segunda-feira, 30 de janeiro de 2006



Por sorte, encontrava-me no percurso para o Castelo Mouro, em Sintra.

Na neblina do alto, a floresta viu-se pouco a pouco coberta de neve.

"Branca e leve, branca e fria", deixava mechas de outra idade no cabelo e derretia-se na língua.

Estava tanto frio que a certa altura tive que correr.

Essa beleza caindo sobre todas as coisas fazia-me estremecer.

sábado, 28 de janeiro de 2006


Matosinhos

sexta-feira, 27 de janeiro de 2006

DIREITO DE EXPRESSÃO



Battle Out Of Hell (easter eggs)

Numa destas manhãs, encontrei pão de ló naquele drama em bronze que puseram na praia de Matosinhos.

Havia uma mancha amarela em todos os rostos das aflitas de braços erguidos ao céu, do bolo que esfarelaram contra o metal.

Há demasiadas perversões no mundo de hoje! E cada uma com o seu direito a exprimir-se. Cada uma com uma motivação diferente para assaltar o monumento. E nenhuma para assumir que se trata, simplesmente, de falta de civismo. É que há dentro de cada uma um mundo para se manifestar!

Segue o que sentes!

Como não existe uma aritmética do social, não sabemos fazer as contas nem ver as relações e somar dois mais dois.

Por isso, soframos as línguas de fogo e enxofre.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2006

OS MAUS SINTOMAS


https://www.google.pt/search?q=apagada+e+vil:tristeza&num=20&client=tablet-android-samsung&prmd=ivn&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjs8KP-j6HQAhXGwBQKHeUsDQ4Q_AUIBygB&biw=1280&bih=800#tbm=isch&q=tristeza&imgrc=BoXD3tEa88fmhM%3A



Em artigo no "Público"de hoje, J. Pacheco Pereira escreve sobre uma tendência em curso na sociedade portuguesa. Os partidos teriam de mudar ou dissolverem-se.

Se esta reflexão não viesse a seguir à surpresa Alegre e a uma táctica postura de denegação partidária assumida por alguns candidatos, eu diria que estávamos perante uma novidade interessante e que essa tendência talvez correspondesse a algo que todos nós vimos sentindo ( e que não se confunde com o clima de "apagada e vil tristeza" gerado pela crise económica e social).

Assim, em face dos últimos acontecimentos, promovidos a sintomatologia, já não tenho a certeza. Estes sintomas podem não representar mais do que a saturação e a indiferença ( a alergia ao político, sob qualquer forma). Nenhum desejo de outras práticas de acção cívica, nenhuma nostalgia do político, tal como já foi (na Grécia Antiga?) parece justificá-los.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2006

O ELO MAIS FRACO



Um destes dias, foi atacado um dos nossos mais amados mitos: o da floresta protectora e benfazeja.

Um grupo de cientistas alemães concluiu que a floresta é responsável por 10 a 30% das emissões anuais de metano, contribuindo assim para o efeito de estufa. Apesar disso, o balanço a favor das árvores não deixaria a menor dúvida, dado o seu importante papel na absorção do dióxido de carbono.

As árvores continuam a ser amigas do homem e do planeta.

Mas os que se obstinam em destruir a Amazónia e outros santuários que os protestos ecologistas já não inibiam, têm agora um meio argumento de peso.

As árvores não são apenas os nossos pulmões (os quais têm também a sua despesa ). São, mais misteriosas ainda do que os animais, um dos elos mais fortes da nossa ligação ao universo.

Um dia teremos de escolher entre o aumento da população e da produção de artefactos e a conservação desse elo.

Entre nos envenenarmos nas próprias fezes, contemplando as espirais do umbigo e a verdadeira conquista do tempo e do espaço.

Imagino uma oficina das flores: reconstruir uma rosa desfolhada, pétala a pétala.

domingo, 22 de janeiro de 2006

LITERATURA DE CORDEL


"Pulp fiction" (1994-Quentin Tarantino)


O que há de novo em "Pulp fiction"?

O nível da ficção anunciado não parece caucionar uma retórica da violência, que é comum a tantos outros filmes, mas o que mais nos desconcerta nesta mistura de temas e de citações cinéfilas que não se espera encontrar num filme de gangsters.

E é de facto impossível defini-lo como uma comédia, mesmo se nenhuma personagem é levada a sério.

A cena em que Chris Walken explica ao pequeno Butch o currículo anal do relógio paterno que, com toda a solenidade lhe vem entregar, é irresistível e dá o tom ao filme.

A conversão de Samuel Jackson em pregador miraculado dá-nos uma versão escatológica da "estrada de Damasco" paulina e transforma, com muito humor, a palavra "inspirada" (na verdade, fanática) numa continuação, por outros meios, do homicídio encomendado.

Terminando o filme (e é uma pirueta formal que talvez sugira que os maus nunca morrem) a cena do genérico, interrompida, continua a posteriori, como se, entretanto, Travolta não tivesse sido, mais uma vez, apanhado com as calças na mão.

Uma "mise en scène" brilhante.

sábado, 21 de janeiro de 2006

A PACIÊNCIA DE KUTUZOV



Mais uma vez a Comunicação nos vem lembrar de que há uma ameaça a pairar sobre o Ocidente. Esta maiúscula já permitiu atrocidades como a de Atocha e não há razão para essa situação ter mudado.

Temos, assim, o oceano da civilização técnica (o humanismo é cada vez mais uma estética) que, partindo do começo grego inundou pouco a pouco o planeta. Nem a China que, não o esqueçamos, já foi beber aos filósofos alemães, parece ter encontrado na sua tradição milenar o antídoto necessário. Todos se podem matar uns aos outros, concorrer e lutar pelos seus interesses, mas não deixam de prestar o mesmo culto à matemática.

E existe um continente que teima em manter-se à superfície, preservado pela sua religião, que nunca conheceu a crítica, e por uma economia com muito passado e pouco futuro: o Islão.

