quinta-feira, 30 de novembro de 2006

A CONSEQUÊNCIA DA PASTA


Stendhal


Na reunião secreta que prepara a missão, junto de um alto personagem na corte de Londres, de Sorel, o qual, graças a uma memória prodigiosa, poderá suprir a mais minuciosa das actas, o primeiro ministro, M. de Nerval, faz uma impolítica aparição.

"É preciso convir que há nele uma muita rara suficiência e insolência até em se apresentar aqui. Ele costumava aparecer antes de chegar ao ministério; mas a pasta muda tudo, submerge todos os interesses dum homem, ele deveria ter sentido isso."

"Le Rouge et le Noir" (Stendhal)

É o que os ingénuos não saberão nunca antecipar. É que o lugar muda o homem.

Poupar-se-iam o opróbrio da classe política e a costumeira indignação perante as promessas traídas, se conhecêssemos um pouco melhor a massa de que somos feitos.

Eu acredito que um candidato faça promessas de boa fé, mas já é um mau sinal que as faça.


(José Ames)

segunda-feira, 27 de novembro de 2006

BASÍLICA


Roma

A primeira impressão ao entrar na igreja de S. Domingos (ao Rossio) é a de estarmos numa das muitas basílicas que em Roma são a prova de que nada resiste ao tempo.

Chega a ser comovente o espectáculo das colunas carcomidas contra o fundo liso das capelas que tem uma cor que sempre associo à cidade eterna: o fúchsia. A outra é o ocre velho, como o do palácio de "Conversation Piece".
O sacristão limpava carinhosamente, com um trapo, a cabeça da virgem iluminada. A igreja estava quase vazia, afundada no tempo do seu sinistro que me fez sentir em Roma.

Alguns soldados montavam guarda cá fora - disseram-me que a causa era um concerto de Natal (?). E eu quis ver nessa presença da força um dique humano protegendo a relíquia da cidade voraz.

domingo, 26 de novembro de 2006


(José Ames)

UMA VEZ, GUERRA E PAZ



No interior conhecem-se as grandes famílias: Bezuhov, Rostov, Bolkonski. Constelações com um brilho próprio.

Pierre, que é um bastardo, é em si um carácter colectivo. Um estilo. Nos Rostov, a ligeireza, a generosidade. Bolkonski, a honra, a nobreza, o pensamento. Os grandes espaços são teatro da guerra e da filosofia, ambas unidas no tema do destino e do mistério de Deus.

O firmamento interroga André caído em Austerlitz. Essa primeira morte, sagrada pelo comentário do próprio Napoleão e pelo desgosto da família, permite o regresso. Na noite de tempestade em que Lisa vai morrer do parto. Como se viesse, ele, trazer essa morte devida na sua pessoa. Ao cair nos braços de Maria, a irmã diz: - Que destino! – Como Pierre há-de resumir a tragédia de todos e reencontrar Natacha. A criança é uma mulher grave e amorosa. Essa frase volta: - fosse eu o mais belo e o mais inteligente dos homens, cairia a seus pés pedindo-lhe a sua mão…

O anjo cai no episódio de Kuraguine para elevar André, incapaz de perdoar. O orgulho dos Bolkonski é vencido pelo sofrimento. O velho príncipe chora abraçando André que regressa vivo de Austerlitz. Este, no leito de morte reconhece que não tem nada a perdoar a Natacha. Ama-a melhor. Ela tem tudo para sacrificar. Ele já nada.

