segunda-feira, 30 de novembro de 2009


Moura (José Ames)

ELA USAVA UMA FITA AMARELA



A filha do comandante do forte (Joanne Dru) pôs uma fita amarela, mas não se sabe por qual dos pretendentes se vai decidir. Há pelo caminho muitos amuos e equívocos. O velho capitão (John Wayne) conta os dias para a reforma, mas ninguém acredita que lhe agrade a sua nova vida na Califórnia. No último dia de serviço, conduz a sua patrulha numa manobra nocturna que deixa sem cavalos os jovens guerreiros das tribos aliadas desde o desastre de Custer. Ele sabe que esses homens se sentiriam humilhados por combaterem a pé. Poupam-se os mortos de um lado e do outro e a paz ganha mais um dia, talvez decisivo. É a sabedoria da experiência. No dia seguinte ruma para o Oeste. É interceptado pelo sargento Tyree (Ben Johnson) ao pôr-do-sol, com uma mensagem das chefias militares a nomeá-lo batedor com o posto de tenente-coronel. Era o melhor happy-end que se podia imaginar. Mas nenhum casamento pode prometer a felicidade, nem nenhuma promoção, na idade do capitão Brittles, pode prometer uma longa vida.

As catedrais do Monument Valley estão sempre presentes, por muitos quilómetros que faça a cavalaria. Eterno anfiteatro da tragédia, elas perfilam-se nos momentos de perigo, quando as caravanas são perseguidas pelos índios, ou nas cenas de religioso recolhimento junto à campa da desaparecida. A emoção está constantemente à flor da pele, sem nunca ser piegas, como quando Brittles saca timidamente dos óculos ou dá uma palmadinha de conforto quase imperceptível. De resto, é uma sensibilidade temperada pela truculência duma personagem como a representada pelo inenarrável Victor McLaglen.

A paisagem é poesia pura. Como a via láctea levantada do chão pelos cavalos, a silhueta das tendas, a coreografia dos homens e dos animais no deserto.

Chega-se ao fim com o sentimento de que a utopia afinal existe… nos filmes de Ford.

domingo, 29 de novembro de 2009


(José Ames)

A DIETA


http://setimodia.files.wordpress.com


"A inspiração literária helénica deve ser conjugada com o importante substracto judaico. Ainda hoje se diz que 'o judaísmo se aprende comendo' (S.Di Segni). Partindo do que está escrito na Lei (Lev 11;Dt 14) e na tradição, pode dizer-se que as escolhas alimentares de um membro do povo de Deus deviam ser consideradas como fundamentos da sua identidade cultural e religiosa. De facto, não podemos esquecer que o primeiro mandato que Deus estabeleceu para Adão e Eva, no relato do jardim, foi de categoria alimentar ('Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás de morrer.')."

"A Leitura Infinita" (José Tolentino Mendonça)


Desde a língua que se aprende com o leite materno, tudo o que passa a fazer parte da nossa substância deve ser "comido". Isto é, não deve seguir o caminho das ideias, mesmo quando "calam" fundo, convencendo primeiro a nossa razão, mas o da necessidade do corpo (que, evidentemente, aqui, não é o contrário da alma). Não é por acaso que se fala em fome para exprimir o desejo do outro. Como dizia Comte, é o inferior que explica o superior.

Não são os tabus alimentares do "Levítico" a mais perfeita separação das outras religiões?

A interdição de Jeová que atinge a "árvore do conhecimento" assume também a forma alimentar. Trata-se de um fruto particular. Por um lado, essa proibição é igual à que atinge os animais que não têm o casco fendido. Por outro, todavia, é uma manifestação do característico zelo do Deus dos Hebreus, porque o conhecimento significa considerar os outros deuses.

sábado, 28 de novembro de 2009


Portalegre (José Ames)

REBOBINAGEM


http://img.zdnet.com/techDirectory


"Ao pedir às crianças para lerem, estamos a pedir-lhes: 'Por favor, podes rebobinar o teu cérebro?', diz o neurocientista Bruce Mc Candliss, 'Elas têm um belo sistema visual e um sistema de linguagem e são capazes de dar sentido ao mundo. Então nós pedimos-lhes para reorganizar o seu cérebro de modo a que possam olhar para um estímulo visual particular, obtendo os sons da fala e os significados que lhe estão associados."