Esta não é uma situação de guerra que deva acabar pela aniquilação duma das partes, mas é uma situação de perigo iminente (e existe pelo menos desde a bomba atómica).

O Islão (passe o abuso da maiúscula) não se confronta com outra religião, mas com um conjunto de culturas a caminho da completa secularização e à procura duma essência.

Esta é a fraqueza dos seculares face ao fanatismo, mas, na verdade, muito mais a razão da sua força a qualquer prazo.

O fundamentalismo religioso não resistirá à abertura da comunicação, nem ao desenvolvimento económico tal como este aconteceu até agora.

Mas querer forçar o passo dá coisas como a actual democracia no Iraque.

A impaciência sempre foi apanágio dos fracos e dos violentos e sabemos que nem uma democracia está a salvo de se tornar violenta pela simples infusão da força e do poder.

Como contra-exemplo, poderíamos pensar em Kutuzov, o general de Tolstoi que se aliou ao Inverno para vencer um exército de meio milhão.

Contudo, é verdade que o tempo deste cenário virtuoso pode faltar.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2006

A NUDEZ DO TRIBUNO


Um tribuno romano


Esta campanha teve uma novidade.

Parece que se tornou de súbito visível, como num precipitado, a fragilidade das chamadas candidaturas tribunícias.

E há quem questione já a sua inconsequência e a sua falta de ética.

A verdade é que esses candidatos sabem, e toda a gente sabe, que não têm qualquer hipótese de virem a ser eleitos.

Isso permite-lhes entrar no jogo com a aparência duma vantagem: a de não poderem vir a ser responsabilizados pelo que eventualmente prometam. Mas esse trunfo não é real, porque ninguém os poderá levar a sério e significa, efectivamente, uma quantidade apreciável de ruído no espaço público. Também por isso, os candidatos mais honestos se limitam a criticar, sem descerem a fazer promessas.

Apesar desta fragilidade, não se pode negar o valor essencial da crítica livre em democracia e da denúncia do que legitimamente se possa considerar um embuste do eleitorado ou o seu prejuízo.

É, de resto, esse o único motivo válido.

O que produz esta mescla de bons e de maus motivos que no fundo é desprestigiante para a política é a existência dum poder exterior aos partidos, mas do qual eles dependem cada vez mais: a televisão (e, em menor grau, os outros meios de comunicação).

No entanto, o remédio para esta praga parece simples. Bastaria que a lei facultasse a todas as forças organizadas o direito de antena (se necessário, por sorteio), para o exercerem a favor ou contra as candidaturas, sem que tivessem que ter o seu próprio peão no tabuleiro.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

A DESODETIZAÇÃO DE ODETE


"Odete" (2005-João Pedro Rodrigues)

Depois de "O fantasma", João Pedro Rodrigues volta a surpreender-nos com um objecto obssessional. Não é um deus do lixo que, desta vez, assombra a noite da cidade, vestido de Fantomas.

Aqui, sobre o tema do amor homossexual que, na sua intransigência faz de "Odete" um filme quase étnico (pink is beautiful), em que metade do género ( et pour cause...) só existe no estereótipo da mãe e na longilínea personagem (e como que deserotizada pelo supermercado) que dá o nome ao filme e se deixa vampirizar pelo morto, há um outro, muito mais interessante, que é o da culpa daquele que dá a morte, através duma estúpida chamada pelo telemóvel.

O filme está cheio de bons momentos de cinema e, sendo um filme anti-buñueliano, faz uma saborosa citação na cena da sucção do anel do defunto.

A intensidade sombria do jogo de cena do actor principal (Nuno Gil), em cujo corpo uma câmara próxima do tacto se demora, torna convincente esta figura duma paradoxal virilidade.

Mas tudo isto podia ser endossado por uma apreciação politicamente correcta. E o mérito ou demérito desta obra está-nos velado por uma conjuntura que tem o fulgor maléfico da queda dos antigos deuses.

E não seria incrível e sumamente ridícula esta história de paixão e possessão se fosse protagonizada por um homem e uma mulher nas suas relações naturais?

Mas é precisamente a natureza que se discute.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

NO CONVENTO DO CARMO


Convento do Carmo (Lisboa)


Voltei ao convento do Carmo, para o ver com a cara nova.

Depois da nave a céu aberto, o museu reúne no seu pequeno espaço algumas curiosidades (as múmias peruanas do século XVI) e verdadeiros tesouros, como o sarcófago de D. Fernando, com o seu buraco na tampa, por onde já Garrett enfiara o braço ("Viagens na minha terra"), e que devia pertencer, por direito, à bela igreja da Graça, de Santarém, se não fosse a famigerada macrocefalia do país.

Uma réplica, em madeira, do túmulo do Condestável, calvo como o conhecemos das gravuras e com um cartapácio debaixo do braço (como a compensar as façanhas militares), a qual foi encomendada pela sua 4ª neta, duquesa de Borgonha, para substituir o original, entretanto, destruído.

E uma pedra de armas (dos Sousas do Prado), também do século XVI, aproveitando no seu reverso um baixo relevo da religião hinduísta. Mais do que duas religiões ou culturas acavaladas, uma delas começando por servir de moldura ou suporte da outra, com o tempo, que relativizou ambas, temos um objecto híbrido, que vale o mesmo nas suas duas faces.

domingo, 15 de janeiro de 2006

AS LARVAS DO FUTURO



Os sinais de loucura na paisagem urbana inquietam-me para além do que desejaria.

Procuro deslindar o segredo desse desarranjo íntimo.

Por exemplo, o lixo, os Destak e os outros gratuitos que se abandonam em qualquer sítio, para o vento ler, as pichagens de todo o tipo, desenhadas, ou na forma de garatuja invasora, por todo o lado, tudo é suporte para alguém gritar o seu pequeno ego nas encruzilhadas.

