sexta-feira, 30 de dezembro de 2016


(José Ames)

ESTALIDOS COM A LÍNGUA

Théâtre du blog » Le vide/Essai de cirque

"Ao mesmo tempo que a especialização continua, que a pesquisa se estende a novos territórios e se aprofunda nos antigos, que a economia continua a criar novas tecnologias e serviços, os subcultos continuarão a proliferar. Esses críticos sociais que invectivam a 'sociedade de massas' num fôlego e denunciam no seguinte a 'sobre-especialização' estão simplesmente a fazer estalidos com a boca. Apesar de muita conversa solta sobre a necessidade de 'generalistas', não é nada evidente que a tecnologia de amanhã possa dispensar um exército de especialistas altamente treinados."

"O Choque do Futuro" (Alvin Toffler)

Embora o autor preveja a necessidade de uma evolução dos 'mono-especialistas' para os 'multi-especialistas', '(...) à medida que a base técnica da sociedade se torna mais complexa', continuamos a ser governados sem qualquer ideia racional do nosso 'destino' e do que significa esse poder que, ingenuamente, poderíamos dizer que se nos escapou das mãos.

A verdade é que assim como o Filipe II da 'Pedra Filosofal' nunca chegou a saber que coisa é o fecho 'éclair', embora pudesse ser, na altura, o monarca mais poderoso da terra, Toffler, quando escreveu o seu livro, não podia adivinhar o que hoje para nós representa a Internet. De facto, a incógnita do futuro não é coisa nova, e essa circunstância explica, só por si, porque é impossível que nos governemos.

Ao sermos incapazes de ver para além dos problemas técnicos e das soluções que essa limitação essencial torna 'necessárias', já não nos podemos reclamar de uma ideia antiga ou moderna do homem. A mutação e a ambiguidade é o princípio dessa 'alienação'. Não estamos a ser desapossados de um poder que sempre tivemos, por via das máquinas que nós próprios inventamos.

O paradigma de Deus e da  sua Criatura foi, talvez, o ponto mais alto do nosso discernimento. Substituam-se aquelas palavras por quaisquer outras, a situação só ganha em nebulosidade. E claro que não é preciso 'acreditar' em Deus para reconhecer a nossa falsa potência e que verdadeiramente não podemos pensar para além de nós.

A tese 'generalista' não é  só conversa fiada. No fundo, é a utopia essencial.


quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

(Lisboa)

O MANDAMENTO



"O  intacto  torso  de  pedra,  que  é  tudo  quanto  resta  do  kouros,  emite  luz  como uma  estrela,  impondo  um  mandamento:  "Tens  de  mudar  de  vida". 
(Rilke,  "Torso arcaico  de  Apolo")

Que luz é essa que emana da forma inacabada? E como é possível ler a interpretação do poeta sobre o 'mandamento' independentemente de uma moral?

É à beleza, a força terrível que 'desdenha destruir-nos', como diz na primeira elegia, que Rilke vai buscar as suas metáforas. Luz, estrela, fragmento de mármore.

O terrível shakespeareano, irmão do belo. Pensemos só no que o homem transformado (transtornado, também) deve à beleza que o faz esquecer raizes, tronco e folhas. O concreto do concreto. Daí o terror que espreita, porque já não é vida, ou esta vida.

A matéria de Paros, na escultura mutilada, intima-nos a encontrar a ideia, que não é outra que a ideia platónica. A arte fez-se símbolo, mónada de uma beleza inteira. A moral não faz parte desta religião. Numa revisitação ao magnífico 'Providence' de Alain Resnais, surge a expressão 'linguagem moral' que, apesar de tudo, o protagonista buscaria, depois da 'moral'.

'Mudar de vida' é o chamamento da 'verdadeira vida', do Belo, do perigo de viver, do estranho-familiar.