"Distracted" (Maggie Jackson)


Eis uma opinião especializada, que tem em conta o esforço necessário a um cérebro treinado para o mundo dos ecrãs e da iconografia para se adaptar à leitura de um texto e que se arrisca a vaticinar que o sentido do mundo moderno seria possível sem esse esforço.

Não exigirá a complexidade do mundo, pelo contrário, todas as capacidades da linguagem e do pensamento? Pode ser que antes da escrita o mundo pudesse ser decifrado por uma narrativa épica ou cosmológica, mas alguma vez um povo iletrado pode, hoje, ser "senhor" do seu destino?

O perigo não é que o texto seja substituível, mas que possa ser compreendido apenas por uma elite. E longe de ser considerado um atentado à democracia, esse privilégio será legitimado, muito provavelmente, pelo voto, só porque tal "privilégio" pode ter algo de um sacrifício para uma sociedade hedonista.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009


(José Ames)

A LÓGICA DE GAUDÍ


A Igreja da Sagrada Família (Gaudí)


"O Parque Güell, com as suas colunas naturalistas e o seu "teatro grego" em que o cimento foi empregado como material nobre, sugere-nos o que se disse de Gaudí em 1926 – que a sua arte era uma grande lógica. Também nessa época se notou na obra do arquitecto catalão uma influência de Claudel. Perante a Igreja da Santa Família, inacabada, e alguns edifícios de Barcelona, e também estes pavilhões e azulejos do Parque Güell, pensamos, com uma certa reserva, se se tratará de lógica na obra de Gaudí, ou se, mais exactamente, não será a exploração da lógica, a procura e desesperação da mesma, mas não o sentimento da lógica. Em Gaudí não há sentimento. É um homem que está à beira duma época petrificada, e que é invadido pelo pânico."

"Embaixada a Calígula" (Agustina Bessa-Luís)


Num artista, a lógica devia ser o menos importante. Nem mesmo uma "grande lógica" (grande porque não sabe ainda quais são os seus limites?) poderia iludir a necessidade de um fundamento "natural".

O maneirismo de Gaudí podia ser menos do que um estilo, se fosse a simples aplicação dum coeficiente de distorção das formas. Agustina é mais justa do que isso, ao falar de um sentimento da lógica que faltaria a Gaudí. Porque a lógica há-de ser sempre o túmulo da criação, mas a obra de Gaudí, na sua anomalia, não pode deixar de apontar para um fim pressentido.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009


Vila Franca de Xira (José Ames)

CIÊNCIA E MÍSTICA



"O reconhecimento central da teoria da relatividade é o de que a geometria… é uma criação do intelecto. Só quando esta descoberta for aceite, pode a mente sentir-se livre para lidar com as noções, consagradas pelo tempo, de espaço e de tempo, para pesquisar o espectro de possibilidades disponíveis para as definir, e seleccionar a formulação que esteja de acordo com a observação."

P.A.Schilpp, "Albert Einstein;Philosopher-Scientist" (citado por Fritjof Capra)


"Foi ensinado pelo Buda, ó Monges, que… o passado, o futuro, o espaço físico … e os indivíduos não são mais do que nomes, formas de pensamento, palavras de uso comum, realidades meramente superficiais." (Madhyamika Karika Vrtti)


A aproximação entre as tendências da Física moderna e a mística oriental que é o objecto do livro de Capra "The Tao of Physics" é, de facto, impressionante. Mas há uma diferença fundamental que é a que existe entre a ideia da acção e de aprender com a experiência e a aceitação passiva do mundo.

Se os paralelos existem, é preciso não esquecer que a ciência chegou ao seu actual estado de perplexidade através de uma problemática de interacção com o mundo e a mística propõe-nos, desde há milénios, a mesma resposta a todos os problemas: a de que eles são apenas uma aparência.