Ora, a convivência com os loucos, com o espectáculo da loucura era natural na Idade Média. Os razoáveis decerto tiravam disso um suplemento de crença. Até que a loucura foi encerrada e ficou longe da vista.

Ainda não sabemos o que perdemos com esta dependência dos testemunhos indirectos, através da arte e da informação.

Mas agora ela parece estar de volta nas paredes. Um pouco mais de intensidade e todos ganham consciência da sua natureza.

O que me inquieta, talvez sejam simplesmente as larvas do futuro.

No café, em Espinho, enquanto espero o comboio.

Um velho veio sentar-se na mesa costumeira. Cumprimentou o empregado, ao mesmo tempo que tirava o JN dum saco de plástico.

Os meus pensamentos levaram-me para o transiberiano. Estava realmente frio.

Quando regressei, o objecto da minha atenção distraída debruçava-se apaixonadamente sobre a página do obituário.

Nada, desde as campanhas presidenciais à ameaça nuclear do Irão, se podia comparar ao prazer de se sentir ainda vivo.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2006

OS SETE SAMURAIS


"Os sete samurais" (1954-Akira Kurosawa)


Só se pode pôr nas nuvens um filme como "Os sete samurais". É incomparável.

Eu escolho, entre tantos, o momento em que Kyuzo ( Seiji Miyaguchi), o samurai asceta, volta na manhã seguinte com as armas que capturou atrás das linhas e, depois de duas palavras: "- Matei dois", se encosta a uma parede para dormir.

O grupo que o esperava em ânsias segue, de pé, todos os seus gestos num religioso silêncio. A admiração colectiva é depois expressa pelo mais jovem: - "Tu és grande, Kyuzo. Há muito que to queria dizer!"

Mas a figura do camponês-samurai, Kikuchiyo ( Toshirô Mifune), um diabo que está em todo o lado, espalhando alegria e coragem, que na sua simplicidade interpreta sentimento de todos e confronta cada classe com a sua verdade, é outro prodígio.

Tudo se harmoniza, a violência dos combates e a humanidade requintada das personagens, num verdadeiro estado de graça criativo.

No final, o ronin ( Takashi Shimura) profere a moralidade dessa luta entre samurais e bandidos a que falta o amanhã.

Apesar de terem derrotado os inimigos da aldeia, a vitória não pertence aos samurais, mas aos camponeses, porque eles têm a terra.

E o futuro dos samurais parece representar-se naquela floresta de túmulos com que acaba o filme.

Na verdade, os samurais fazem parte do mesmo mundo dos bandidos.

O GRAU ZERO DA VAIDADE



Observando esse quadro de Velasques em que se representa o célebre autor de fábulas e filósofo estóico, procuramos o que distingue a personagem que nada para além da pobreza do ambiente ajuda a definir, porque tudo está no olhar sem ilusões e sem medo, na doença e na pose, sem qualquer apoio ou pretensão do corpo, no traje que podia ser o de todos os dias, de longe da vista do semelhante. O que vemos é um homem sem nenhuma vaidade.

Não há o menor indício de sensualidade ou de cor. Com a vaidade parece que também a alegria desertou.

Este Esopo, tão sábio e prudente, chegou, talvez, ao fim do curso de como aprender a morrer.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

EU NÃO TE ACOMPANHO MAIS


Amália Rodrigues (1920/1999)

Acordou-me o som magoado duma estranha forma de vida.
Não sei o que é, nem de onde vem essa dor que não é no corpo que dói. Esse "desejo absurdo de sofrer".

Fatalismo, muito. Origens agarenas, do nómada que já há muito deixou o deserto para poder ainda sonhar com os jardins do Alhambra.

Calça como uma luva ao nosso gosto de mal-dizer que é ainda um conformismo e uma indolência.

O fado parece só viver dos nossos defeitos e com isso pretende ser a alma toda.

Conheço quem se confronte com esta encarnação da música, como um ateu com a religião. Também está na ordem natural das coisas.

Mas se essa é uma raiz, então a incapacidade de viver é a nossa utopia. E fazemos da sua refutação um modo de vida.

E caio sobre esta passagem em "Histoire d'une vie" (Canetti) em que o dr. Sonne se refere a Freud e ao instinto de morte:

"Mesmo supondo que fosse verdade, nunca deveríamos permitir-nos dizer isso. Mas não é verdade. Seria demasiado simples se fosse verdade."

Não podemos, nem devemos dizê-lo. Mas podemos cantá-lo. Como se.

FUGA DO PLANETA DOS MACACOS


"A sede do mal" (1958-Orson Welles)


Quando vejo o velho entrincheirado que relutantemente concedeu uma entrevista a Michael Moore, em "Bowling for Columbine", e depois o deixou a falar sozinho, por não poder responder ao que o confrontava com o seu medo e a sua intolerância, quando vejo Heston afastar-se, claudicante, como a procurar refúgio longe do Planeta dos Macacos, no qual descobriu, com a idade, que a Terra se tinha tornado, penso em que foi graças a ele que o pária Orson Welles conseguiu fazer o seu "Touch of Evil", e perdoo-lhe.

Mas por quanto tempo o que hoje passa por uma denúncia (do armamento dos civis) justificará aqueles métodos jornalísticos?

terça-feira, 10 de janeiro de 2006

O BODE EXPIATÓRIO



"Sim, meu capitão, a virtude! Eu não sei ainda o que é. Veja bem, nós os pobres, não temos virtude, é a natureza que nos puxa, mas se eu fosse um senhor com um chapéu, um relógio, uma casaca, se tivesse aprendido a falar bem, então gostaria de ter virtude. Mas sou um pobre diabo."

"Woyzeck" (Georg Büchner)

A fervente admiração de Canetti pelo "Woyzeck" de Büchner levou-me a conhecer a peça da melhor maneira: pelo entusiasmo.

