Numa das cenas finais do filme de Kubrick (2001, Odisseia no Espaço), depois de Dave (Keir Dullea) ter atravessado o espaço-tempo à velocidade da luz, a estela misteriosa que apareceu no princípio do filme e foi o motivo da missão secreta de Hal, o super-computador, está no meio de uma sala Luís XV diante da cama do astronauta que entretanto envelheceu extraordinariamente.
Substituí a imagem dessa estela (um monólito negro) por um telemóvel. Vou explicar porquê:
Ainda na perspectiva, mais do que plausível, de que não estamos a controlar a inovação tecnológica (nem, talvez, isso se possa fazer), tal como não controlámos, nem previmos, no passado recente, a implosão da URSS, o facto de nos considerarmos, até agora, os criadores do objecto peculiar a que chamamos telemóvel, não nos deve enganar, porque coisas como o ‘smartphone’ acontecem-nos, mais do que são criadas por algumas empresas e alguns especialistas. A especialização, como se percebe, já não é o 'nosso mundo'. Por isso é que alguns financeiros e exploradores de bolhas cometem 'objectivamente' tantos crimes de que se julgam inocentes.
O telemóvel de grande parte de nós não é apenas um produto da engenharia americana 'made in China'. As repercussões da sua distribuição massiva e das suas capacidades para ligar coisas com coisas e pessoas com coisas e pessoas, a sua inovação ao passo da Lei de Moore, ou outra lei desconhecida, levam-me a dizer que não sabemos o que temos nas mãos. Sabemos que há desejo e que há pulsão (de morte) nesse objecto que, tanto quanto sei, porque isto é da ordem do 'incontrolável' - não é verdade? -, podia ter surgido no nosso planeta como a estela de Kubrick, vinda do espaço exterior, ou, melhor ainda, do futuro.
Donde veio, realmente, e para onde nos leva?
Termino, fazendo a ligação com o fenómeno Trump e o destino da Democracia. Pensarão alguns que enquanto a América for o farol da inovação tecnológica, podemos manter a esperança no progresso continuado que vem de trás.
O problema é que a inovação é-nos de certa maneira imposta, ou pelo menos desarma-nos de toda a capacidade crítica. É como outrora a fé, quanto mais melhor, mais santidade e bem-aventurança no paraíso da nossa inconsistência.
O voto, mesmo aldrabado, tem um fundo de reivindicação plausível. E quando não se pode nomear ou se desconhece a verdadeira causa do empobrecimento, nos USA de tantos milhões e, sobretudo (mas não é um juízo moral), das classes médias, a irracionalidade parece fazer sentido.
Nem seria preciso elencar algumas das consequências já em curso do uso massificado do 'smartphone' sobre o emprego (não me referindo às suas enormes vantagens para outras pessoas e, mais problematicamente, outros empregos - muito menos do que aqueles que são perdidos), nomeadamente, através das chamadas aplicações para 'smartphone', indico as profissões já sob a ameaça de reconversão ou morte: bancários, taxistas, hoteleiros, agentes de viagens, livreiros, empregados de 'call centers', de lojas de música, de fotografia, e fotocópias, de aluguer de automóveis, de cinema, tipógrafos, recepcionistas, funcionários públicos, empregados de bilheteira, de notariado, de correio, de telefones, de gestão de parquímetros, para não falar de toda a indústria robotizada e das próximas profissões a mudarem drasticamente com a digitalização, como radiologistas, professores e médicos, etc, etc.
Os novos 'ludditas' nem sequer podem estar divididos entre manter o instrumento maravilhoso de que já não podem passar ou salvar os postos de trabalho. É um novo contrato social que se começa a desenhar, anunciado também por outro fenómeno que é o da juventude já não estar a aprender para uma sociedade fundada no trabalho assalariado.
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