O terrorismo global, a abominável destruição 'conservadora' das novas tiranias, lembram o bíblico 'castigo' de Deus, as 'pragas do Egipto'. Podemos ver neles a Providência mais útil à vida, ou o 'mandamento da estrela'.


quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

(José Ames)

IDEALISMUS

(Tolstoi)


"Então (à falta de régua), peguei noutra folha de papel, e, servindo-me cuidadosamente do dicionário, consegui pelo menos guiar-me por alguma coisa parecida com linhas. Dividindo os meus deveres em três secções - os meus deveres para comigo, em relação aos meus vizinhos e os meus deveres em relação a Deus - comecei por redigir uma lista da primeira daquelas secções, mas pareceram-me tão numerosos, e, portanto, requerendo ser divididos em tantas espécies e subdivisões, que pensei que o melhor seria escrever o título de 'Regras da Minha Vida', antes de proceder à sua inscrição detalhada."

"Juventude" (Leão Tolstoi)

Este idealismo juvenil, mal disfarçado aqui pela ironia, que perpassa em toda a obra literária, não só de Tolstoi, mas de Tchekov e de outros autores russos do mesmo período, deriva, sem dúvida, do espírito religioso. Em Tchekov, por exemplo, no decurso de uma peça teatral, assistimos ao rápido estiolamento desse idealismo em personagens ingénuas, claudicantes e sem futuro. Como se o médico dramaturgo anunciasse os sintomas da decadência política das elites pré-revolucionárias.

Em Pierre, a figura que parece ser o auto-retrato do escritor em 'Guerra e Paz', o idealismo é mais confuso. A personagem está demasiado enredada nos seus dilemas psicológicos, na sua eterna deambulação pelos credos de uma classe estrangeirada. O que poderia ser o seu momento de acção - o projecto de assassinar Napoleão - foi inconsequente. Mas André Bolkonski é de outra têmpera e agoniza por capítulos inteiros, prendendo no seu ser bruxuleante os ideais da velha Rússia.

No final de contas, terão as novas elites, com os bolcheviques à cabeça, cortado com esse espírito idealista, ao construirem o que chamaram de 'homem novo'? Os mais idealistas foram os primeiros a alimentar o novo minotauro. As forças materiais e sociais não lhes deram a oportunidade de conhecer o futuro e o processo da própria consciência. Os traidores do espírito impediram-nos de trairem e de se trairem.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

(Porto)

UM SÓ HOMEM

(Vista do Campanile de S. Marcos)

"Grandes e extensas vassouradas explicativas da mudança social vendem bem. Pequenos, cuidadosos estudos de coortes da mesma idade, debruados de todos os lados por uma rica especificidade, não."

(Rebecca Onion sobre Norman Ryder e o conflito inter-geracional)

Por muito ricos e densos que sejam os estudos sobre a especificidade, não podem substituir a generalização, um qualquer grau de abstracção enviesada desde do princípio ao fim.

É na base dessas 'vassouradas', mais ou menos confirmadas por gerações, umas atrás das outras, que a maioria das pessoas conseguem formar uma 'visão do mundo' e, a partir daí, tomarem as suas decisões. É claro que isto não significa que a tradição, de resto, cada vez mais efémera e 'descartável', tenha o privilégio de detentora da 'verdade'.

Foi necessária, num mundo menos organizado e, sobretudo, menos 'conectado'. O individualismo preparou-nos para esta espécie de segurança que confia na racionalidade do novo córtex tecnológico e que permite que 'mil flores floresçam' na estufa da democracia.

Mas, paradoxalmente, o indivíduo, nas sociedades ocidentais (mais uma generalização para encurtar razões), sente-se cada vez menos seguro, à medida que o seu modelo de vida desafia o resto do mundo globalizado. O terrorismo talvez seja a doença infantil deste confronto, até que a produtividade de futuro permita à grande maioria do planeta dispor dos meios para se juntar aos 'bem-aventurados'.

Até lá, porém, será como a peste negra dos novos tempos, estendendo a sombra da sua foice sobre os prazeres, 'legítimos' ou não, dos 'mais avançados'.

O grande perigo é que as conquistas da ciência e da técnica possam acabar por servir a destruição mútua, ou a do nosso habitat, por não partilharmos de algumas generalizações fundamentais.

E esse é um combate de deuses e não de homens. Demasiados deuses para a oportunidade de um só homem.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

(José Ames)

A MALDIÇÃO DE FAUSTO

Desenho de Leonardo da Vinci


"É acabrunhante pensar que talvez não haja nada para saber, que todo o falso só nasce por se querer saber."
Elias Canetti ( "Le Territoire de l' homme")

Sem dúvida, o saber que se acumula, que se acrescenta como um edifício que, na sua massa, se interpõe entre nós e a vida
Algo que sabemos que está ali ao dispor da vontade, como meio de vencer ou para servir os nossos esquemas.