De modo que o conhecimento da ciência se baseia numa sucessão de erros superados, que é o que convém à infirmidade da nossa condição, enquanto que a verdade da mística é igual para todos os tempos e lugares e, por isso, parece mais divina do que humana.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009


(José Ames)

POLA X



"Pierre ou les Ambiguités" ("Pierre or the Ambiguities"), de Herman Melville, cujo acrónimo deu o título do filme de Leos Carax, "Pola X" (1999).

Pierre (Guillaume Depardieu), que alcançou a notoriedade com um romance de culto para a juventude, sob o pseudónimo de Aladin, vive com a mãe num castelo da Normandia e vai casar-se com Lucie.

Isabel, uma imigrante do Leste, vem fazer a sua vida dar uma volta de 180º, ao declarar-se sua irmã ( o pai, embaixador prestigiado, abandonara a criança à nascença). Estas revelações são feitas num bosque nocturno que o jovem atravessava, e a cena tem toda a compulsão de uma psicose. Pierre abandona tudo para se dedicar à irmã. A inversão da imagem paterna torna, aos seus olhos, toda a vida social uma impostura, e a desmistificação disso passa a ser o tema do seu próximo livro.

O casal, vivendo à margem de tudo, rapidamente se torna incestuoso. A cena de amor é esquálida para dar a medida da queda moral da personagem. Roído pela ambiguidade da sua situação (ter-se-á tornado o paladino de Isabel por causa da sua beleza? O mundo parece-lhe hipócrita e o crime do pai inexpiável porque o seu desejo reclama o "fim do mundo" para legitimar o incesto?), decai física e moralmente, entregando-se freneticamente à escrita. A câmara foca-o de costas nesse acto (Carax diz que é assim que vemos os génios a trabalhar). Mas Pierre ilude-se quanto ao valor do seu testemunho. As críticas arrasam-no. Um assassinato põe fim à história e separa para sempre os irmãos.

Uma cena de uma poesia selvagem ficará para sempre na memória: a morte da mãe (Catherine Deneuve), a cavalo de uma mota por dentro da noite espectral.

terça-feira, 24 de novembro de 2009


Aachen (José Ames)

OÁSIS



"Michel de Certeau fala justamente da violência como uma doença da linguagem, que transforma o texto em mercadoria e mero sintoma num sistema controlado de trocas. O texto é destituído de qualquer potencial transformador, e como, alojado num horizonte de insignificância, já nada diz, deixa assim todo o campo livre e legitimado para a afirmação prepotente e agastada dos vários poderes."

"A Leitura Infinita" (José Tolentino Mendonça)


Uma violência da leitura, decerto, que acompanha sempre a fixação de um sentido.

A ideia de texto é, assim, até à data, a última utopia. E, como tal, é indestrutível, porque não corre o perigo de se tornar um lugar físico. O perigo é, na verdade, a letra que fecha.

No caso da Bíblia, essa utopia favorece, evidentemente, uma certa dessacralização necessária à livre frequentação dos seus oásis.


segunda-feira, 23 de novembro de 2009


(José Ames)

ANGÚSTIA



"Não há dúvida que os encantos de uma pessoa suscitam menos frequentemente amor do que um comentário como: 'Não, esta noite não estou livre.'"

Marcel Proust (citado por Alain de Botton)


Este amor-desejo parece estar ligado à angústia que todos experimentamos quando nos sentimos desamparados, a um nível mais profundo do que o social. É como se o amor destituísse a monarquia do ego do seu significado e de toda a sua segurança.

O pequeno Marcel não conseguia adormecer sem o viático do beijo maternal. Pelo romance fora, ele procurará, sem êxito, transferir o poder desse talismã para outra pessoa.

Por isso, a personalidade de Albertine é menos importante do que o lugar que ocupa junto do narrador: o de abençoar e proteger a sua paradoxal independência. O objectivo de todos os seus esforços é encontrar o amor incondicional para sempre perdido, perante o qual a própria clausura da amiga deixaria de ser "egoísta".

domingo, 22 de novembro de 2009


Baleal (José Ames)

OS LIVROS


A Bíblia de Gutenberg


"Mais do que um livro, é uma biblioteca: pode ser lida como cancioneiro, livro de viagens, memória de corte, antologia de preces, cântico de amor, panfleto político, oráculo profético, correspondência epistolar, livro de imagens, texto messiânico, e colada a esta humana palavra… a revelação de Deus."