A primeira confirmação muda os sentimentos de André. A irrequieta Rostov protesta-lhe um amor juvenil que ele vai sujeitar à prova do tempo. Só Pierre é incapaz de julgar. Senão inspirado, como na noite das fogueiras, quando um soldado francês lhe lembra a sua condição de prisioneiro. Quando o céu lhe comunica a sua força. Quando decide ser o libertador da Europa, esmagando a cabeça da águia imperial. Bezuhov é um cúmplice do estrangeiro. Na corte fala-se o francês do invasor. Napoleão é uma vítima do seu nome. Incapaz de alcançar a grandeza dos acontecimentos. Vencido pela paciência de Kutuzov. Uma cidade coberta de tesouros que valem tanto como areia. Uma capital de nada. O velho general mobilizou a natureza e o tempo. Tornou-se um verdadeiro aliado de Deus. O inverno persegue a retirada. O grande homem salva-se numa carruagem para Paris, abandonando à sua sorte o exército. Kutuzov teria feito toda a guerra sem homens. Mas a vaidade pedia vítimas. Um civil faz de Borodine um teatro divino. É Pierre, que ainda não compreende.

No filme de Bondarchuk, o pescoço de Natacha reflecte o incêndio de Moscovo. Como a reverberação da dor no tracto das palavras inúteis. É sem dúvida casual que essa parte do corpo dê o sinal da catástrofe. Mas ocorre-me toda a significância dessa superfície em que Eros e a morte se encontram. Lugar de corte: da vida e da palavra. É uma interpretação fetichista naturalmente alheia à obra. Pelo contrário, a cena do balcão em que a noite é comentada por Natacha e Sónia para o ouvido irónico de André é um símbolo genuíno. É dessa forma que se deseja ouvir uma confissão de amor ou a revelação do ser amado. Nessa espécie de altar celeste celebrado pela lua, é o monólogo mais puro que se intercepta. Sem intermediários.

A montagem paralela ”avant la lettre” tem um significado especial na morte real de André. A personagem é como que suspensa enquanto os diversos cursos do romance se precipitam. A granada espoletada pelo autor explode num tempo fora da acção. Em off, como se diz no cinema.

E agora um efeito completamente alheio ao livro e ao filme: no momento em que a jovem percebe que o moribundo da sala contígua é o príncipe, e caminha como uma visão branca em direcção ao leito, acendem-se as luzes. Intervalo. Ninguém se lembraria de interromper aí a leitura. Os capítulos são como os molhes da costa. Mesmo que não haja farol, as pessoas sentem a necessidade de os percorrer até ao fim. Agora o projeccionista interveio separando os noivos no tempo real.

sexta-feira, 24 de novembro de 2006


Porto (José Ames)

O LUXO VITAL




A forma humana perde-se no sono e no orgasmo. Mas um exige abandono total e o outro actividade. Em muitos aspectos, a excitação sexual é uma prova de atletismo que acaba no chão. E o céu levantado pelas multidões dos estádios.

Não é preciso pensar no célebre veneziano nem na pintura que dele fez Fellini para ver que cada homem tende a levar à desmesura aquilo que é o maior luxo que a natureza lhe concedeu. Esse excesso tem como modelo a máquina e não a harmonia do helenismo. Porém, é uma máquina que se destrambelha e pulveriza por fim na falta duma verdadeira função. E o prazer está todo nessa destruição das formas. Se eu quero, o meu corpo corre até ao limite. Aí, a sensação agradável sucede ao esforço. Mas se é o perigo que me faz correr, a ideia de repousar é o maior perigo. E a ideia do limite das forças. Estou em crer que quem, pela vontade se venceu várias vezes no curso dum grande e violento esforço, atinge uma espécie de imaterialidade e de transfiguração do prazer. O mundo deixa de ser um obstáculo e o sono está próximo, que afasta de divagações perigosas. Quer dizer que o próprio regime do corpo se apodera da vontade, quando começou por lhe obedecer.