Essa concepção de que o saber é algo de adquirido não é o contrário da maiêutica socrática para a qual a verdade é sempre um nascimento? De facto, não há nenhum tesouro por detrás da perseguição da verdade, nada que possa justificar o nosso orgulho e a nossa vaidade. Não foi a ânsia de saber que perdeu Fausto?

Nunca como hoje, tão distintamente, o saber aparece confundido com o poder e com a informação. Quase pode medir-se em valor-homem.

A figura que melhor representa esse espírito demoníaco do saber é Leonardo da Vinci, admirado na nossa época por um homem como Bill Gates que construiu um império "soft". Mas não enquanto artista.

"A sua crença na natureza é fria e terrível; crença numa nova forma de dominação. Ele mede a sua incidência sobre os outros, mas não tem medo de nada. É precisamente este género de temeridade que se apodera de nós, o seu resultado é a técnica. Em Leonardo, a coexistência da máquina e do organismo é o facto mais macabro da história do espírito."


Elias Canetti ( ibidem)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

(Veneza)

AS 'ROYALTIES' DOS MORTOS

e-Tinkerbell - WordPress.com

"No mesmo instante em que renuncias ao acordo com outrém, renuncias para a eternidade a saber  o que é o bem e o que é o mal."

"L'Homme sans Qualités" (Robert Musil)

Robinson, na sua ilha, se dispusse do botão nuclear, poderia destruir o planeta sem distinguir entre o bem e o mal?

Como não poderia ter construído a bomba sozinho, só poderia ter accionado o botão por acidente, como quem tropeça. Ali não se diz que o acordo tenha de ser com os vivos. De facto, o acordo mais importante é com os mortos. "Os mortos governam-nos", dizia Comte.

Logo, se o 'homem-macaco' tropeçasse, não era responsável e não existiria o dilema moral. Mas se houvesse alguma humanidade nele (se não tivesse vivido sempre longe da espécie, e se tivesse sido 'alimentado pela loba', como os gémeos da lenda romana, então o acordo estava feito, ou tinha de ser feito.

Por isso, a personagem de Musil não tem razão. Ninguém pode renunciar completamente a esse acordo. Porque faz parte do seu ser; a própria linguagem o mostra, porque ele é o melhor exemplo de um acordo daquele género. Os acordos ortográficos expressam isso mesmo. Para rever um acordo, é preciso que haja um acordo pré-existente. Embora os acordos ortográficos sejam construcções artificiais e se arroguem uma compreensão da língua natural que não podem ter.

O caso é que um terrorista, por exemplo, é capaz de espalhar a morte num grupo estranho (que pode ser o resto da humanidade), mas sempre na base de um outro acordo fundamental com os seus irmãos, vivos ou mortos, no fanatismo.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

(José Ames)

O MÍSTICO REAL



"A mais bela emoção que podemos experimentar é mística. É a sementeira de toda a verdadeira arte e ciência. Aquele para quem esta emoção é estranha...é como se estivesse morto. Saber que existe realmente aquilo que é impenetrável para nós, manifestando-se-nos como a mais alta sageza e a mais radiante beleza, as quais as nossas pobres faculdades só podem compreender na sua mais primitiva forma, este conhecimento, este sentimento está no centro de toda a verdadeira religiosidade. Neste sentido, e neste sentido apenas, eu pertenço às fileiras dos homens devotadamente religiosos."

(Einstein:  "Strange  Is  Our  Situation  Here  On  Earth")

É preciso ter alcançado a 'visão dos cumes' e a maior paz interior, para, com estas palavras, desiludir tantos crentes na magia da falsa ciência e nos milagres do desenvolvimento tecnológico, que pensam, erradamente, que o 'místico' pertence definitivamente a um passado tenebroso.

A verdade é que grande parte das pessoas trocou essa 'impotência' natural (no sentido de uma falta de poder, na impossibilidade de 'agarrar', de transformar e, no fundo, de compreender), pelo pequeno orgulho humano de aplanar uma montanha ou dar um pulinho até ao nosso satélite. Os nossos limites parecem ter-se deslocado, cada vez para mais longe, mas falta-nos a verdadeira 'perspectiva'.