"A Leitura Infinita" (José Tolentino de Mendonça)


Antes de ter um nome, foi tradição oral. "A Bíblia foi leitura antes de ser livro." E quando passou a ter, ta biblia ("os livros"), diz o Talmud "que os anjos choraram nesse dia."

Toda a colecção põe o problema do seu fecho. Quantos livros poderiam ainda ser acrescentados e de quantos poderia prescindir, conservando o essencial? Porque o essencial não é a cronologia histórica, ficcionada embora, e os hiatos, as anacronias são permitidos.

A decisão de encerrar a colecção foi, por isso, arbitrária. A Bíblia continuaria a ser a Bíblia, sem "Números", ou sem o "Livro de Josias". Esse é o seu lado histórico, acidental, que é bem a imagem da imperfeição dos que escreveram os textos.

Mas esse conjunto de livros é, de facto, tão central na nossa cultura, (como foi Homero para os Gregos) que não se poderia dar a resposta de Laplace a Napoleão. A "hipótese" de Deus é tão evidentemente necessária que se poderia dizer que há um Deus "criado" pela Bíblia.

Citando Oscar Wilde, "a estes textos bíblicos (os Evangelhos) se deve tudo, a catedral de Chartres, o ciclo das lendas arturianas, a vida de S. Francisco de Assis, a arte de Giotto, a 'Divina Comédia' de Dante, o 'Romeu e Julieta' e o 'Conto de Inverno', 'Os Miseráveis' de Victor Hugo, 'As Flores do Mal' de Baudelaire, os intensíssimos mármores transparentes de Miguel Ângelo, a nota de piedade dos romances russos."

Só podemos dizer que isso tudo se deve a esses textos porque puderam dar força e inspiração a alguns (poucos) homens, os seus verdadeiros leitores, não só artistas, mas santos e condutores de homens.

Nesse sentido, a Bíblia teve os efeitos de uma doutrina sublime.

sábado, 21 de novembro de 2009



(José Ames)

O MUNDO DAS IMAGENS


Georges Méliès


"Não é o mundo que se converte em imagens, é o imaginário que se converte em mundo."

(Serge Dany)


As imagens não são da mesma natureza do mundo, mas são-no do imaginário. O que seria de admirar era que o mundo se prestasse a essa função, que pudesse iludir a necessidade da representação e da linguagem.

A consequência é que entre nós e o mundo existe a placenta que nos prende ao sentido. Todas as metáforas são, por isso, verdadeiras, todas as religiões são verdadeiras. Mas sempre naquele sentido "imaginário".

Mas atenção ao significado da palavra conversão. Terá havido, então, um tempo em que o mundo se transformava em imagens, que havia, portanto, um nexo necessário. Quando a placenta era tão fina que o mundo quase a atravessava.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009


Berlim (José Ames)

EMBAIXADA A UM LOUCO


Malcom McDowel em "Calígula"
(1979-Tinto Brass e Bob Guccione)


"Como dirigir-se a um imperador pálido das suas orgias, de cabelos pintados e fixo sorriso de mundano debilitado pelos vícios, como falar a um lugar-comum do poder temporal, sem que a banalidade toque as frases que saem dos lábios e o fracasso não se reflicta nos próprios olhos?"

"Embaixada a Calígula" (Agustina Bessa-Luís)


Tratava-se de convencer Calígula a abdicar da sua divindade para, em troca, prometer a submissão do povo judaico.

Ao escolher a embaixada de Fílon de Alexandria como título do seu diário de viagem, Agustina propõe-nos um enigma que me sinto tentado a decifrar, desde já (apesar de ainda não ter acabado de ler o livro). A empresa de Fílon não tem qualquer possibilidade de êxito, porque o imperador não é senhor de si próprio, nem por isso pode com ele resultar o conselho socrático do "Conhece-te a ti mesmo". O medo é o seu princípio: "Caio é o homem que cresceu no clima extraordinariamente adverso à liberdade.