Acontece com o sexo o que se passa com o poder em geral. A qualidade distintiva daquele órgão é a sua falta de economia. Ele é a criação do espaço e da rareza. Os encontros de acaso tornaram-nos prolixos. Somos uma espécie, contudo, que pensa a sua existência, e o pensamento do sexo multiplica. A capacidade de se dar prazer, independentemente da necessidade de reprodução, teria como inevitável consequência o desperdício e a morte, se não se fizessem sentir as leis do sistema nutritivo e não fosse imperiosa a acção. Só se mata de prazer quem viola o ritmo natural da vida e se dispõe a vivê-la num momento de intensidade terrível. De resto, a potência sexual é função da saúde física e mental, e deprecia-se com o uso infrene. E é como uma lei secreta das sociedades humanas que quando não há razões para adiar nenhum prazer, nem observar a lei do sacrifício sexual, só dos bárbaros pode vir a salvação. O bárbaro não se aborrece porque lhe falta tudo. Até a sua incompreensão da decadência é virtude e força.

É um milagre que o homem não vá até ao fim do seu poder. Não é assim que se experimenta tudo? Mas os homens precisam doutra filosofia. Felizmente o poder absoluto é quase uma utopia, perante um escravo como Epicteto.

Ao levantarem-se os tabus sobre a sexualidade, a sabedoria descobre que o homem não é livre. Que não existe senão pela lei moral. Mas é verdade que o sono nos reconcilia todas as noites com o animal misterioso.

quinta-feira, 23 de novembro de 2006

RETÓRICA CONTRA RETÓRICA




Albert Hirschman é citado hoje num artigo de EPC no "Público".

Este sociólogo tem o mérito de introduzir alguma racionalidade no incipiente debate político que sucedeu ao colapso soviético.

Nunca é demais lembrar que a retórica faz parte da política, e que desde a Antiguidade Clássica se sabe que as questões de forma são decisivas na persuasão dos homens.

AH define uma retórica reaccionária, através de três teses:

a da futilidade (nada mudará, se não mudarem as estruturas), a da perversidade ( as melhores intenções podem ter efeitos indesejados) e a do risco (uma reforma mais radical prejudicará uma anterior reforma, conquistada com muito esforço) e compara-a com a retórica do partido contrário, encontrando entre as duas muita coisa em comum.

Mas porque há uma verdade, ou meia verdade naquela retórica, os amigos do progresso terão de ter em conta os seus argumentos e, se possível, antecipá-los e aprofundá-los.

Com efeito, a tese da futilidade é o argumento utilizado por aqueles que se opõem a todas as reformas, com a desculpa do que o que é preciso é uma Revolução. É o eterno adiamento da luta pela justiça, lapidarmente resumido por Alain: "Os Direitos do Homem suspendem o direito até que termine a guerra pelo direito. Assim, todos estão de acordo, e a discussão académica condu-los a discutir tão-só as nuances."

Por outro lado, negar todo e qualquer efeito perverso é presumir que os homens dominam o conhecimento de todas as consequências dos seus actos, o que está longe de ser verdade. Mas Hirschman cita Racine, para nos precaver contra o vício oposto, de tudo querer prever:

"Tant de prudence entraîne trop de soin. Je ne sais point prévoir les malheurs de si loin." (Andromaque)

A outra ideia depende, como é óbvio, da real importância das medidas em curso e de existir uma verdadeira incompatibilidade.

Em distinguir, pois, a falácia por detrás da razão aparente é que está a arte do polemista.


S. Marcos (José Ames)

IRREALIDADE


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"(...) contemplando tudo isto, dizia, com que gozo de intuição me subia aos lábios da consciência este grito de redenção: mas nada disto é real!"

"O Livro do Desassossego" (Fernando Pessoa)

O poeta refere-se ao espectáculo das ruas e das janelas iluminadas num passeio nocturno.

É quando os sentidos entram numa espécie de abstinência e o mundo como que se esconde do olhar, deixando apenas o perfil das coisas e a memória da luz, que melhor vivemos esse instante em que a realidade dum começo de tudo pode ser criada.

quarta-feira, 22 de novembro de 2006

ZERO VALORES


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De que valores fala Eduardo Prado Coelho no seu artigo de hoje, no "Público", em polémica com Mário Pinto?