Agora, que começamos a sentir os efeitos da nossa pressão sobre o planeta, tudo é um pouco mais confuso. A religião imanente, sem mistério, nem impenetráveis segredos, sem o reconhecimento do 'factor humano' em tudo o que julgamos saber sobre o Universo, sobre o passado e o presente, confiados na paradoxal eficácia dos nossos métodos de 'desbravar' a terra, está a revelar-se contraproducente, incapaz de conservar sequer a nossa casa planetária.






terça-feira, 20 de dezembro de 2016

(Astorga)

O QUE ESTÁ EM CAUSA NA MÚSICA

A "Orelha de Dionísio" (Siracusa)

"A doutrina de Platão acerca da música é posta em causa simplesmente porque o ritmo e a melodia, acompanhados pela dança, são a expressão mais bárbara da alma. Bárbara, não animal. A música é o meio ambiente da alma humana na sua condição mais extática de admiração e terror. Nietzsche, que em grande parte concordava com a análise de Platão, diz em "The Birth of Tragedy" (que não se esqueça o resto do título, "Out of the Spirit of Music") que foi uma mistura de crueldade e de grosseira sensualidade que caracterizou este estado, o qual evidentemente era religioso, e posto ao serviço dos deuses. A música é o discurso primitivo e primário da alma e é o chamado alogon, sem discurso articulado ou razão. Não só não é razoável, mas hostil à razão."
Allan Bloom ("A Cultura Inculta")

Esta deve ser das ideias de Platão mais indigestas para a modernidade. Embora não banisse toda a música do seu Estado ideal, mas a sensualidade de influência oriental (e, sobretudo, o modo lídio), considerava que não era possível educar a juventude se não se exercesse o que aos nossos olhos não pode deixar de ser visto como uma censura intolerável sobre a música e a poesia.

Ora, como diz Bloom, se há coisa que concite o fervor e a unanimidade entre uma juventude que deixou de se rever na tradição e procura as suas referências nas areias movediças do relativismo moderno é a música, precisamente.

A música é, porventura, um dos poucos antídotos do individualismo dominante. Não admira que o arcaísmo da sua função religiosa exerça uma tal atracção (a par do tribalismo dos estádios desportivos).

A desumanização (ou o anti-humanismo) do nosso tipo de vida é que engendra esta espécie de terapêutica regressiva, em busca dum equilíbrio perdido. Platão seria hoje tão utópico como o foi na corte de Dionísio, o tirano de Siracusa.
E é essa radicalidade, expressa na mais bela das formas, que o torna eterno. O seu ódio à democracia e o seu endeusamento da razão são, assim, os brilhantes pontos fixos dum outro firmamento que deveria ser a carta do ser pensante.

Mas pontos fixos, não modelos.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

(José Ames)

O ESTADO DA TRIPULAÇÃO



"Aliás, o caso da gravidade mostrou explicitamente que todas as forças actuantes entre os corpos podiam ser reduzidas a forças que agiam entre partículas. A repulsão era um corolário natural da atracção. Logo, na Questão 31, ele proclamou: "Assim como, na álgebra, onde desaparecem e cessam as quantidades afirmativas, começam as negativas, também na mecânica, quando cessa a atração, uma virtude repulsiva deve suceder-se a ela". Dessas coisas, Newton não tinha nem podia ter dúvidas, pois elas eram, a seu ver, senso comum; ele podia insistir e insistiu em que estava falando da maneira mais corriqueira."

"O significado da síntese newtoniana" (Alexandre Koyré)

Notemos o 'salto' epistemológico, em que Deus já é uma hipótese supérflua, por muito religioso que o cientista julgasse continuar a ser. Newton diz: "assim como na álgebra etc, etc." Isto significa que a 'Natureza' pode ser reduzida à ideia da Natureza. Toma-se um código racional e a partir dele desenvolve-se um mecanismo. Compreendemos, enfim, o grande relógio do universo. Mas isto é tomar 'a nuvem por Juno', o mundo pela linguagem.