Como poderemos ler esta "viagem a Itália" como a embaixada a um louco? Qual é o seu objecto? Suplicar a Itália, entidade mítica, que esteja à altura dos nossos sonhos? Que abdique das suas camorras e das suas berlusconices?

quinta-feira, 19 de novembro de 2009


(José Ames)

A ÚNICA VIAGEM



"Nenúfares" (Claude Monet)


"A única verdadeira viagem, o único banho de juventude, não seria ir ver novas paisagens, mas ter outros olhos, ver o universo com os olhos dum outro, de cem outros, ver os cem universos que cada um deles vê, que cada um deles é; e isso, nós podemos com um Elstir, com um Venteuil, com os seus pares, nós voamos verdadeiramente de estrelas em estrelas."

"La Prisonnière" (Marcel Proust)


A ideia de Proust é a de que um grande artista nos empresta outros óculos para ver o mundo. A grande pintura educa a nossa percepção e torna-nos sensíveis a realidades insuspeitadas.

Não imaginamos o choque que seria, sem isso, a adaptação do nosso modo de ver às incessantes transformações do mundo. Não podemos calcular o que seria não nos adaptarmos.

Como umas coisas arrastam outras, não seríamos levados a pensar uma realidade que já não existisse e não cometeríamos, por isso, erros fatais?

O cinema, por exemplo. Poderíamos "encaixar" a realidade virtual sem as suas histórias? Os mitos modernos têm quase todos essa origem. E, como na Grécia Antiga, não são histórias para adormecer. Talvez tenham a função reorganizadora do sonho que, mais do que prever o futuro nos mantém iguais a nós mesmos, ao que éramos no princípio, qualquer que seja a velocidade com que as coisas passam por nós.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009


Alcácer do Sal (José Ames)

O OUTRO LADO DA LUA


"Moon" (2009-Duncan Jones)


Pensamos logo no filme de Kubrick e naquela relação desconfiada entre David e Hal, o computador. Aqui, a aparente lealdade de Gerty (a voz é de Kevin Spacey) é a melhor maneira de salvar a missão.

Sam Bell está a duas semanas de regressar à Terra, depois de três anos de serviço na estação lunar, mas ele ainda não sabe que é um clone do original Sam Bell que já regressou há mais de uma dezena de anos. Não sabe também que a mulher com quem contacta em diferido já morreu e que o bebé que vê no monitor já é uma adolescente. É preciso que um "acidente" o dê como morto e que o novo clone, que já foi "acordado" e a quem foi feito o "download" do cérebro de Bell, decida averiguar o que se passou com o veículo sinistrado, recuperando o outro clone ainda com vida. Ora, não era suposto que os duplicados se encontrassem.

É curioso como a clonagem e o sistema de bloqueio das comunicações directas com a Terra (necessário para manter a ficção da actualidade) se revelam indícios de um sistema capitalista sempre igual a si mesmo. O recurso aos clones significa uma grande economia para a Lunar, a empresa que tem o monopólio da extracção do hélio 3 capaz de satisfazer 70% das necessidades energéticas da terra, evitando o transporte de astronautas.

O último clone de Bell acaba por "regressar", não se sabe a que casa, pois há um outro homem que ocupa já o seu lugar, e denuncia o embuste da empresa com a clonagem. Como é natural, as acções da Lunar caem a pique. Afinal, o segredo do outro lado da Lua é a eterna ganância.

terça-feira, 17 de novembro de 2009


(José Ames)

OBJECTIVIDADE


Werner Heisenberg (1901/1976)


"Recordo as discussões com Bohr que duravam muitas horas e iam pela noite dentro, acabando quase em desespero; e quando no fim da discussão eu ia sozinho passear pelo parque mais próximo repetia para mim próprio, uma e outra vez, a pergunta: Pode a natureza ser tão absurda como nos pareceu nestas experiências com os átomos?"

(Werner Heisenberg, citado por Fritjof Capra)


A ideia de Deus é a primeira resposta à questão do sentido do mundo. Einstein não pôs em causa essa ideia quando partiu do princípio de que existe uma harmonia no Cosmos para chegar a uma teoria que a salvava, quando já a mecânica de Newton não era, por si só, suficiente.

