, citada por José Cutileiro) 
Por que é que um princípio que é válido para a ciência não pode ser aplicado aqui. Entenda-se que o 'consenso' da comunidade científica nunca pode ser definitivo. A opinião favorável dos 'pares' faz parte da justificação de uma ideia nova. Foi assim que a teoria da relatividade convenceu o mundo, mas o próprio Einstein previu que a sua teoria seria ultrapassada.

Essa 'caducidade' que atinge todo o 'corpus' científico vem do historicismo hegeliano, em que a ideia do progresso impõe um desenvolvimento dialéctico que se vai 'superando' a si mesmo. Hegel dizia que o que falta à Lógica é a Natureza, e, de facto a dialéctica prescinde dela, olimpicamente. O filósofo tinha, pois, consciência da dificuldade de integrar o mundo incontrolável e quase caótico da natureza no mundo perfeito das leis do pensamento. Daí que a história se tivesse tornado lógica.

Daí, também, a necessidade de um acordo inter-subjectivo para estabelecer a plataforma científica.

Por outro lado, a Dama de Ferro invoca o Cristo da espada, o que expulsa os vendilhões do templo, contra o Cristo do 'amai-vos uns aos outros'. Porque seria o tempo próprio para isso, o tempo da mudança, na versão do Eclesiastes.

O tempo do consenso é frequentemente interpretado como o tempo de uma paz pôdre, que prepara um futuro de crise e de divisões insanáveis.

O político pode, assim, sentir-se justificado moralmente para 'agitar as águas do pântano'. É a moral política que falta ao cientista para 'desenganar' as pessoas de um consenso de especialistas.

sábado, 28 de maio de 2016

(Santo Tirso)

LUCIDEZ CREPUSCULAR




"Mas no navio que vinha imediatamente atrás encontrava-se o poeta da "Eneida" que tinha o sinal da morte desenhado na fronte."

"A morte de Virgílio" (Hermann Broch)

Este livro que narra as últimas horas de Virgílio, começando pela sua chegada a Brindisi, preso ao leito, consumido pelas febres, pensando no destino que o fizera acompanhar Augusto e deixar Atenas, renunciando para sempre ao projecto de acabar a obra da sua vida, tem um movimento tão majestosamente lento, os seus períodos, sem a sinuosidade proustiana, são tão cheios duma repetição musical, que é uma verdadeira prova para o leitor apressado que gosta de espremer com a ponta dos dedos a polpa dos textos.

Não é preciso dizer que estamos num território de eleição da literatura, onde nenhuma imagem, ou mesmo a música nos podem sugerir o equivalente.

Talvez o sentido do tacto, a cenestesia dum corpo com saudades da vida, se se pudessem traduzir em pensamentos, com a sua lenta e hesitante progressão, a impossibilidade que lhes é peculiar de qualquer perspectiva nos dêem a ideia do texto de Broch.

Realmente, só podem apreciá-lo as pessoas ricas de tempo.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

"A muralha" (José Ames)

A ABSOLUTA HIERARQUIA





As pirâmides são uma espécie de cálculo espiritual. Pense-se nisto: a família de Cheops desviou para o Estado faraónico todas as energias públicas. O Egipto desse tempo, sendo uma sociedade eminentemente religiosa, assistiu ao total encerramento dos templos e à proibição dos sacrifícios através de decreto.

É preciso ter presente o esoterismo do conhecimento religioso e a confusão dos poderes político e ideológico para compreender um fenómeno como esse, que bem pode representar a perfeita centralização social. É porque não se entende de todo em todo uma acção sem contrapartida e a existência nas relações inter-subjectivas de algo como um princípio de conservação da energia, que chegamos à perfeita intuição do simbólico.

Alguma vez as estruturas do sistema de produção económico poderiam dar conta dum desperdício abissal como é o dos túmulos de Gisé? Esse prodígio de engenharia que ainda hoje causa admiração não é contudo apreciado pelo que é: a imponente e absurda dimensão – se esquecermos a configuração do deserto – ou as dificuldades inumeráveis que foi preciso vencer, como se podem explicar à luz duma racionalidade económica ou duma análise moderna do poder? 

O chefe, por outro lado, não procurou um serviço pessoal ou um reforço do poder político. Pelo contrário, a ausência de revolta e de luta política indicam-nos que nenhum acrescento era necessário para ter o país na mão. Que fácil seria aos sacerdotes levantar o povo contra essa medida ímpia e anti-popular se houvesse a menor brecha na autoridade.