A música de Alban Berg bastava-me, mas só me podia dar o sentimento e a angústia.

Nestas páginas, está a imagem da miséria humana, aquilo a que os Gregos chamavam de Necessidade.

O soldado Woyzeck é como um prego vivo em cuja cabeça bate toda a força do social. É essa força, concentrada na ponta do punhal, que golpeia Maria até à morte.

O assassino histórico que inspirou o autor não beneficiou de nenhuma indulgência ou compreensão. A sua responsabilidade foi "cientificamente" atestada por um homem com um significativo nome : Clarus.

Mas o que ressalta deste texto fulgurante é a "máquina" dum desequilíbrio trágico, em que o orgulho e a prosápia de personagens como o médico e o capitão só são possíveis pela completa humilhação dum pobre energúmeno que acreditava que os mações andavam a escavar por debaixo da cidade, como as toupeiras do mal.

Büchner não acabou a peça.

Pertence ao empregado do tribunal a última deixa que diz: "Um bom crime, um verdadeiro crime, um belo crime, tão belo quanto se podia desejar, já há muito tempo que não tínhamos um assim."

Belo, realmente, porque se encontrou o perfeito bode expiatório.

JAPONIDADE


"Os sete samurais" (1954)


Revejo "Os sete samurais" de Akira Kurosawa, procurando ler a sua "japonidade", segundo a lição de "O império dos signos" de Barthes.

Decerto, os excessos guturais (que não encontramos em Ozu), os gestos vivos, dir-se-ia que dum metabolismo de animal pequeno, e, claro, o cerimonial que quase reduz à insignificância o nosso informalismo ocidental.

Por cima de tudo, uma mesma linguagem cinematográfica, bebida nos grandes clássicos europeus e americanos.

Não é sem razão que esta história deu um bom western ("Os sete magníficos").

A TREVA TUDO COBRIU



"Podia acontecer até que ele, no fundo, esperasse o meu convite para poder decliná-lo. Todos os actos defensivos em relação aos outros ou a mim mesmo que eu pude observar em Musil pareceram-me sempre duma justeza infalível. "

"Histoire d'une vie" (Elias Canetti)

Musil morreu aos 62 anos a fazer a sua ginástica diária e, segundo o testemunho de Martha, a sua mulher, com um sorriso irónico nos lábios.

Ulrich, o herói de "O Homem sem Qualidades" (HSQ), nem nos momentos de maior descrença deixou de cuidar da sua forma física.

Era uma pessoa fria, susceptível em extremo, que se impacientava com os raciocínios confusos ou incompletos, com o vago e a imprecisão, em suma, era o mais anti-romântico que podia ser.

Martha protegia-o dos encontros que o pudessem irritar ou magoar a sua sensibilidade eriçada.

Mas era tão considerado desde a publicação do HSQ que os amigos e admiradores se quotizaram para lhe permitir escrever.

Fazer parte dessa sociedade benemérita era um privilégio que o próprio Musil controlava com todo o zelo do grande conceito em que tinha o seu opus magnus.

Pensar que estes encontros e esta vida intelectual que Elias Canetti nos relata eram ainda possíveis em meados dos anos trinta e iriam ser cobertos pela treva em tão pouco tempo!

Vi na televisão o programa com Ana Sousa Dias e Marcelo.

Aquele desconcerto, tantas vezes verificado, revelou-se mais uma vez.

Ele, como sempre, foi lapidar e conseguiu que parecesse simples o complicado caso da política energética e da Iberdrola.

Mas cobriu sempre, não deu a mínima entrada a qualquer das tentativas da sua parceira.

Tanta confiança na sua superioridade chega a parecer indecente!

segunda-feira, 9 de janeiro de 2006

FALSA CONCLUSÃO


"Da vida das marionetas" (1980-Ingmar Bergman)

Já relevei aqui o parentesco entre a psicanálise e o policial. Há uma intriga a resolver em ambos, e em ambos, culpados a encontrar. No caso da teoria de Freud, podíamos falar dos suspeitos do costume:

"Mas acontecia dum modo geral que não se podia dizer nada numa conversação desse tempo que não se tornasse logo insípido pela primeira motivação ao alcance da mão. O facto de essa motivação ser sempre a mesma, o indizível aborrecimento que daí provinha, a esterilidade que disso resultava, tudo isso parecia não perturbar muita gente."

("Histoire d'une vie", Elias Canetti)

Quando não é um Hitchcock, que tanto se diverte com uma história que só nos resta compartilhar desse prazer, mas alguém habituado aos mais altos voos do cinema, como Bergman, a pegar num caso de psicanálise, sentimos como se tivesse havido uma concessão à facilidade.

Os problemas de Peter em "Da vida das marionetas" que assassina uma prostituta com o nome da sua mulher, aparentemente, é um caso clássico de impotência e de homossexualidade recalcada, pela influência duma mãe dominadora e duma mulher que a substituiu nesse papel.

A conclusão do psicanalista resolve o mistério do crime, dentro dos cânones do género.

Por isso, enquanto que uma obra como "Persona" (que podia ter igualmente uma solução declarativa) não perdeu nada da sua complexidade, aqui temos um fecho que dispensa outras interpretações, e que aproxima este filme do divertimento (embora com um suspense denegado).

Porém, esse veredicto não nos satisfaz, por causa do modo como a solução é preparada e pelo veículo dela. De facto, a ambiguidade moral do psicanalista ( que é um dos amantes de Katarina) propõe-nos, talvez, uma falsa conclusão.

Donde, o metafísico volta a assombrar o sexual e "Da vida das marionetas" continua, na verdade, "O silêncio".

A PERFEIÇÃO DE DULCINEIA


Santo Anselmo (1033/1109)


Dom Quixote utiliza o argumento de Santo Anselmo para provar a existência da sua Dulcinea del Toboso.