A questão é que isso não importa nada quanto aos resultados. O homem, com essa interpretação 'redutora', transforma, de facto, o mundo e transforma-se a si próprio. O profeta de Trier tinha, afinal, razão, com a sua 11a tese sobre Feuerbach: o que importa é mudar o mundo, e não interpretá-lo. A própria compreensão do mundo depende da mudança que se vai 'impondo'.

A 'algebrização' cosmológica abriu uma imensa perspectiva  para a 'exploração' do espaço. E a 'prova do pudim', aqui, foram as novas odisseias para além do planeta. No filme de Kubrick, o super-computador podia ter sido programado por outro Monte Olimpo ou por um irlandês embriagado. A certa altura, a missão foi interrompida por que a tripulação se sentiu 'utilizada' e em perigo de irrelevância.

Newton programou o nosso sistema 'natural', com a garantia de que Deus não podia estar enganado.

Mas a tripulação está nervosa.



domingo, 18 de dezembro de 2016

(Alfama)

A ARCA DE ANTONIONI

"Zabriskie Point" (1970-M.A.Antonioni)

A América dos anos sessenta e as revoltas estudantis que hoje nos parecem inacreditáveis, por não terem, aparentemente, deixado qualquer vestígio, não são o objecto de "Zabriskie Point" de Antonioni.

Ele não pretendeu explicar nada (um filme não o poderia fazer). Como europeu, deixa-se seduzir pelo "design", pela sucessão de marcas na estrada, pelos reflexos, pelo atrito das máquinas, pelos decibéis e pela estridência da cor. Por um mundo tornado tão pouco real quanto a publicidade.

No meio disto, a história de dois jovens fugitivos em busca dum novo começo do mundo no deserto.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

(José Ames)

O VETO SUSPENSIVO

Rosto de Robespierre é reconstruído - Jornal O Globo

"O ministro Necker, que queria fazer render o que restava da sua influência, soprou esta ideia aos seus amigos. Combatí-a com todas as minhas forças, fiz ver o ridículo e a cobardia deste compromisso. Não escondi o que havia de culpável no cálculo de certas pessoas, que então se apresentavam como os mais zelosos defensores do povo, e que, ao mesmo tempo que convinham em que o veto real, fosse qual fosse, era contrário aos verdadeiros princípios, fingiam, apesar disso, acreditar que era preciso refugiar-se no veto suspensivo para escapar ao veto absoluto."

"Mémoires de Robespierre"

Depois da Constituição de 1791, que outorgou o direito de veto ao rei e à rainha, Luís XVI e Maria-Antonieta ficaram conhecidos, entre os revolucionários, como o Senhor Veto e a Senhora Veto. 

O tribuno da 'Montanha' ia à raiz do problema político. Mas o problema político era, em certa medida, uma representação da história romana, em que cortada uma cabeça, se pode começar do zero, fazer tábua rasa dos factos, em nome da história da moralidade

Os que não iam ao fundo do problema, como os da 'Planície' (nome que lhes foi dado por ocuparem os lugares mais em baixo da Assembleia) e mais tarde, uma parte dos Montanheses que deixou de acompanhar o advogado de Arras na sua fuga para a frente, foram tratados pela medicina do dr. Guillotin.

A Razão endeusada (uma das formas precoces do fenómeno TINA) não admitia alternativas. Assim, aconteceu que ao 'queimarem as etapas', uma das quais, talvez fosse o 'veto suspensivo', os jacobinos apressaram o vácuo do poder e, ao mesmo tempo, assinaram a sua sentença de morte e o fim da Revolução. Lenine há-de  lembrar-se disso quando teorizou sobre 'um passo atrás, dois passos em frente'.

O drama histórico que se projectava na actualidade dos revolucionários, fê-los confundir os tempos e as personagens. Nem o Bourbon era um Nero ou um Calígula, nem a França do fim do século XVIII se podia comparar à antiga cidade imperial.


quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

(Pontevedra)

ACIMA DA REFREGA

Escultura de Maquiavel feita por Lorenzo Bartolini


"Na sua análise das acções políticas, Maquiavel nunca dá expressão a qualquer sentimento de simpatia ou de antipatia. Para utilizar as palavras de Spinoza, ele fala destas coisas como se fossem linhas, planos, ou sólidos. Nunca atacou os princípios da moralidade; nem alguma vez  encontrou neles qualquer utilidade."
(Ernst Cassirer)

Esta decisão de ir ao encontro da 'geometria' escondida sob as nossas acções, isto é, de procurar nelas aquilo que os Antigos chamavam de Necessidade, é genuinamente ocidental, caracteriza o nosso 'cânone'.

