segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

O CALDEIRÃO DAS CULPAS


(Obra de Mattia Preti, Orpheus no Hades, 1640-1645)

"No Hades, os mortos vinham à presença de um juiz que examinava o seu passado e atribuía a punição apropriada. O juiz podia sentenciar aqueles que tivessem cometido malfeitorias menores a uma divagação perpétua no mundo subterrâneo, num estado de alienação, não conhecendo grande sofrimento, nem grande alegria. A maldade séria, por outro lado, era punida com pesada flagelação, trabalho duro, fome e tortura. Os primeiros Gregos pensavam que todas as almas - tanto as boas como as más - viviam no Hades. Uma descrição de como os primeiros Gregos imaginavam o mundo subterrâneo é-nos dada no Livro 11 da 'Odisseia', o poema épico de Homero."

("Ancient Greece and Rome", Carrol Mouton)

Foi aí que voltámos, nós 'ocidentais', depois de mais de 2000 anos de Cristianismo, da Reforma e do Grande Cisma, em plena Era da Técnica?

A ideia do Inferno, a imagem que o descrevia ainda em meados do século passado, para impressionar os alunos da escola primária e da catequese é uma alegoria apenas com valor estético.

A maioria dos Americanos usa a palavra nas suas imprecações, e é ainda a palavra mais adequada para significar o maior dos horrores, vivido por tantos, sobre a terra, e não debaixo dela (se excluirmos os soterrados, os mineiros, o metropolitano, os esgotos e...a Atlântida, esse mito talvez indispensável à visão platónica).

Com o inferno (mas qual é a ligação?), a própria Morte foi 'varrida para debaixo do tapete'. Já se antevê a possibilidade de, num futuro não muito longínquo, podermos escolher os que têm de morrer.

A comparação só funciona, porém, se aceitarmos que o novo Hades não é um lugar. Não está por debaixo dos nossos pés nem por cima de nós. É uma privação, talvez. Como (não sei se já chegámos aí) a do telemóvel, a da 'rede', de não estarmos conectados.

Com a vida reduzida ao tempo do 'corpo' (mas também ao do nome, ao tempo dos heróis e da 'alma', na sua versão pré-cristã, que transcende o 'cadáver adiado que apodrece'), parece não haver solução de continuidade entre o 'antes' e o 'depois'.

Não, não voltámos a esse paganismo feliz. Feliz, porque inocente. Mas não sabemos o que vai sair do 'caos' e do caldeirão das culpas.


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