Quando os Duques o interrogam sobre a identidade da sem-par, ele não fica perturbado pelo facto de não a conhecer em carne e osso, mas encarece todas as suas perfeições, às quais, como no argumento ontológico, não pode faltar a da existência.

Por tantos modos se encontram os caminhos da loucura e os da fé mais genuína que esta monumental sátira aos romances de cavalaria facilmente se pode transformar numa crítica da Razão (Cervantes, percursor de Kant?).

domingo, 8 de janeiro de 2006

HUIS CLOS


"A Inglesa e o Duque" (2001-Eric Rohmer)


"Eu digo-vos, se não lhes derem tudo sob a forma de cópias inábeis etiquetadas em teatros, concertos e exposições de pintura, eles não têm olhos nem ouvidos. Se alguém talha uma marioneta dependurada na ponta dum fio que a faz gesticular e cujas articulações rangem a cada passo em pentâmetros jâmbicos, que personagem, que lógica!

(...) Eles esquecem o seu bom Deus pelos seus maus copistas."

"A morte de Danton" (Georg Büchner)


Uma das surpresas de "A Inglesa e o Duque", de Eric Rohmer, foi a utilização como cenário e fundo da acção da cidade de Paris, tal como era reproduzida nas gravuras da época.

À partida, ninguém diria que esse artifício iria funcionar, contribuindo até para dar ao filme um suplemento de autenticidade histórica e a dimensão teatral do "huis clos" da Revolução Francesa.

A reconstituição do passado parece exigir que se abandone a pretensão à integralidade que nunca é possível, de qualquer modo.

E renunciar, assumidamente, a uma das suas dimensões (neste caso, o cenário, mas podia ser a luz ou o som), torna a evocação mais verdadeira, mais próxima da memória que, como se sabe, é selectiva.

Na peça de Büchner é a própria linguagem que transforma o material histórico. Temos aqui ideias e tipos de humanidade em violento confronto. E embora nenhuma das personagens pudesse falar com esta poesia, esta concisão e este tempo dramático, é tudo verdadeiro.

HERÓIS ACIDENTAIS


http://www.fremontdie


Um artigo do "Público" vem lembrar um facto que salta aos olhos, mas que normalmente não se vê: a falta de sono e a acção de certos medicamentos afecta seriamente a condução. Por exemplo, 24 horas sem dormir equivaleria a 1gr. de álcool no sangue, o que, segundo o Código, já se configura como crime.

Manobrar, num meio humano, uma máquina poderosa que, com a velocidade, multiplica a sua enorme força de impacto, ultrapassa tudo quanto puderam (sem a ajuda dos deuses) os hércules e os titãs, e é uma tremenda responsabilidade, de que muitos só se dão conta demasiado tarde.

Infelizmente, esses heróis acidentais crescem mais devagar do que cresce a força mecânica de que dispõem.

Já chamaram sacrifício colectivo à morte na estrada. Mas essa é apenas uma das fogueiras a que destinamos tantas vítimas, involuntariamente, sem nos darmos conta da relação connosco ou com o nosso modo de vida...

sábado, 7 de janeiro de 2006

O DR. SONNE NÃO BRILHA PARA TODOS


Robert Musil (1880/1942)


"Ele tratava cada auditor conforme o seu grau de sensibilidade, que conhecia bem. Não propunha nunca qualquer receita, embora conhecesse muitas. Era tão categórico como um juiz pronunciando o seu veredicto, mas sabia com um simples gesto excluir o seu interlocutor desse juízo. Mais do que de cuidado, era de ternura que seria preciso falar na ocorrência, e a mim espanta-me até ao dia de hoje essa mistura de ternura e de rigor inflexível."

"Histoire d'une vie"


O dr. Sonne é uma figura da Viena dos anos trinta que Canetti e um amigo elegeram como exemplo duma pessoa bondosa, depois de quase desesperarem para encontrar uma.

Era um homem que não dizia mais do que era preciso e que nunca se referia a problemas pessoais, os seus ou os dos outros. Podia discorrer, com igual pertinência e clareza, sobre qualquer assunto, pronunciando-se, no seu círculo, como um oráculo. Canetti comparava a sua conversação, e é o melhor elogio que lhe podia fazer, ao que então Robert Musil escrevia.

Como nunca falava de si não se podia saber que a sua pose um pouco rígida era consequência duma queda de cavalo que lhe afectara a coluna vertebral nem que, na juventude, havia sido um notável poeta da língua neo-hebraica. Evidentemente que o facto de ter distribuído a fortuna que herdara era também de quase todos desconhecido.

A sorte de encontrar um tal homem, que não dava nas vistas e permanecia silencioso num grupo mais alargado, foi de facto miraculosa.

Porque "O Homem sem Qualidades" está hoje ao alcance de qualquer leitor motivado para ler as suas quase duas mil páginas, mas um homem como o dr. Sonne (Sol) brilhou apenas para um cenáculo e extinguiu-se sem deixar resto, que eu saiba, fora das memórias de Elias Canetti.

O GUME AFIADO DO ERGO


Robespierre (1758/1794)


"Primeiro cidadão - As nossas mulheres e os nossos filhos reclamam pão, nós vamos alimentá-los com a carne aristocrática. Hey! Morte a quem não tiver o casaco roto!

Todos - Morte! Morte!

Robespierre - Em nome da lei!

Primeiro cidadão - A lei, o que é isso?

Robespierre - A vontade do povo.

Primeiro cidadão - Nós somos o povo e nós queremos que não haja lei, ergo, esta vontade é a lei, ergo em nome da lei não há mais lei, ergo à morte!"

"A morte de Danton" (Georg Büchner)


Esta peça, em que os Franceses do século XVIII citam, a todo o momento, os heróis de Tácito e de Tito Lívio, parece trazer um flagrante desmentido ao "mot" de Karl Marx sobre a história acontecer primeiro como tragédia e se repetir depois como farsa.