Receio bem que esteja a sujeitar as palavras a mais uma desvalorização. Se tudo é valor, não há valores.

A versão (sobre o aborto) de MP seria "extremamente discutível e sem qualquer apoio científico".

Quero crer que sim. Mas desde quando a crença num valor, que não existe entre as coisas, nem pode ser medido, tem de ser validado pela ciência?

Estamos a falar do sentido da vida, da acção e da moral, e não de simples factos.

Talvez que a pergunta que espoletou (e não, como se costuma dizer, despoletou) esta profissão de fé relativista, e que é: "Queremos mesmo valores?" não tenha sequer sentido, porque significa perguntar a um homem sem fé se quer ou não tê-la.

Nem todos os imperativos categóricos do mundo permitirão criar um valor, visto que só (mas não é nada de somenos) poderão ser úteis e dar lugar a leis razoáveis.

E, ao contrário do que diz EPC, julgo que a ausência de valores, longe de ser um valor, é própria das almas mortas.

terça-feira, 21 de novembro de 2006


"Demi-rêve" (José Ames)

segunda-feira, 20 de novembro de 2006

AS OSCILAÇÕES DE HEITOR


Hector dissuaded from battle
engraving by James Fitler (dates unknown), 1795
after painting by Thomas Kirk (1765–1797)


"Este castigo dum rigor geométrico, que pune automaticamente o abuso da força, foi o primeiro objecto da meditação dos Gregos.

(...) Talvez seja esta noção grega que subsiste, sob o nome de karma, em países do Oriente impregnados de budismo; mas o Ocidente perdeu-a e já nem sequer tem, em nenhuma das suas línguas, palavra que a exprima; as ideias de limite, de medida, de equilíbrio, que deveriam determinar a condução da vida, já só têm um uso servil na técnica."

"A Ilíada, ou o poema da Força" (Simone Weil) in " A Fonte Grega" (Livros Cotovia)


A palavra e a meditação sobre ela nas tragédias nunca impediram o abuso da força.

O mesmo homem pode, num momento sentir todo o peso do destino, como Heitor, no exemplo de Simone, e, no outro, embriagado pelo sucesso, ultrapassar os limites da prudência.

E se é verdade que a sabedoria do passado não se perdeu completamente, porque existe ainda nos livros, a multidão perdeu o contacto com ela.

Hoje, graças aos triunfos da Ciência, dir-se-ia que a ideia que prevalece nas massas é que, pelo menos para a espécie, não há limites e que a noção de força e a do seu abuso nem sequer fazem sentido para o Homem.


Alfama (José Ames)

domingo, 19 de novembro de 2006

AS RUGAS DA LEI


Jean-Jacques Rousseau (1712/1778)

"É por esta razão que as leis, longe de enfraquecerem, adquirem sempre nova força num Estado bem constituído: a antiguidade de dia para dia as torna mais respeitadas; quando vão sendo esquecidas à medida que envelhecem, isto apenas prova que já não existe o poder legislativo e que o Estado morreu."

"O Contrato Social" (Jean-Jacques Rousseau)


Estamos a viver demasiado depressa para as leis não envelhecerem antes de terem tempo de granjear o respeito que é devido à longevidade.

Rousseau, que não tinha ainda visto uma lei menos má ser substituída por outra, às vezes, muito pior, só porque mudou o partido que está no poder, imaginava uma racionalidade no Estado que hoje não existe.

A mudança permanente arrasta o esquecimento, que não chega a ser um juízo sobre o passado.

terça-feira, 14 de novembro de 2006

Tomar (José Ames)


quinta-feira, 9 de novembro de 2006

TEIAS


www.bubbleshare.com/album/43010/slideshow


Muitos dos que escrevem em blogues tiveram que vencer um preconceito contra a efemeridade e a falta de títulos de glória deste tipo de escrita.