Foi preciso, segundo Heródoto, a subida ao trono de Mikerinos, seu filho, para se dar a mudança e, digo eu, para concebê-la. Até aí, diz o mesmo historiador que os populares se recusaram tão-só a dar existência à memória do monarca, designando o lugar das pirâmides pelo nome dum simples pastor que aí viveu. Foi, portanto, a história sacerdotal e faraónica que nos trouxe, indemne, essa terrível inscrição na pedra. Tão pouca resistência para trinta anos de trabalhos forçados sob o jugo de Cheops. Uma simples troca de palavras, para responder a mais de um século sem culto parece irrisória forma de luta. Mas é assim que eu vejo o caso: a pirâmide prolongou a religião dos mortos e a religião tout court. O nome do faraó foi esquecido em consequência. Todo o esforço colectivo fez do túmulo de Cheops um resíduo de alma popular, por causa da opressão e para além dela. A calamidade não inspira revolta mas humilhação e obediência. A ideia faraónica desabou da enorme altura a que se ergue o poder divino para inspirar na termiteira humana a arquitectura dum deus, contra a pessoa de Cheops, ocasionalmente. 

Coisas mais custosas embora foram mais precárias. Napoleão, recente enxerto na vide gaulesa, foi sensível à eternidade de quarenta séculos. Marx, teria certamente explicado essa catástrofe económica, social e religiosa pelo despotismo “asiático”.

Mikerinos, o filho generoso, morreu cedo e absolveu a tirania paterna. Ela, afinal, era o cumprimento dum oráculo. Eis que o despotismo se torna num caso da pulsão de morte. Ou melhor dizendo, eis que a realidade deixou de ser histórica, e que a matéria se volveu no princípio contrário.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

(Guimarães)

CONSCIÊNCIAS

(Paul Valéry)




"Correlativamente, o intelecto não é, segundo eles (os contemporâneos de Valéry), obrigatoriamente consciente porque o seu objectivo consiste em atingir uma perfeição automática da realização."

(Atsuo Morimoto)

Que modelo seria o dessa consciência?

Podemos referenciar uma origem no 'daimon' socrático. Aquela voz que o avisava e impedia de se 'extraviar'. Note-se que a sua função seria sobretudo crítica, nunca apontando um caminho a seguir. Era como a voz que nos lembra de nós a nós mesmos. Os famosos 'princípios' de certa superioridade moral, ou, na mesma linha, a 'coerência' ou a 'consequência'.

Está bom de ver que este género de questão só importa à vida moral. Mas Morimoto refere-se a um outro tipo de consciência, mais parecida com a vigilância, a atenção que, nas suas palavras, correria o risco de se tornar num automatismo, ao nível da pura instrumentalidade.

Suponho que o intelecto não é instrumental nesse sentido, mas que está fechado num mundo próprio - o de uma disciplina ou de uma linguagem - seria difícil negá-lo. Pode-se até dizer que muito da sua eficácia depende desse seu 'esplêndido isolamento'. Isto parece ir ao encontro da prevenção de Morimoto, com a diferença que o contrário disto não seria a 'consciência (que é moral ou é simples vigília), mas a inacção.


quarta-feira, 25 de maio de 2016

(José Ames)

O NOSSO SELVAGEM


'Guide du bon sauvage'


"As tribos índias, as paisagens que o jovem Lévi-Strauss descobriu, não eram edénicas, nem 'primitivas' no sentido preciso da palavra. Encarnavam uma longa crónica de infecção, devastação ecológica e deslocação forçada."
(George Steiner)

O olhar do antropólogo, aqui, não procura descobrir a diferença, mas, talvez, o palimpsesto. Por detrás do fácil exotismo, tece-se a malha de todo o empreendimento humano.

Como a personagem da primeira versão de "Planet of the Apes", que no fim da sua aventura encontra a estátua da Liberdade meio-enterrada numa praia, é no fim da civilização que faz pensar o encontro do antropólogo com as tribos moribundas da Amazónia.

George Steiner cita: "A 'antropologia', diz L-S na conclusão de 'Tristes Tropiques', pode hoje ser considerada uma "entropologia": o estudo do homem passou a ser o estudo da desintegração e da extinção certas."