Desde Ptolomeu a Descartes e à moderna filosofia das ciências, passando por Hegel e Marx, sempre procurámos a simbologia das "linhas, planos, ou sólidos" por detrás da linguagem com que descrevemos a natureza como diferente do homem e objecto da sua 'consideração'. É essa ideia ainda que inspira a investigação científica, que pode ser influenciada pela política, pelo 'ar do tempo', mas que se reclama impoluta de qualquer sentimentalidade.

Sem dúvida que isso assegura uma continuidade, uma coerência (ainda que sujeita a ocasionais 'disrupções' ou 'mudanças de paradigma') que o comportamento humano não pode revelar de qualquer outro modo.

A nossa vontade, as nossas decisões encontram nesse património de ideias, o seu leme no grande oceano indiferente das coisas. Chartier dizia que o mundo não nos quer bem nem mal, e é por isso que a nossa determinação 'geométrica' faz o seu caminho.

Maquiavel foi um espírito que soube pensar a acção humana como objecto dependente de leis que faltava descobrir. Antecipou as grandes visões sistemáticas que apareceram no mundo alguns séculos depois.

Mas não se tratava de uma verdade 'científica', era mais uma espécie de aposta que não podia deixar de frutificar. Porque o universo não quer saber de nós. De alguma maneira,  também nós nos podemos pôr 'acima da refrega', em relação a nós mesmos.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

('Pós-verdade', José Ames)

O SEDUTOR INSPIRADO



"A teoria dos costumes e a sua utilidade na vida do homem podem ser comparadas à vantagem que se retira de percorrer o índice dum livro antes de o ler (...)."

"Mémoires" (Giacomo Casanova)

Giacomo Casanova não tem nada dum cínico, apesar daquela citação.

O Príncipe de Ligne diz dele que só as coisas que pretendia saber é que não sabia: "as regras da dança, da língua francesa, do gosto, dos usos da gente e do saber-viver."

Um homem com uma tão grande ideia de si próprio, e tão desfocada, está destinado a continuamente se equivocar no juízo que faz dos outros e sobre a opinião que têm dele.

Defendia-se com uma sensibilidade abespinhada e uma permanente desconfiança que, no fim da vida, já não eram mais do que misantropia.

E talvez esteja aí, nesse fracasso íntimo e nessa secreta insegurança, aliados a uma perseverança de inspiração fatalista ("sequere deum": segue o teu Deus) o segredo do seu sucesso junto das mulheres. Ainda o Príncipe de Ligne:

"Seria um belíssimo homem, se não fosse feio: é grande, esculpido como um Hércules; mas uma tez africana, olhos vivos, cheios de espírito, na verdade, mas que anunciam sempre a susceptibilidade, a inquietação ou o rancor, dão-lhe um pouco um ar feroz. Mais depressa pode ser levado à cólera do que à alegria, ri pouco, mas faz rir; tem uma maneira de dizer as coisas parecida com a do Arlequim desajeitado e a do Fígaro, que sabe tornar muito divertida."

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

(Matosinhos)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

(josé Ames)

CONDOMÍNIO



(Vision of St Augustin (detail 8) - Vittore Carpaccio )



"Nenhum  homem  está  tão provido  de justiça  que  não  lhe  seja  necessária  a tentação  da  inquietação ('tentatio  tribulationis': que  o  homem  se  converta  num problema  para  si  mesmo").

(Santo Agostinho, citado por H. Arendt)


Este pensamento vai ao encontro do aforismo evangélico que nos 'condena' a 'pecar, não sete, mas setenta vezes sete'. A justiça aparece assim como um ideal inalcancável (a não ser através da 'graça' que, precisamente, é exterior ao homem. Não podemos ser justos, ponto. Não podemos esquecer-nos de que a nossa existência (a 'carne', do catecismo) nos 'corta as asas' rente. Por isso, do ponto de vista humano, é injusto condenar a figueira que, no Novo Testamento,  não deu fruto fora do tempo.