Os companheiros de Robespierre podem ter sonhado repetir as virtudes da república romana e seguir como modelo os Brutos e os Catões, mas não deixaram de viver a primeira grande tragédia dos tempos modernos.

O facto de ela se ter decidido por argumentos homicidas e em espaços fechados, desviados da sua primitiva função (o refeitório dos dominicanos que serviu de sede aos Jacobinos), aproxima-a ainda mais do teatro sangrento.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2006

AS DUAS FUNÇÕES DA BELEZA

"Ex nihilo" (www.doubtfulpalace.com)


"A alegria e a dor são dons igualmente preciosos; é necessário saborear uma e outra integralmente, cada uma na sua pureza, sem procurar misturá-las. Pela alegria, a beleza do mundo entra na nossa alma. Pela dor, entra-nos no corpo."

Simone Weil ("Espera de Deus")


Mais uma vez, o universo em Simone Weil não nos é estranho, não é um espaço insondável povoado de mundos e objectos com os quais nada temos a ver.

A acta de nascimento do homem não assinala o princípio de nada.

Não querer ver a nossa dimensão cósmica e o que ela implica na vida de cada um é um erro, mais aparentado com o da aparente destituição do antropocentrismo no reconhecimento de que descendemos do macaco, do que com a criação ex nihilo, descrita no Génesis.

O mito de Adão e Eva conserva, através da ideia de Deus, uma ligação indirecta ao universo, na imagem da Criação.

A teoria de Darwin, que é cientificamente irrefutável, enquanto faz parte duma polémica com o sentimento religioso, prova mais do que tem legitimidade para fazer. De facto, o elo com as outras espécies deveria antes levar-nos à condenação de todo o antropocentrismo.

Ninguém como SW nos faz sentir que somos filhos do universo, pressupondo uma relação diferente daquela que existe entre a parte e o todo.

Pela beleza, aderimos ao que a nossa inteligência não alcança e participamos daquilo de que parece que o corpo nos separa.

SILÊNCIO, ESCURIDÃO E NADA MAIS


"O silêncio" (1963-Ingmar Bergman)

Bergman diz que, para ele, "o cinema é antes de tudo teatro." Tudo é teatro desde a sexualidade às relações com Deus.

Nesta afirmação paradoxal (que Oliveira subscreveria) temos talvez a chave para a compreensão dum filme como "O silêncio".

Nos primeiros minutos a acção passa-se numa carruagem, com duas mulheres e uma criança. Não se ouve um som, nem de palavras, nem do comboio que desliza através dum país estrangeiro.

A mãe dorme, ressudando sensualidade, enquanto o rapazinho olha pela janela. A outra mulher parece sofrer e a certa altura tem uma hemoptise.

Com o aparecimento do som, vamos continuar no silêncio entre os seres. As duas irmãs, de temperamentos opostos, não têm nada a dizer uma à outra.

Penso entender aquela ideia assim: é quando convertemos a vida, o que dizemos e fazemos na realidade, em diálogos e cenas que tudo ganha um sentido. Recorremos a máscaras e a personagens, a um enredo e até a um palco ("life is a stage" já dizia Shakespeare) para compreender.

O que nos fica da torrente da vida sem a "encenação" que a nossa memória e a nossa sensibilidade, conscientemente ou não, constroem?

A verdade da vida não é o sentimento da vida, mas a história (a peça) que nos dá uma voz e um papel.

Aquelas personagens não "funcionam" e, assim, é o não-sentido que é objecto da encenação.

O filme é o desfecho da "Trilogia do Silêncio", formada ainda por " Através de um Espelho" e " Luz de Inverno", sobre o silêncio de Deus.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2006

O FLATO DA EUROPA


Charles de Gaulle (1890/1970)


"Por que não nos assumirmos como somos e vermos no fanático um irmão perdido, como o vemos no doente ou num terrorista? Não terão o místico e o agnóstico os mesmos neurónios e as mesmas angústias? Se nos é permitida a trivialidade: "Toda a gente crê, como toda a gente pensa, e mija. Mas podemos crer sem dar por isso, ao passo que não podemos mijar nas calças sem nos apercebermos."

"O Fogo Sagrado" (Régis Debray)


A teoria de Debray explica a fraqueza do ideal europeu pela falta de fé e de coesão.

Isso é assim porque a ideia de unidade é demasiado abstracta e não concorre com o particularismo das línguas e das culturas, que esse tem uma história de raízes arrancadas e conservadas.

O problema é saber se a transfusão de vida de que a Europa carece se pode alcançar pela via do alargamento e da abertura, como se em princípio, nada obstasse a que todo o planeta se tornasse europeu, através de conversões sucessivas ao cânone da nossa civilização judeo-greco-cristã.

Ou se o caminho a seguir deveria ser outro: o do recentramento e da delimitação de fronteiras da identidade. E se essa concentração se pode fazer sem ser por uma necessidade de segurança e debaixo das pulsões básicas do religioso.

A França, com de Gaulle, teve a intuição desse Outro da Europa, suficiente próximo, porque da mesma matriz, contra o qual, dentro dum contexto de paz, definir as diferenças fundamentais num modelo aglutinador: os E.U.A.

O OLHAR MÍTICO


Anna Mahler (1904/1988)


Canetti teve uma paixoneta por Anna, a filha de Mahler, e podemos pensar que a causa disso estava nos olhos dela:

"Eu acabava de penetrar na estufa que lhe servia de atelier, quando ela se voltou de repente e me fixou bem no rosto. Eu não estava já afastado e fiquei impressionado por esse olhar. A partir desse segundo, os seus olhos não me largaram mais. Não fui apanhado de improviso, porque tive tempo para me aproximar, mas de qualquer modo foi uma surpresa: uma inexauribilidade para a qual não estava preparado. Ela residia nesses dois olhos; tudo o que se via nela para além deles era ilusão" ("Histoire d'une vie").