À medida que a 'sociedade de risco mundial' nos vai confrontando com as consequências dos nossos mais ofuscantes sucessos e a nossa não percepcionada irresponsabilidade (Ulrich Beck), vamo-nos metendo na pele dos trágicos dos últimos dias. 

O capitalismo (se serve para alguma coisa referirmo-nos assim ao sistema mundial) promete-nos o mais espectacular dos 'finales'.

Steiner afirma que a linguagem 'flexível e lúcida' de um Voltaire ou de um Rousseau 'são uma salvaguarda contra as brutalidades e as mentiras da cultura de massas.' Ao vermos como por cá se trata a 'pátria' do nosso grande poeta, só podemos ver nisso os estigmas de uma corrupção 'inevitável'.


terça-feira, 24 de maio de 2016

Ericeira

A EXPRESSÃO DO ARTISTA




"-Tu nunca compreendeste que, para um artista, 'exprimir-se', é em primeiro lugar 'compreender'."

(Walter a Sigmund em "O Homem Sem Qualidades" de Robert Musil)

A 'pulsão' para se exprimir tem sido uma explicação banalizada da 'necessidade' da arte. Sim, porque se o artista não puder reprimir a sua força plástica é que um poder maior do que ele não lhe deixa outra saída. É preciso que ele 'se livre' do demónio que não lhe dá sossego.

É fácil reconhecer nesta imagem o tema clássico da 'inspiração' e do 'rapto' do artista, como outro Ganímedes, pelo deus. Tão intuitiva é esta interpretação que o génio é muitas vezes comparado a uma doença crónica ou a uma espécie de alienação. A figura mais representativa deste género de artista é Van Gogh.

Ora, a ideia da personagem de Musil parece não provir dessa linhagem. Porque ninguém 'compreende' forçado pela ideia que quer exprimir nem, muito menos, num estado de 'loucura', quando não se pertence a si próprio.

O que nos leva a esta outra questão: será a 'expressão' artística uma forma de linguagem? Pretender-se-á através dela obter a 'metade do símbolo' que existe no apreciador?

Assim Musil poderia dizer que o artista só se compreende a si próprio quando encontra um apreciador. Questão infinita esta porque o apreciador não coincide com o mercador de arte. Nesse espelho, o artista verá não o que esclarece a sua obra, mas o que faz o seu preço.


segunda-feira, 23 de maio de 2016

(Alvoco)

O QUE É CORRECTO



(Ludwig Wittgenstein)

"O Sr. Wittgenstein argumenta que tudo o que é propriamente filosófico pertence ao que só pode ser mostrado, ao que é comum entre o facto e a sua imagem lógica. Daqui resulta que nada de correcto pode ser dito em Filosofia."
(Bertrand Russell)

A Filosofia é, aqui, a história da filosofia, e a história não se rege pela lógica. Tudo o que foi dito pelos filósofos até agora foi 'incorrecto'? Espero bem que sim, porque a lógica é a administração do pensamento e produz os seus próprios burocratas.

Russell é um 'gentleman' e não quer dizer verdadeiro, em vez de incorrecto, que é o que está implícito no desprezo de Wittgenstein pela filosofia. Mas não ficaríamos mais avançados se fosse feita a substituição. Porque há mais de uma verdade na lógica, mas isso não torna a lógica 'verdadeira'. Mas a correcção, essa sim, convém à lógica.

E é o que esclarece a posição do autor do 'Tratado': é que a lógica não pode falhar a sua própria regra ( e daí ser correcta ou não), mas a filosofia visa para além das boas regras e do Legos intelectual. Logos e não Legos.

Nisso, a filosofia parece-se com a poesia, e não é por acaso que o maior dos filósofos, Platão, foi poeta.


domingo, 22 de maio de 2016

(José Ames)

OS MITOS

(Edmond et Jules de Goncourt)

"A Antiguidade foi criada para proporcionar aos professores o seu pão com manteiga."
(os Goncourt)

Desossada, esta 'blague', é um truísmo. Não poderíamos viver sem uma ideia do passado, sobretudo do passado lonjínquo, nem que fosse uma história da carochinha. Historicamente, essa ideia apresenta-se sob a forma de um mito. Nesse sentido, os 'professores' são uma espécie de sacerdotes, passando a chama sagrada de uma geração para outra.

As ciências humanas trouxeram a essa ideia do passado o selo de garantia sem o qual, na modernidade, não se pode pretender à 'objectividade', que é, no final de contas, uma espécie de acordo inter-subjectivo para que se evite a anarquia do 'tudo é relativo'.