A pedagogia socrático-platónica abria, porém, uma via para a justiça, que é a de começarmos por ser justos dentro de nós mesmos, por estabelecer a paz na guerra civil interna, entre a cabeça, o coração e o ventre. É, de certa maneira, semelhante a resolver, mas não de uma vez por todas, o problema que Agostinho diz que somos para nós mesmos.

Aqui, o santo, abandona a influência grega e a sua solução 'feliz', porque a 'carne' não é simplesmente o problema do homem consigo mesmo. O pecado é outra coisa, é um destino e uma promessa de 'salvação' se...

A 'salvação' é uma ideia que, em tempos mais próximos de nós, incarnou a utopia política. O tempo da justiça para todos é  o horizonte da Revolução. O problema de que fala Agostinho seria resolvido por outro tipo de 'graça' emergindo de uma História  divinizada.

E perante nós, agora, está o tempo sem culpa (Freud reduzíu-a ao sexo) e do homem não-problemático, porque encontrou uma solução médica, securitária e mágica ao mesmo tempo, a de um condomínio ideal, igualitário e, finalmente justo ( ou ajustado) dentro dos seus muros cegos.

domingo, 11 de dezembro de 2016

(Cuenca)

A ALEGORIA DA ESTELA



Numa das cenas finais do filme de Kubrick (2001, Odisseia no Espaço), depois de Dave (Keir Dullea) ter atravessado o espaço-tempo à velocidade da luz, a estela misteriosa que apareceu no princípio do filme e foi o motivo da missão secreta de Hal, o super-computador, está no meio de uma sala Luís XV diante da cama do astronauta que entretanto envelheceu extraordinariamente.

Substituí a imagem dessa estela (um monólito negro) por um telemóvel. Vou explicar porquê:

Ainda na perspectiva, mais do que plausível, de que não estamos a controlar a inovação tecnológica (nem, talvez, isso se possa fazer), tal como não controlámos, nem previmos, no passado recente, a implosão da URSS, o facto de nos considerarmos, até agora, os criadores do objecto peculiar a que chamamos telemóvel, não nos deve enganar, porque coisas como o ‘smartphone’ acontecem-nos, mais do que são criadas por algumas empresas e alguns especialistas. A especialização, como se percebe, já não é o 'nosso mundo'. Por isso é que alguns financeiros e exploradores de bolhas cometem 'objectivamente' tantos crimes de que se julgam inocentes.

O telemóvel de grande parte de nós não é apenas um produto da engenharia americana 'made in China'. As repercussões da sua distribuição massiva e das suas capacidades para ligar coisas com coisas e pessoas com coisas e pessoas, a sua inovação ao passo da Lei de Moore, ou outra lei desconhecida, levam-me a dizer que não sabemos o que temos nas mãos. Sabemos que há desejo e que há pulsão (de morte) nesse objecto que, tanto quanto sei, porque isto é da ordem do 'incontrolável' - não é verdade? -, podia ter surgido no nosso planeta como a estela de Kubrick, vinda do espaço exterior, ou, melhor ainda, do futuro.

Donde veio, realmente, e para onde nos leva?

Termino, fazendo a ligação com o fenómeno Trump e o destino da Democracia. Pensarão alguns que enquanto a América for o farol da inovação tecnológica, podemos manter a esperança no progresso continuado que vem de trás.

O problema é que a inovação é-nos de certa maneira imposta, ou pelo menos desarma-nos de toda a capacidade crítica. É como outrora a fé, quanto mais melhor, mais santidade e bem-aventurança no paraíso da nossa inconsistência.

O voto, mesmo aldrabado, tem um fundo de reivindicação plausível. E quando não se pode nomear ou se desconhece a verdadeira causa do empobrecimento, nos USA de tantos milhões e, sobretudo (mas não é um juízo moral), das classes médias, a irracionalidade parece fazer sentido.