Esses, trocaram o "escrever para a gaveta" ( sonhando, talvez, com o destino do baú de Pessoa) pelo eco imediato da sua palavra.

Como diz, J. Pacheco Pereira, há de tudo no ciberespaço, como no quiosque da esquina.

O que há de novo aqui, talvez só comparável à revolução provocada pelo advento da imprensa, é este informalismo louco, ainda à procura duma "razão", que vai no sentido da utopia democrática e cujas raízes crescem mais depressa do que os machados que as pretendem cortar.


Porto (José Ames)

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

O OZONO DEMÓTICO



- E, claro, o ozono é cada vez menos!

Ouvi, ao passar, esta frase incrível numa conversa entre dois velhos, à beira-mar debatendo o estado do mundo.

A velhice gosta de pintar o futuro com cores negras. É uma maneira, para ela, de amortecer o choque duma partida anunciada.

Mas, a ouvir o secretário-geral da ONU, estes anciãos têm razão:

"A comunidade científica, cujo consenso é já claro e indiscutível, está cada vez mais convencida de que a situação é alarmante." (Jornal "O Público" de hoje)

Kofi Annan refere-se às alterações climáticas, que também fazem correr Al Gore, e acaba exortando os povos a "adoptar um modelo de desenvolvimento mais seguro e sensato."

Mas, ao contrário de outras ameaças, como a da sida, a mudança não está directamente ao alcance dos indivíduos. Depende, sobretudo, das grandes empresas e dos seus poderosos lobbies, e elas preocupam-se tanto com ozono, como as Tabaqueiras se preocuparam durante décadas com a saúde dos fumadores e colaterais.

Além disso, não adiantará muito escrever em cada bomba de gasolina, por exemplo, que estamos a destruir o futuro.

Era preciso que todos víssemos na "radiografia" do ozono o nosso próprio destino.

segunda-feira, 6 de novembro de 2006

XEQUE À RAZÃO



Mário Pinto fala hoje no "Público" em razão cómoda, a propósito da chamada pós-modernidade. E diz: "(...) Estas fracturas, porque não são racionais, mas comodistas, usam os argumentos da comodidade e da retórica e fogem às discussões verdadeiramente filosóficas e científicas. Repare-se, por exemplo, que os defensores do aborto voluntário livre não usam os argumentos da ciência e da filosofia; mas apenas os da comodidade e da demagogia. Aí reside a sua força e a sua fraqueza."
Em "Familiaris Consortio", de 1981, João Paulo II referia-se a uma "mentalidade contraceptiva" tendo em vista, não o "projecto de Deus", mas "o próprio bem-estar egoístico".

É difícil não reconhecer que estas posições, no seu tradicionalismo e, até, anacronismo, são hoje quase a única barreira à completa relativização dos valores que tão grande repercussão tem na nossa vida quotidiana e que caracteriza a crise geral da nossa sociedade.

E o que se passa é que todos os que não são incondicionais dessa mudança (não se sabe no sentido de quê) se encontram mais ou menos desarmados para lutar contra uma tendência osmótica e avassaladora.

Ora, nem todas as épocas merecem um filósofo como Kant, e talvez a crítica que nos é hoje possível não venha da própria Razão (que é capaz de negar, mas não de reafirmar, como diz o articulista), mas do Passado que, mais do que nunca, é urgente compreender.


"Corrida" (José Ames)

sábado, 4 de novembro de 2006


Douz (José Ames)

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

O TANDEM


Como disse António Dornelas, ontem na televisão, a UGT nasceu dum acordo entre dois partidos políticos.

Apesar desse nascimento não lhe prometer um grande futuro e de não ser o melhor atestado de independência, nunca a propósito dessa Central se falou em "correia de transmissão", ao contrário da Intersindical que nasceu sem a bênção do poder estabelecido, embora sem a espontaneidade nem a assepsia partidária que alguns puristas desejariam.

Hoje, as duas confederações estão muito diferentes do que foram nesses tempos de paixão colectiva e de grande divisão dos trabalhadores.