A teoria do 'tudo é relativo' (que vale o mesmo do 'tudo é subjectivo') recebeu uma funesta confirmação da má interpretação da teoria de Einstein e tem uma vasta prole que vai do 'politicamente correcto' à fórmula de Deng Xiao Ping ('o que interessa não é a côr do gato, mas se caça ratos') que libertou a China de um novo mandarinato.

A Antiguidade que reconstruímos através dos últimos séculos está alicerçada, evidentemente, nas descobertas arqueológicas e nos estudos historiográficos, e em todas as novas técnicas que podem datar um acontecimento e filiar a sua pertença a um determinado contexto. Essa base está, porém, limitada ao estudo de um cadáver, e nem a ciência mais prodigiosa pode ressuscitar os mortos.

Poderíamos dizer, assim, que a História é tanto inesgotável quanto inverificável. Mas que é fundamental, de uma forma ou de outra, para se poder lidar com o presente, não restam dúvidas.

Estaline, ao 'reescrever' a história, através da manipulação das fotografias da época, deu o golpe de misericórdia na nossa credulidade. Já sabíamos que são os vencedores que escrevem a história. Faltava-nos saber até que ponto a 'vontade de poder' pode colocar-se no lugar de Deus e da Providência. Donde, até os mitos são suspeitos.


sábado, 21 de maio de 2016

Delírio (José Ames)

OS JOELHOS DE DEUS

A Trindade (1635/1636-José de Ribera)



A "Trindade" de Ribera, com os seus tons sanguíneos e a maceração do cadáver, é de facto uma "Pietà".

Conservando ainda na posição dos braços a forma da cruz, apoiados sobre uns joelhos que estranhamente humanizam a figura de Deus, Cristo é a imagem do filho morto, como um pedaço de matéria obedecendo à gravidade, na inclinação da cabeça e do tronco com o dramático ferimento, nas pernas que a tensão dum sudário faz flectir.

Mas em vez da piedade no rosto pendente da Virgem, do sofrimento conformado, o que vemos é a severidade do Pai que equanimemente olha em frente, erguendo-se sobre as outras "pessoas" da Trindade.

E a pomba ("que não é deste mundo, nem é pomba") mais parece sair do corpo sem vida do que do peito do ancião.

O resultado desta híbrida imagem que reúne os dois mistérios (o da Trindade e o da Incarnação) é a elipse do Feminino.

Esta sublime pintura dá-nos a pensar o impensável.

Serão aqueles joelhos realmente os joelhos de Deus?

sexta-feira, 20 de maio de 2016

(Aquileia)

AS ORIGENS DA GEOMETRIA




"Até mesmo a avaliação pelos harpedonaptas dos campos cultiváveis, cujas margens as cheias do Nilo apagou ou derrubou, procura encerrar o contencioso entre vizinhos pela força do Estado e restabelecer o cadastro, na sua integridade, isto é, o fundamento da taxa."
"Les origines de la géométrie" (Michel Serres)

A geometria surge aqui como razão prática que permite as condições de existência de uma sociedade organizada. Se não houvesse a possibilidade de reconstituir o estado anterior à inundação, através das linhas e figuras abstractas produzidas pela mente humana a partir da experiência real, o direito e a economia não teriam chegado a estabelecer-se. Passariam diante dos homens, como os lírios e os juncos arrastados pelo caudal do grande rio.

Este é o grande argumento em favor do 'idealismo' (na querela que vem dos tempos de Marx). Porque é o espírito, o que só tem realidade na nossa cabeça que torna possível, não só a 'presença' do passado e dos que 'da lei da morte se foram libertando', como da própria continuação da vida humana, enquanto tal.

O 'contencioso' de que fala Serres é, pois, uma das origens da geometria. Para permitir o acordo dos espíritos necessária a qualquer empreendimento comum, foi preciso criar fora do espírito um sistema de leis a que a natureza e o social pudessem coadunar-se.

Assim, podemos medir o grau de absurdo dos que defendem a geometria e a razão como 'apetrechos' individuais. Graças ao 'download' divino, seríamos racionais e geómetras.


quinta-feira, 19 de maio de 2016

(José Ames)

O MÉTODO



"(...) meditar sobre essa estranha faculdade do humano de procurar um método (Vico), quer dizer, "procurar um sistema de operações exteriorizável que faça melhor do que o espírito o trabalho do espírito"(Valéry)
(citação de Christian Gérard)

Poderíamos dizer que a essência do método é um algoritmo? Este 'sistema de operações' tem hoje um enorme sucesso no mundo das comunicações, da produção e dos serviços, e é mais fiável, extensível e replicável do que o mais bem dotado cérebro humano.