É como se não conseguíssemos pensar o detalhe, os objectos mais próximos, sem a coerência suposta da totalidade. Assim, talvez esse seja um problema da razão humana e não uma realidade.

Como, porém, já poucos defendem a possibilidade de um conhecimento objectivo do universo (sem ser connosco e para nós), a questão parece não ter qualquer importância.

A realidade objectiva não é um problema com que nos deparemos, pelo menos enquanto vivos…

segunda-feira, 16 de novembro de 2009


Londres (José Ames)

DEMAGOGOS



"Uma vez que o mentiroso é livre para acomodar os seus "factos" ao benefício e ao prazer, ou até simplesmente às esperanças do seu público, é de apostar que ele será mais convincente do que aquele que diz a verdade. Ele terá mesmo, em geral, a verosimilhança do seu lado, a sua exposição será mais lógica, para dizer assim, pois que o elemento de surpresa – um dos traços mais impressionantes de todos os acontecimentos – providencialmente desapareceu. Não é só a verdade racional que, na frase hegeliana, põe o senso comum ao contrário; muito frequentemente a realidade não perturba menos o interesse e o prazer."

"La crise de la culture" (Hannah Arendt)


É sabido que uma audiência gosta de ser confirmada nas suas opiniões, sobretudo naquelas de que não está segura, mas para aderir às quais já fez a maior parte do caminho. Por isso, o orador avisado baterá sempre nas mesmas teclas que é o som que o seu público quer ouvir e abster-se-á de novidades e de tudo o que possa trazer confusão aos sentimentos.

Os demagogos, ao procederem desse modo para arrastar a massa, jogam com a realidade um lance perigoso. Se se afastam muito dela, o poder sabe-lhes a pouco porque não tarda o ajuste de contas.

domingo, 15 de novembro de 2009


(José Ames)

A NOVA ORDEM DAS COISAS


http://blog.al.com/jdcrowe/


"É que a ordem das coisas nos faz sábios, enquanto que a ordem humana nos faz tolos. Nada se obtém das coisas pela eloquência; é preciso cavar, é preciso limar. O trabalhador do aterro regula-se pelo calhau e o marceneiro pela madeira, donde esta prudência dos ofícios. Pelo contrário, o comércio é regido pela eloquência, porque o comprador é sensível à eloquência. A multidão vai para as luzes como as borboletas e, como elas, ali se queima, porque somos nós que pagamos estas lâmpadas, estes cartazes, estas montras."

"Propos d'Économique" (Alain)


Este bom senso que julga a economia estará, por acaso, ultrapassado? Não se perdeu ainda mais, a relação entre o trabalho e o lucro?

As coisas com que trabalhamos são já, em grande parte, produzidas por máquinas que, embora continuem a ser "insensíveis à eloquência", fazem decerto um homem mais supersticioso (no sentido em que não conhece o princípio desses instrumentos senão como "utilizador") e mais crédulo do que o operário de Marx. O utilizador está muito mais próximo do camponês que lança as sementes à terra e se regula pelas estações, mas que não tem a mínima ideia do que se passa debaixo da terra.

A preponderância dos serviços e deste tipo de trabalhador-utilizador faz com que o espírito do comércio (do burguês, diria Alain) reine na economia. Dai a ruína adiada que faz a fortuna dos Madoff.

sábado, 14 de novembro de 2009


Aachen (José Ames)

CONHECIMENTO



"Se a física nos conduz hoje a um mundo que é essencialmente místico, ela regressa, num certo sentido, ao seu começo, 2500 anos atrás. É interessante seguir a evolução da ciência ocidental ao longo do seu caminho em espiral, principiando pelas filosofias místicas dos primeiros Gregos, erguendo-se e desdobrando-se num impressionante desenvolvimento do pensamento intelectual que se afastou cada vez mais das suas origens místicas para desenvolver uma visão do mundo que se encontra em agudo contraste com a do Extremo Oriente. Nos estádios mais recentes, a ciência ocidental está finalmente a superar esta visão e a voltar à dos antigos Gregos e das filosofias orientais."