E pode dizer-se que o seu parto artificial não marcou o destino da UGT, nem a naturalidade do outro criou qualquer tipo de virtuosa fatalidade na grande concorrente.

Mas cada uma das centrais desenvolveu um estilo inconfundível que, aliás, está bem representado na personalidade do respectivo secretário-geral.

A UGT adopta, normalmente, uma pose de responsabilidade que faz com que muito facilmente se encontre do lado das posições oficiais, ou demonstre maior compreensão em relação a elas.

Podíamos chamar a esta política de realismo, que constata a relação de forças e se adapta à gestão do seu campo de manobra.

Mas é bom de ver que a política não é isto ( a existência do "Grande Animal" platónico será sempre um argumento a favor da imaginação e do "ruído", contra a pura racionalidade) e que o sindicalismo pode morrer desta falta de horizonte, sufocado pelo colete dos factos, da existência, do que tem de ser, da força maior.

A outra central é o contrário de tudo isto.

Irrealista, chegando a propor medidas impraticáveis no actual sistema político e até contraproducentes, sem uma mudança no quadro internacional da nossa economia, voluntariamente ignorando as regras do capitalismo e deixando para a concorrente o bom-senso e os custos de toda a negociação, sempre tem praticado um sindicalismo contestatário.

Com isto, a motivação, a esperança e a utopia ao alcance das massas que influencia.

Tão acentuadas diferenças não nos devem, porém, esconder o facto de se ter objectivamente instaurado uma frutuosa divisão do trabalho dentro do sistema bi-confederativo. A ponto de já não se compreenderem uma sem a outra. Cada central é a caução da outra.

Porque o realismo se auto-censura e acaba por favorecer o status quo, precisa de ter em frente uma força que experimente os limites e exerça uma permanente tensão. E essa força crítica poderá ser tanto mais livre e ligeira, quanto o seu prosaico complemento for prisioneiro das formas e carregar o peso dos compromissos.

quinta-feira, 2 de novembro de 2006

AS ESPINHAS DA GRAMÁTICA


"Tenho sido contactado por alguns professores a propósito da TLEBS. A TLEBS é a Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário, adoptada pela Portaria n.º 1488/2004, de 24 de Dezembro, que só deveria entrar em vigor após três anos de duração da experiência pedagógica. Mas, em Março deste ano, o Ministério da Educação enviou às escolas uma circular determinando que a TLEBS constitua uma referência no tocante às práticas lectivas, à concepção de manuais e aos documentos produzidos em matéria de ensino e divulgação da Língua Portuguesa."

Vasco Graça Moura ("Diário de Notícias")


As modas, apesar de voláteis, estão longe de ser inócuas, como o prova o cortejo de jovens anorécticas cultoras do seu esqueleto.

Mas a pior das modas é a que atinge os órgãos do Estado, mesmo com algumas décadas de atraso.

Ideias que entusiasmaram uma geração de intelectuais e que sofreram já a necessária refocagem crítica, como o estruturalismo e a linguística aplicada, continuam a chegar como se fossem a última palavra e a verdade insofismável ao Ministério da Educação.

E temos o horrendo TLEBS, a nova Nomenclatura Gramatical Portuguesa, que promete separar de vez as gerações futuras da sua língua.

À força de dissecação e análise despromoveu-se uma língua a viva a sistema cadaveroso e porque se quer deixar uma marca indelével na pedagogia ( o que me lembra a sanha reestruturadora de alguns gestores de empresas), deixaram-nos um prato de espinhas intragável.

"Nada se cria, nem nada se perde": o que se lê tem de se falar ou escrever de algum modo. E o que nos deu um momento de vaidade por partilharmos as ideias duma vanguarda, tem de se traduzir em pedagogia revolucionária.


(José Ames)

quarta-feira, 1 de novembro de 2006


Lisboa (José Ames)