De uma certa maneira, por isso, faz melhor o trabalho do espírito do que o próprio espírito. Mas para esta constatação partimos da ideia errada que o espírito se pode confundir com o intelecto e a matemática.

Paul Valéry e Vico não se podiam enganar a esse ponto. Logo, aquelas palavras deveriam, talvez, ser interpretadas como um enigma. Que estranheza é essa pela busca de um método e como se pode pretender que aquilo que é apenas uma parte do espírito se pode substituir ao todo, com vantagem?

Quando Descartes (com 'Le Discours de la Méthode') ergueu a questão da eficácia 'técnica' e da economia do discurso à condição de mecanismo de produção da verdade, não abriu apenas os portões da liberdade (separada) ao cientismo contemporâneo, provocou também o seu 'upgrade' e a separação da ciência como um mundo 'paralelo'.


quarta-feira, 18 de maio de 2016

(Bombarral)

DESTINOS




(In defence of Heidegger | Prospect Magazine)



"Ele (Foucault) tinha de facto mostrado que mesmo o conceito da história do ser não sai do círculo da terceira auto-tematização do sujeito auto-referencial, isto é, da sua tentativa de dominar uma origem que cada vez se afasta mais."

"O Discurso Filosófico da Modernidade" (Jürgen Habermas)

Se a origem não for 'estabelecida' por um acto de fé inter-subjectiva, qualquer tentativa de ir para além do círculo da 'auto-referencialidade' (só podemos pensar o humano, humanamente) é narcótica e exposta à Crítica de qualquer descendente de Kant.

Mas se admitimos que não sabemos do que estamos a falar depois de sujeitarmos o edifício do conhecimento a uma 'vistoria' e avaliamos a solidez dos seus fundamentos, como deveríamos classificar os incessantes êxitos da tecnologia e da ciência que, precisamente, se baseiam naquele conhecimento?

Podemos não saber e ao mesmo tempo sermos eficazes de um ponto de vista técnico ou, de uma certa maneira, ciêntifico (porque, como dizia Engels, a melhor prova da existência de um pudim é comê-lo)?

O reconhecimento da nossa impossibilidade de alcançar a origem, de saber o que somos, faz de todos nós criaturas sem criador nem destino, condenadas a inventar-se um papel, como as personagens de Pirandello.

É, talvez, o sentido da defesa de Heidegger a propósito da sua hipnose hitleriana. Em "Da Essência da Verdade" (1943) escreveu:

"O extravio é a morada aberta do erro. O erro não são falhas isoladas, mas sim o reino (a dominação) da história daquelas ciladas, entretecidas em si mesmas, de todos os modos do extraviar-se."

Como diz Habermas: "A viragem é de facto o resultado da experiência com o nacional-socialismo, portanto da experiência com um acontecimento histórico que em certa medida 'aconteceu' a Heidegger."

Podíamos generalizar: 'o mundo acontece-nos', e mais ainda aquilo que inventamos e que é fruto de um 'certo conhecimento'...



terça-feira, 17 de maio de 2016

(José Ames)

O ESPÍRITO PAROQUIAL




Simon Leys conta a cena em que um sermão pôs toda a gente a chorar, excepto uma das pessoas presentes. Quando lhe perguntaram o porquê de tal indiferença, respondeu: "Não sou desta paróquia".

Esta anedota faz-nos pensar que existe uma ideia de fidelidade e um sentido de dever que pode preservar o indivíduo, digamos, de se 'embriagar' com as emoções de um colectivo. É raro que a natureza de cada um não seja contagiada pelo exemplo dos outros. E para não correrem esse perigo, todos os 'aficionados' de um clube ou os entusiastas de uma facção politica praticam, instintivamente, uma higiene de privação de contactos pessoais e de convívio em relação aos seus rivais.

Esse isolamento e esta segregação, de uns e outros, é o terreno ideal para as abstracções preconceituosas e para a mútua caricatura.

Em casos extremos, de poder desigual, esse não-querer conhecer adopta a famosa 'langue de bois' para expurgar do outro qualquer vestígio de humanidade.