Depois de ter suscitado, por algum tempo, igual fervor, o nosso autor recebeu de Ana uma carta lacónica e definitiva: "Creio, M., que não estou enamorada de ti."

E tudo acabou ali, como se apagado o desejo desses olhos, nada mais restasse.

Talvez por isso parecesse, em Alma Mahler, que só o resto era ilusão.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2006

O CAMINHO DA NINFA


"Lolita" (1962-Stanley Kubrick)


Quando, na "Lolita" de Kubrick, a mãe Haze, tendo-se fechado à chave, lê o maldoso diário de Humbert Humbert, este, do outro lado da porta, para "deitar água na fervura", diz que aquilo não é para ser tomado à letra e que a literatura é mesmo assim.

No que, até certo ponto tinha razão, visto que as pessoas e a vida real são sempre pretexto na literatura, perdendo o corpo e a substância, como as sombras a que se dirige Ulisses nos Infernos.

Esta é uma traição sem a qual não se poderia escrever e que é maior do que a da tradução.

Tirando isso, HH era um hipócrita que não tinha a desculpa da literatura, e o seu diário era apenas o espaço de que precisava para o corpo a corpo sufocante no caminho da ninfa.

RETRATAÇÃO DE UM LOUCO



O episódio da cova de Montesinos é a ponta duma meada que, se puxada, transformaria o romance dum louco que se toma por um cavaleiro andante, no de uma espécie de revolucionário que se serve da loucura para ver o mundo todo torto e a exigir a força do seu braço.

Com efeito, Cervantes, sem se comprometer nessa interpretação que endossa a Cide Hamete Benengeli, o pseudo historiador de quem retoma a narração, sobre os fabulosos eventos de que D. Quixote teria sido testemunha no fundo daquela caverna, diz: "Tu leitor que és prudente, julga conforme te parecer, que eu não devo nem posso mais, posto que se tem por certo que na altura da sua morte dizem que se retratou dela e disse que a tinha inventado, por lhe parecer que convinha e quadrava bem com as aventuras que tinha lido nas suas histórias."

E foi a única vez em que D. Quixote se revelou inconsequente.

O NOVO MUNDO AMOROSO


"Breve encontro" (1945-David Lean)


Em "Breve encontro", de David Lean, admiro, entre outras coisas, a cena na carruagem com a amiga tagarela, cuja matraca deixa de se ouvir para dar lugar ao solilóquio da mulher que se confronta com a paixão e que precisa de ficar só. Depois a outra voz ressurge, numa boca do tamanho do ecrã, e é como se pela boca morresse a inteligência.

E gosto do artifício da narração: esta mulher que, ao contrário de Ana Karenine, não se atira à linha do comboio, imagina contar a um marido bondoso e compreensivo e que a ama (em tudo o oposto do sr. Karenine) aquilo que nem dali a um milhão de anos lhe poderá contar.

Não há tragédia, como em Tolstoi, o que não estaria bem com o 2º concerto de Rachmaninov.

Apenas a melancolia do novo mundo amoroso.

terça-feira, 3 de janeiro de 2006

A FÉ DE EISENHOWER


Dwight Eisenhower (1890/1969)


"A nossa forma de governo, dizia o presidente Eisenhower que era um espírito prático, não faz sentido se não se fundamentar numa fé profunda - e não me interessa qual."

"O fogo sagrado" (Régis Debray)


Se a religiosidade está por detrás de todas as ligações de grupo, quer este aparente a forma laica quer a clerical, a religião propiciaria o eixo meta (vertical) de integração na humanidade e no cosmos, reclame-se ela duma verdade revelada, ou, por exemplo, da ideia do Progresso (*).

Este modelo tem a vantagem de integrar o homem todo, também no que tem de colectivo e de irracional, sem ser apenas uma ficção moralista.

Alguns leitores de "Deus: um itinerário" criticaram Debray por não ter em conta a sua experiência profunda, ao falar de Deus como um mediólogo.

É claro que nenhuma teoria pode dar conta da intimidade duma consciência.

Mas para mim o que fica desta leitura apaixonante é a pergunta: qual é a diferença entre a justificação de Deus pela forma do homem e o problema da verdade de Deus?

A religião pode ser a especificidade humana dum instinto gregário de comunhão, existente sob outra forma no mundo animal. Mas um instinto pensado já não é um instinto.

Debray pode ter escrito a obra que a época pedia. Porque este é um tempo crepuscular, em que chegam ao fim as grandes ilusões que nasceram com a Revolução Francesa e o progresso da Ciência.

Mas não há aqui nenhuma nova fé, nenhuma nova esperança ( e não é possível construir nada sem elas).

Apenas o olhar seco de lucidez de que fala Torga para definir a velhice (com o choro sem razão).

(*) "Nenhuma outra ideia, das que se referem à ordem dos factos naturais, se aproxima mais da família das ideias religiosas do que a ideia de progresso nem é mais adequada para se tornar o princípio duma espécie de fé religiosa para aqueles que não têm mais nenhuma. Como a fé religiosa, também ela possui a virtude de revelar as almas e os caracteres. A ideia do progresso indefinido é a ideia duma perfeição suprema, de uma lei que domina todas as leis particulares, de um fim eminente para o qual todos os seres devem convergir na sua existência passageira. É, portanto, no fundo, a ideia do divino (...)

Cournot

ESTRIDÊNCIAS

Em Serralves, visitei a Casa, tão e vazia e luminosa, com as suas vistas para os jardins e os seus ornamentos "art nouveau".

E em todo esse espaço uma exposição doente de pós-modernidade.

Numa das salas, a artista escreveu alguns textos sobre o hábito que uma imagem comentava.

