Gilgamesh Project /Neil Dalrymple
"(...) o Espírito Santo não é um mandamento arbitrário e absurdo, é um discernimento; uma vez que se dirige à minha inteligência, convida-me a praticar, por mim próprio, a 'crisis' [crise], o discernimento dos mitos; é já uma forma de praticar o 'crede ut intelligas' [compreender para crer]"
(Paul Ricoeur)
Pertence à modernidade, contrapor este 'discernimento' aplicado aos mitos, ao discernimento científico que não reconhece a verdade não-objectiva da mitologia. Aliás, por definição, a palavra mito é hoje conotada com a mentira, ou com uma narrativa em que se faz fé. Veja-se a definição do CNRTL*: "história relatando factos imaginários não consignados pela história, transmitidos pela tradição e pondo em cena seres que representam simbolicamente forças físicas, generalidades de ordem filosófica, metafísica ou social." A antiga ciência - é bom lembrar - nasceu sob os auspícios da religião, mas pensa-se que separou definitivamente dela, no tempo de Galileu. O problema das suas origens é, por isso, uma espécie de 'buraco negro'. E, na verdade, o que distingue a teoria dos 'buracos negros' dum mito moderno é a falta de uma prova que poria a construção de Einstein ao nível da saga de Gilgamesh.
O tempo do que agora se chama de pós-verdade começou muito antes, no momento em que nos contentámos com o facto das ideias científicas funcionarem.
Ora, nesse aspecto, não podemos deixar de reconhecer que a mitologia funcionou, enquanto não foi substituída. Ela 'produziu' a espécie de 'verdade prática' a que depois nos habituámos, através do desenvolvimento científico.
E esta conclusão esclarece a questão do discernimento, do mito dirigido à nossa inteligência, levantada por Ricoeur. Na verdade, o mito é uma chave para compreender uma situação humana que, necessariamente, não é do domínio da física.
E acrescento que, no seu próprio domínio, chega onde a ciência não pode chegar, a não ser que voltasse às suas origens...
* Centre national de ressources textuelles et lexicales
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