Nem seria preciso elencar algumas das consequências já em curso do uso massificado do 'smartphone' sobre o emprego (não me referindo às suas enormes vantagens para outras pessoas e, mais problematicamente, outros empregos - muito menos do que aqueles que são perdidos), nomeadamente, através das chamadas aplicações para 'smartphone', indico as profissões já sob a ameaça de reconversão ou morte: bancários, taxistas, hoteleiros, agentes de viagens, livreiros, empregados de 'call centers', de lojas de música, de fotografia, e fotocópias, de aluguer de automóveis, de cinema, tipógrafos, recepcionistas, funcionários públicos, empregados de bilheteira, de notariado, de correio, de telefones, de gestão de parquímetros, para não falar de toda a indústria robotizada e das próximas profissões a mudarem drasticamente com a digitalização, como radiologistas, professores e médicos, etc, etc.

Os novos 'ludditas' nem sequer podem estar divididos entre manter o instrumento maravilhoso de que já não podem passar ou salvar os postos de trabalho. É um novo contrato social que se começa a desenhar, anunciado também por outro fenómeno que é o da juventude já não estar a aprender para uma sociedade fundada no trabalho assalariado.

sábado, 10 de dezembro de 2016

(José Ames)

FIGOS FORA DO TEMPO

Porta do Baptistério de Florença (Ghiberti-"Jacob e Esaú")

Jacob obteve a bênção do pai através dum artifício, assim fazendo preterir os direitos do primogénito (Esaú). E a questão não está em saber se o gémeo era ou não indigno (na sua simplicidade, trocou esse direito por um prato de lentilhas).

Nada disto seria extraordinário, se Deus pudesse ser ludibriado como o seu servo Isaac. Assim, só se pode entender a história pelo favoritismo divino.

Como se vê, o coração puro e a honestidade não são, na Bíblia, valores absolutos. Ao direito, sobrepõe-se, a profecia e o que agrada a Deus.

E é também o caso da figueira que foi amaldiçoada por ser aquilo que tinha de ser e não poder dar figos fora da estação.
E pode dizer-se que a outra bênção que Jacob arrancou do Anjo, com quem lutou até ao romper da aurora, foi a confirmação da primeira violência.

Como se não se pudesse iniciar nada de novo sem o que aos olhos profanos parece uma injustiça.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

(Legnica, Polónia)

FOCAGENS


Bibliothèque contemporaine / pour école maternelle /
 à usage professionnel / en bois MAGISTEO DPCtor.









"Alain não acredita que se possa instruir, divertindo; acha, pelo contrário, que é ensinando o esforço à criança que se pode ensinar alguma coisa."

(André Sernin)


'Ensinar o esforço' é ensinar a aplicar  bem a força e a atenção. Por exemplo, todo o esforço para tocar piano sem método nos cansa, e a desistência não se faz esperar. O autodidacta não aprende sem uma paixão que o livre das distracções.

A outra ideia, a de ensinar como quem nos distrai, só germina se for ao encontro de uma inclinação já existente e de algum modo lavrada. Nesse caso, é mais uma prática do que um novo ensinamento.

Não há dúvida, porém, que a consigna de ensinar divertindo parece a mais adequada ao tempo futuro, em que a atenção dos mais jovens, perdida a disciplina do livro e da interiorização do indivíduo, se tem de adaptar, precisamente, a outro tipo de atenção, a do ambiente de um jogo electrónico. O vinco na testa e a concentração do esforço, em tantos casos, podem levar-nos a pensar que está ali toda a atenção, mas como se sabe, a verdadeira atenção é como um pássaro na mão que não pode ser apertado. Para aprender, precisamos mais do paradoxo de uma 'aplicação distraída', que não perde a liberdade de pensar.

Por isso, não está bem dito dizer-se que esses jovens se distraem e que são solicitados para uma desfocagem omnipresente. Estaremos, talvez, mais perto da verdade, se dissermos que eles se 'perdem' numa atenção exclusiva e infrutífera, devoradora de 'tempo e espaço'.

É como se quiséssemos ensinar alguém a ser especialista de nada. Ensinar uma criança a passar sem o 'olhar panorâmico', o das escolhas que todos temos de fazer.

Todavia, é preciso reconhecer que a antiga sala de aulas preparava para a fábrica ou o escritório, e os novos modelos parecem  tatear o melhor ambiente para a 'sociedade sem trabalho', que não é tão utópica como isso.