Esses objectos híbridos reclamavam mais atenção ( ou uma atenção de outro tipo ) do que o visitante vinha preparado para lhe conceder. Com efeito, sem ler os textos, aliás interessantes, os quadros (?) perdiam todo o significado.

Acredito que a maioria saia do edifício com um juízo sumário.

Sabemos que a arte moderna está de costas voltadas para a sensibilidade do público e que segue o seu próprio impulso, sem contas a prestar, como deve ser.

Mas não seria possível fazer daquela Casa o outro pólo do museu de arte contemporânea, com uma colecção permanente digna daquela arquitectura?

segunda-feira, 2 de janeiro de 2006

ENCONTROS DIFERIDOS


Platão e Aristóteles

"Entre as coisas mais importantes que em nós amadurecem, estão os encontros diferidos. Podem dizer respeito a seres ou a lugares, livros ou quadros."

"Histoire d'une vie" (Elias Canetti)


Não me lembro de ter vindo a conhecer alguém cujo encontro tenha falhado uma primeira vez. Sucedeu-me antes o contrário. Começar por nos conhecermos muito bem, para depois divergirmos e mais tarde reatarmos, doutra maneira, como se a primeira experiência tivesse sido entre outras pessoas.

Mas em relação aos livros, tenho algo que se ajusta perfeitamente à ideia de encontro diferido.

Entre os muitos livros que cheguei a comprar nos alfarrabistas da cidade, tinha os "Éléments de philosophie", de Alain, na colecção Idées da Gallimard, obra que provavelmente nunca teria lido se não fosse uma biografia sobre Simone Weil e o meu entusiasmo por este grande espírito.

Há, pois, independentemente do potencial valor que tenham para nós certas obras, um problema de contacto, o qual, como o de dois amantes que se desconhecem era resolvido nalgumas comédias, pela figura da alcoviteira.

No caso de Alain, era natural que o interesse pelo discípulo se estendesse ao mestre.

Mas tive esse livro nas mãos e passei por ele, como se passa por um desconhecido que talvez gostássemos de conhecer, para o que falta, porém, o motivo e a ocasião.

ÁTOMOS E CÓCEGAS

"Os homens tiram tanto prazer de se coçarem como de fazerem amor."

Demócrito


Ou o coçar-se é mais do que uma reincidência num hábito pouco saudável, mas que nos dá muito prazer, ou é o fazer amor que está muito inflacionado pela literatura (ou pelo cinema).

Eu diria que é uma "blague" do filósofo do atomismo. O mundo reduz-se ao jogo dos átomos e o amor entre os homens à cócega.

A DIABOLIZAÇÃO DA ECONOMIA


"O testamento do dr. Mabuse" (1933-Fritz Lang)


Da prisão, Mabuse tece as malhas do fim do mundo. Escreve, compulsivamente, como se obedecesse a um ditado do próprio Satã, o plano das acções que levarão o caos e o terror à Alemanha e ao mundo. A sua presença virtual dirige as equipas de sabotagem das infra-estruturas, que obedecem como os futuros autómatos do Reich às ordens superiores.

Mabuse é outro nome da Inflação, a qual, com o mesmo "idealismo" (os bandidos inquietavam-se com o facto do patrão não querer nada para si próprio), mina as bases da sociedade de cuja ruína, sairá uma humanidade renovada, desta vez sob o signo do Mal.

Lang não podia adivinhar de que modo os seus filmes sobre o banditismo e o mal na sociedade eram premonitórios. Mas tinha diante dos seus olhos, o "ovo da serpente". A sua criatura Mabuse concentra em si toda a vontade de destruição duma sociedade à deriva. E essa função estava pronta para ser assumida, esse trono sangrento já tinha o seu ocupante designado.

domingo, 1 de janeiro de 2006

LENDO HABERMAS












Jurgen Habermas

Necessariamente, a água deve deixar aquele desenho na areia e a garrafa de plástico lançada à praia seguiu esse trajecto e deve rolar com água nivelada dentro até bater no rochedo. É fácil falar das leis, mas esta natureza sou eu. Todos os sinais que serviram a esta descrição duma cena marinha e tudo o que a análise das relações sujeito-objecto podia razoavelmente concluir apenas explicam o que eu já sei: só posso conhecer a separação. A ciência e a percepção instituem-me como elemento distinto do mundo. O domínio dos factos caracteriza-se pela sua capacidade de se mudar em linguagem. Mas a soma de todos os pontos de vista e de todas as formas de expressão que se podem tirar da facticidade não fundam nenhuma espécie de conhecimento, nem nenhuma realidade transcendental. O que é próprio do saber acumulado e da história do sujeito ocidental é a divisão do ser em pensamento e matéria. É para mim evidente que o real da ciência é a relação e a forma humana, e que o objecto último ou a causa primária só são acessíveis à experiência mística e religiosa que passam, significativamente, pela “morte” do sujeito da consciência. A ciência alimenta-se de si mesma. Morder a própria cauda não é apenas distintivo da “maldade” reptiliana. É também a forma de crescimento das civilizações técnicas. A nossa potência multiplica-se com o desenvolvimento e a complexificação da nossa rede mental e dos seus prolongamentos tecnológicos. Cada novo instrumento, cada nova teoria parecem colocar a humanidade à beira dum limiar que resolve o problema de Deus, que é o problema do conhecimento. Mas nessa questão não há, nem pode haver, verdadeiro progresso. A filosofia repete-se e é sempre nova. Platão é tão actual como outrora, apenas nos tornamos um pedaço mais vaidosos, mais vencidos por um estendal de falsas provas. As realizações tecnológicas impõem-nos o seu pensamento que é cada vez menos humano.

Com a mesma temeridade com que nos lançamos à conquista do espaço, uma espécie de western metafísico, fazemos uma verdadeira especulação imobiliária com o real. Transformamos a realidade num produtor de saber tecnológico, ou vice-versa, sem nos darmos conta que a mediação nos veda infalivelmente a experiência do real.