"Até mesmo a avaliação pelos harpedonaptas dos campos cultiváveis, cujas margens as cheias do Nilo apagou ou derrubou, procura encerrar o contencioso entre vizinhos pela força do Estado e restabelecer o cadastro, na sua integridade, isto é, o fundamento da taxa."
"Les origines de la géométrie" (Michel Serres)
A geometria surge aqui como razão prática que permite as condições de existência de uma sociedade organizada. Se não houvesse a possibilidade de reconstituir o estado anterior à inundação, através das linhas e figuras abstractas produzidas pela mente humana a partir da experiência real, o direito e a economia não teriam chegado a estabelecer-se. Passariam diante dos homens, como os lírios e os juncos arrastados pelo caudal do grande rio.
Este é o grande argumento em favor do 'idealismo' (na querela que vem dos tempos de Marx). Porque é o espírito, o que só tem realidade na nossa cabeça que torna possível, não só a 'presença' do passado e dos que 'da lei da morte se foram libertando', como da própria continuação da vida humana, enquanto tal.
O 'contencioso' de que fala Serres é, pois, uma das origens da geometria. Para permitir o acordo dos espíritos necessária a qualquer empreendimento comum, foi preciso criar fora do espírito um sistema de leis a que a natureza e o social pudessem coadunar-se.
Assim, podemos medir o grau de absurdo dos que defendem a geometria e a razão como 'apetrechos' individuais. Graças ao 'download' divino, seríamos racionais e geómetras.
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