O jogo de rivalidades é inevitável porque é desse 'estofo' que o homem é feito. E a tentativa da sua supressão tem as consequências que podemos imaginar, se aquela anedota em vez de se referir a uma comunidade 'comovida', o fizesse em relação a uma comunidade de fanáticos.


segunda-feira, 16 de maio de 2016

(Valongo)

A LUA ERRÁTICA



"Os contos da lua vaga" (1953-Kenji Mizoguchi)

As vezes que eu já vi "Os contos da lua vaga", e de cada vez me deslumbram!

Genjurô fica obcecado pelo dinheiro que consegue ganhar com a sua bela cerâmica, mas enquanto procura vender as suas peças na cidade, apaixona-se pelo fantasma da princesa Wakasa e perde a mulher que ama (Myagi). Tôbei, um campónio desmiolado, sonha em ser samurai. Mas levando ao general inimigo a cabeça dum nobre, a cujo suicídio, por acaso, assistiu, consegue a almejada promoção, só para vir a encontrar numa casa de prostituição a mulher que tinha abandonado.

A realização do sonho destes homens trouxe a desgraça das testemunhas de que mais precisavam no seu sucesso.

O apego ao que é causa da nossa perdição, a ilusão do mal estão maravilhosamente representados nas cenas com a princesa defunta.

É o velho sábio que o salva da morte, pintando-lhe no corpo os caracteres duma oração a Buda. Porque era pelo prazer que o fantasma o subjugava, essa captura do órgão pela escrita era melhor do que todas as negações do amante.

Nesse idílio funesto, há uma cena intransigentemente ascética. O oleiro toma banho no jardim da princesa, numa espécie de concha. Vemos a sedutora retirar apenas uma peça do seu quimono que nada descobre. Mas, logo a seguir, os olhos ardentes e os braços estendidos de Genjurô dizem-nos melhor do que o corpo nu que a mulher imaginária entrou no banho.

domingo, 15 de maio de 2016

(José Ames)

A DÉCIMA PRIMEIRA


197º Aniversário - Karl Marx - 2015 

" Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo."
"Teses sobre Feuerbach" (Karl Marx)

A enorme influência de Marx na sociedade contemporânea não pode ser negada, e muito menos pelos seus adversários, pessoas, instituições e até estados, que viram nas suas ideias um retrocesso da civilização e um perigo para a humanidade.

A chamada refutação do filósofo de Trier pelos factos, no entanto, tem sido posta à prova e apresenta indisfarçáveis fissuras. O objecto de estudo do 'Capital' talvez já tenha pouco a ver com as metamorfoses do 'sistema' nos nossos dias. Mas o velho Marx, não já como grande economista (título que, no mundo ocidental, poucos lhe concederam), e antes como profeta, parece erguer-se do túmulo e saltar das T-shirts da pop-arte para a maré suja das opiniões (a 'doxa', bem ou mal desprezada desde Platão).

Talvez este ressurgimento tenha a ver com uma real falta de alternativas e, por isso, não seja mais do que uma pausa na corrida da 'modernidade' para o abismo.

A verdade é que a 11a. tese sobre Feuerbach não foi apenas um clique genial para simplificar a escolha revolucionária. Não nasceu do nada, obviamente, e no fundo representava o 'espírito do tempo' (incluído o do 'capitalismo') com mais eficácia do que os analistas de todos os jaezes o podiam supor.

O enfoque na 'praxis' (a 'transformação do mundo') foi a chave para uma 'caixa de Pandora' que ninguém sabia que se estava a abrir. Não significa o abandono de todo o 'idealismo', de todos os 'pruridos' da filosofia alemã, o derrube de uma das últimas barreiras que entravavam o (futuro) advento da 'Desregulação'? Não se agravaram, incomensuravelmente, os riscos e a falta de controlo a nível global?

A consigna da 'transformação do mundo', por ser necessariamente baseada na 'impossibilidade de saber', libertou as forças contidas no caldeirão das bruxas de McBeth que hoje apresentam as fauces do 'eterno sistema' da 'irresponsabilidade organizada' (Beck).

Como é da praxe, as primeiras vítimas foram os 'revolucionários'. A figura tutelar desse 'sacrifício' continua a ser Saint-Just. O justo feito carrasco e depois justiçado e, a seguir, de uma certa maneira, 'santificado'.

sábado, 14 de maio de 2016

(Lisboa)

O AMUO DO HERÓI




O herói da Ilíada é Aquiles, mas na maioria do poema está ausente, longe da cena, junto às naus dos Mirmidões, no mais celebrado amuo de toda a literatura.