"The Tao of Physics" (Fritjof Capra)


Suponho que este pensamento de um regresso da ciência ocidental às suas origens continua a ser polémico, vinte anos depois da publicação do livro de Capra.

Ainda hoje se considera que a ciência vai numa direcção oposta à da metafísica, numa perspectiva imanentista, e o materialismo, dialéctico ou não, não se sente beliscado pelos paradoxos quânticos ou pelas profissões de fé de eminentes cientistas que não estão longe do deísmo ou do panteísmo.

A ideia da espiral para imaginarmos a volta de 180º da ciência parece-me feliz. Porque se para os Gregos a filosofia começava com o espanto (Thauma), é a qualquer coisa de parecido com esse sentimento que nos leva o pensamento da complexidade da chamada matéria e da transcendência do universo.

Mas ao voltar, sob outra forma, ao espírito religioso, a ciência não poderia já reclamar-se de um verdadeiro conhecimento…

sexta-feira, 13 de novembro de 2009


(José Ames)

A GRANDEZA DAS MANIAS


Marcel Proust (1871/1922)


"'Vou frequentemente – e mal – à casa de banho', diz provavelmente ao mesmo médico. A prisão de ventre é quase permanente, aliviada apenas por um laxante forte de duas em duas semanas, que costuma provocar-lhe dores de barriga. Como já foi referido, o acto de urinar não é mais fácil, sendo acompanhado por um ardor intenso, e nem sempre é mesmo possível. Os resultados das análises revelam um excesso de ureia e de ácido úrico: 'Pedir clemência ao nosso corpo é como discursar perante um polvo para quem as nossas palavras não poderão ter mais significado que o som das marés.'"

"Como Proust Pode Mudar a Sua Vida" (Alain de Botton)


Proust teria detestado que se interessassem pelas suas maleitas por causa do seu génio, porque, como ele diz, na polémica contra Sainte-Beuve, a biografia não pode explicar a obra, e esta curiosidade pelas doenças e pelos maneirismos de um escritor peca, talvez, por idolatria literária.

Não importa. A verdade é que o delicioso livro de Botton nos permite validar a tese contrária e tirar um sumo prazer das relações "espúrias" da vida de Marcel com o seu romance.

Ninguém demonstrará, por certo, o quer que seja (se nem as influências literárias escapam ao cadinho de onde sai um novo molde), nem é razoável que se pense numa relação de causa e efeito, mas a intuição poderá, porventura, levar-nos longe nesse domínio. O que tem a ver , por exemplo, o hábito de deixar gorjetas sumptuárias (Botton fala num caso de 200%) com a maravilhosa descrição que começa pelas maneiras de adormecer ("Longtemps, je me suis couché de bonne heure")?

quinta-feira, 12 de novembro de 2009


Veneza (José Ames)

O ENTERRO DO CONDE DE ORGAZ



"O enterro do Conde de Orgaz" (El Greco)


"(…) então, tal como o Cristo esplendoroso e alvíssimo do Enterro de Orgaz, aparece-nos e pergunta-nos alguma coisa. Já não somos nós que entendemos a arte, que estudamos as épocas, que valorizamos, que pensamos, mas sim nós que somos obrigados a responder. A quê, a que respondemos nós? Nunca o saberemos talvez. Com os seus vestidos lavados da cor terrestre, o Cristo suspende sobre nós o olhar firme e sem arrebatamento algum. Então vemos que estamos nus, andrajosos e cobertos de poeira; vemos que somos pecadores sem o peso da culpa, apenas a fadiga dela; vemos que do fundo das nossas penas e perplexidades não somos mais do que figuras que, sob falsas cavilações, se exilam da contemporaneidade do milagre."

"Embaixada a Calígula" (Agustina Bessa-Luís)


Agustina quis ver uma pergunta no Cristo exangue que do alto da pirâmide humana nada contempla, mas tudo dá a ver, como no manuscrito desenrolado do que "já estava escrito".

Como diletantes da arte, ou especialistas das cláusulas, trazemos a nossa verdade circular.

