terça-feira, 6 de dezembro de 2016

INCOMPREENSÃO

(Isaac Newton)


"A oposição ao newtonianismo — entendido como física — foi profunda e vigorosa, a princípio. Aos poucos, entretanto, foi-se desmoronando. O sistema funcionava e provou o seu valor. Quanto à atracção, ela foi progressivamente perdendo sua estranheza. Como o expressou Mach com muita propriedade, a incompreensibilidade incomum transformou-se numa in-compreensibilidade comum". Uma vez acostumadas a ela, as pessoas, com pouquíssimas excepções, deixaram de especular a seu respeito. Assim, cinquenta anos depois da publicação, em 1687, dos 'Philosophiae Naturalis Principia Mathematica' — título tão ousado e conscientemente desafiador quanto a 'Physica Coelestis' de Kepler, oitenta anos antes, ou a 'Évolution Créatrice' de Bergson, duzentos anos depois —, os grandes físicos e matemáticos da Europa — Maupertuis, Clairaut, d'Alembert, Euler, Lagrange e Laplace — iniciaram, diligentemente, o trabalho de aperfeiçoar a estrutura do mundo newtoniano, de desenvolver os instrumentos e métodos da investigação matemática e experimental (Desaguliers, Gravesande e Musschenbroek) e de conduzí-la de sucesso em sucesso, até que, no fim do século XVIII, na 'Mécanique Analytique' de Lagrange e na 'Mécanique Céleste' de Laplace, a ciência newtoniana pareceu atingir sua perfeição final e definitiva. Uma perfeição tal que Laplace pôde afirmar, orgulhosamente, que  o seu Sistema do Mundo não deixava nenhum problema de astronomia sem solução."

"Significado da Síntese Newtoniana" (Alexandre Koyré)

O fenómeno da normalização do incompreensível repete-se ao longo da história. Não é só a mentira que se torna facto com a repetição sistemática. Na investigação jurídica ou científica também decidimos (liminarmente) partir de um ponto para além do qual abdicamos de compreender. Os números irracionais são um paradoxo da matemática? Não podemos provar as premissas das nossas suposições científicas? O que importa é que as explicações convençam a nossa razão. Desde Kant que sabemos que nunca chegamos ao fundo das questões. Há um limite para lá do qual não sabemos, nem podemos saber. Como agora se diz, não é possível pensarmos 'fora de uma caixa qualquer'.

Por isso, Mach (o pensador sobre que Lenine assestou a sua bateria teórica) tem razão em assinalar o 'progresso' da incompreensão generalizada. Com a ressalva que as pessoas não pensam assim. Chamam outra coisa a uma compreensão que parece não lhes fazer falta para viver. Pretensão sacerdotal?

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