A guerra só poderá decidir-se a favor dos Gregos se Aquiles se vencer a si mesmo e voltar aos combates.

"Como se sabe a Ilíada tem vinte e quatro cantos. Durante os primeiros dezoito, Aquiles continua amuado em consequência da desconsideração de que foi alvo no Canto I e recusa-se a combater. É o herói bélico por excelência , mas podemos ler oitenta por cento da Ilíada sem que ele pegue numa única arma." (Frederico Lourenço)

Esta espera é pois um longo "suspense" (técnica que, como se vê, não foi descoberta por Hitchcock).

Se pensarmos, porém, que o regresso do herói significa também o fim da sua curta vida, pois que a seta de Páris o ferirá no seu único ponto vulnerável, o deferimento é motivado por muito mais do que uma paixão irracional.

Porque é uma boa imagem do amor à vida, quando se sabe que o cálice não pode ser recusado por muito tempo.

E o calcanhar, por onde o segurou Tétis, em criança, para o mergulhar nas águas do Estige, um dos rios do Inferno, é o sinal da impotência e da imprevidência dos deuses, da Lei a que mesmo eles têm de obedecer.

Nada disto é abstracto, como a ideia da perfeição, da ubiquidade ou dum ser todo-poderoso.

A teogonia é um teatro nas núvens para edificação dos mortais.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

(José Ames)

A SEGUNDA CRUCIFICAÇÃO






'Salvator mundi' (Antonello da Messina) 


"A arte liberta-nos da verdade, como dizia Nietzsche." (Romeo Castellucci)


"Sobre o conceito do rosto de Cristo", ontem no Rivoli.

O teatro de Castellucci emancipou-se da palavra; os actores falam um italiano neutro, quase supérfluo, sem as conotações da língua e num estado de transição para a 'matéria'. É ainda teatro? Por que se invoca a raiz política da cena grega?

Procurar o rosto de Cristo no escatológico é a operação anti-cartesiana por excelência. Como se a ambição de 'salvar o mundo' tivesse deixado o homem para trás e literalmente pretendesse salvar a matéria, torná-la numa metamorfose da 'beleza do mundo' ("Este espectáculo é uma reflexão sobre a decadência da beleza, sobre o mistério do fim." Diz o autor em entrevista ao 'Expresso')

A música de Scott Gibbons e a 'epifania" da conversão do rosto do Cristo de Antonello Da Messina em matéria fecal, com a frase "I am your shepherd" impondo-se sobre a sua negação ("I am not your shepherd") e os tonitruantes decibéis da conclusão fazem lembrar um concerto de 'heavy metal rock' e um anti-Jesus Christ Superstar.

A citação do filósofo do Zaratustra ajuda a esclarecer o que quer dizer Castellucci com a frase: "Vamos ver um espetáculo porque queremos ser enganados. O teatro não serve para mostrar uma verdade, mas sim para a esconder."

E o desafio é pensar no que é que esconde a degradação física do velho pai que ocupa toda a cena, atingindo o olhar de Cristo e provocando a sua segunda 'crucificação'.



quinta-feira, 12 de maio de 2016

Baleal

A NÊSPERA





"(...) aquele que tiver lido mais romances engenhosos, ouvido mais narrativas curiosas, esse, digo eu, terá mais conhecimento que um outro, ainda que não haja uma palavra de verdade em tudo o que lhe descreveram ou contaram; porque o hábito que tem de representar no seu espírito muitas concepções o torna mais capaz de conceber o que lhe propõem."
("Nouveaux Essais sur l'entendement humain" de G. Leibniz, citado por Paul Veyne)

Um filósofo do século nascido no século XVII, Leibniz, com este argumento, parece esperar-nos na Segunda Modernidade (Beck).

Porque talvez nos devamos interrogar se esta vantagem em conceber as novas propostas do nosso tempo, graças ao estudo especializado nos mais diversos campos do saber (ou, talvez se devesse dizer, do não-saber), graças à investigação científica e à inovação tecnológica, representam de facto mais do que aquele conhecimento no 'sentido restrito', que seria, de facto, independente da verdade.

Mas, se fosse assim, deveríamos, também, interrogar-nos se alguma vez alcançaríamos os cumes do 'conhecimento restrito' se não fosse a crença de quase todos, de uma maneira ou de outra, conscientemente ou não, na existência da verdade, ou numa verdade da existência.

Profetas, como o autor de "The World at Risk" falam de uma 'impossibilidade de saber' (sobre a realidade, ou a verdade) que atinge todos os nossos esforços para antecipar o futuro.

Ainda não nos demos conta disso, mas o 'conhecimento restrito' mingou assustadoramente, como a nêspera de Mário Henrique Leiria.

A Nêspera

Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece





quarta-feira, 11 de maio de 2016

(José Ames)

O IMPASSE ÉTICO




"Por causa da sua multifacetada inconsistência, Proteu é, entre todos os deuses, aquele que tem menos existência. Antes de escolher, um indivíduo é mais rico; depois de escolher, é mais forte."

(Rascunho do prefácio de Gide para a sua peça 'Saul', citado por Simon Leys)

A riqueza, neste sentido, seria uma potencialidade, um estado virtual. Do género daquele crédito que todo o desconhecido goza antes de falar, ou o escritor antes de 'macular' a página em branco. A decisão por um rosto e um caminho não se faz, porém, numa ilha deserta. A força de que fala Gide nasce do estreito que comprime a torrente ('La porte étroite' tem a ver com isso). Em termos mecânicos, faz-nos pensar numa alavanca.

Em comparação, o que é a riqueza do 'podre de rico' expressão popular que tão bem descreve a espécie de maldição associada ao dinheiro, mas hoje quase incompreensível?

Tal riqueza desespera de se converter noutra coisa, através da escolha. E assim não se pode contrapô-la à força que resultaria de uma decisão. É um impasse ético.



terça-feira, 10 de maio de 2016

Braga

PARADISE LOST


www.paradiselost.co.uk




"(...) como sabemos, o efeito imediato da revolução coperniciana foi o de espalhar o cepticismo e a confusão, dos quais os famosos versos de John Donne dão uma tão impressionante, embora tardia, expressão, dizendo-nos que 

"a nova Filosofia põe tudo em questão,
O Elemento do fogo é completamente extinto;
Perde-se o Sol, e a terra, e nenhum engenho humano
Pode dirigí-lo aonde o procurar.
E os homens são livres de confessar que este mundo está gasto,
Quando nos Planetas e no Firmamento
Procuram tantos mundos novos;
vê então que tudo isto
É desfeito até não restarem mais do que Átomos.
Está tudo em pedaços e foi-se toda a coerência;
Tudo se compensa, e tudo é Relação."*


"From the Closed World to the Infinite Universe" (Alexandre Koyré)


Percebemos pelos versos de Donne que, além de poeta, era pastor anglicano, como a coerência da geometria e da matemática 'tirou o tapete de debaixo dos pés' à coerência intuitiva da religião. Donne fala expressamente em 'relation' e 'supply', consciente de que o mundo da ciência é um mundo sistemático.

Esse novo mundo e essa 'boa nova' não se anunciaram através de nenhum profeta ou salvador de almas. Foi um deslize progressivo para um mundo 'aberto', mas ambivalente, em que o homem se foi revelando a si mesmo, enquanto se 'fechava' à realidade cósmica e às suas próprias origens.

Depois de alguns séculos de um 'iluminismo' sem má-consciência, a presente época confronta-nos com nova expulsão do Paraíso. A velocidade a que as coisas acontecem e as consequências acumuladas das nossas decisões (informadas, especializadas e acima de quaisquer improvisos ou simplificações indevidas) trouxeram-nos aqui. Ulrich Beck alertou para o facto da presente situação de perigo mundial se dever não aos nossos falhanços, mas ao próprio sucesso da ciência e da tecnologia e aos outros avanços.

O cepticismo voltou, agora, não em relação ao mundo religioso, mas ao que Beck chama de 'segunda modernidade'.

Desta vez, neste 'Paradise Lost', não há coordenadas. Não estamos a leste de nada.


*
". . .new Philosophy calls all in doubt, 
The Element of fire is quite put out; 
The Sun is lost, and th' earth, and no mans wit 
Can well direct him where to looke for it. 
And freely men confesse that this world's spent, 
When in the Planets, and the Firmament 
They seeke so many new; then see that this
Is crumbled out againe to his Atomies. 
'Tis all in peeces, all cohaerence gone; 
All just supply, and all Relation."