Mas esta alegoria da vida e da morte confronta-nos com uma revelação. Cristo diz-nos como as coisas se passam, ele, "com os seus vestidos lavados da cor terrestre", parece o resultado duma evaporação da cena em baixo, que transformasse a riqueza das vestes dos fidalgos, as suas rendas e brocados, na nudez de Job.

E a pergunta nasce de tudo isto fazer sentido e de tornar absurdas as nossas "cavilações". Porque se é assim, deveríamos mudar as nossas vidas.

Um dia destes, vi no altar do Bom Jesus, em Braga, todo um teatro de figuras paradas em volta de Cristo. É uma outra versão da história de Pompeia. A erupção do Vesúvio parou os gestos. Katherine (na "Viagem a Itália") não suporta o significado "pessoal" dessa catástrofe antiga. Deveria ser este o milagre?

quarta-feira, 11 de novembro de 2009


(José Ames)

DIALÉCTICA DA POBREZA E DA RIQUEZA




"Como qualquer obstáculo que nos impede de possuir algo [...] a pobreza, mais generosa que a opulência, dá às mulheres muito mais do que a toilette que não têm dinheiro para comprar: o desejo dessa toilette, que cria um conhecimento verdadeiro, pormenorizado, profundo, dessa roupa."

(Proust, citado por Alain de Botton)

Estou a ouvir o "amigo dos pobres" repontar que a estes faltam coisas mais essenciais do que o vestido que a duquesa pode dependurar no seu cabide, logo que lhe apeteça, o que é justo num certo sentido, mas aqui fundamentalmente errado, porque a pobreza de Albertine é relativa à abastança de Oriane de Laumes. E é muito verdade que o desejo desperta em nós um interesse apaixonado que nos leva a um quase maníaco inventário das qualidades do seu objecto, o que é muito mais instrutivo do que qualquer coisa que já dissolvemos num hábito.

Esta paradoxal superioridade da "pobreza" faz lembrar a do escravo, em relação ao seu senhor, na dialéctica hegeliana.

É por isso que um espírito apaixonado sempre encontra aspectos novos de que se alimenta o seu desejo, enquanto que o indiferente já se aborrece só de pensar naquilo que julga conhecer. Como Matilde de La Mole, no "Vermelho e o Negro", que "s'ennuyait en espoir" (a expressāo tão admirada por Alain).

terça-feira, 10 de novembro de 2009


Batalha (José Ames)

A INCERTEZA GERAL


Madame Émile Straus (1850/1926)


"'Não zombo do seu amigo, madame, garanto', afirmou Proust, que não parara de ridicularizar Ganderax desde o início da carta, 'Sei como é inteligente e culto. É uma questão de "doutrina". Este homem que é tão céptico, tem certezas gramaticais. Infelizmente, Madame Straus, as certezas não existem, nem mesmo as gramaticais […] apenas a que comporta o cunho da nossa escolha, do nosso gosto, da nossa incerteza, do nosso desejo e da nossa fraqueza pode ser bela."

(Carta de Marcel Proust à viúva de Georges Bizet, Madame Straus, citada por Alain de Botton)


A Teoria da Relatividade tinha que surgir no século XX, pois esta carta, escrita por Proust em 1908, é um eco perfeito daquele paradigma científico na literatura.

Aqui já não se manifesta o zelo cartesiano contra a aparência das coisas. A incerteza geral é a lei e nenhuma dúvida metódica pode salvar-nos dela.

Em vez disso, o único absoluto, que não pode ser atacado pela análise, nem por nenhum confronto com os factos, pois é o contrário duma lei: o da beleza. Aí, o individual e único, o pessoal e o que é "apenas" desejo encontram directamente o universal.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009


(José Ames)

ÓRBITA INESPERADA


http://www.martinfrost.ws


"(…) a objectividade da ciência natural e social não se baseia num estado de espírito imparcial nos cientistas, mas apenas no próprio carácter público e competitivo do empreendimento científico e, assim, em alguns dos seus aspectos sociais."

"O mito do contexto" (Karl Popper)


Por um lado, o conhecimento científico nunca é subjectivo ou controlado individualmente (se Einstein tivesse guardado a sua teoria na gaveta). Passa-se quanto a esse conhecimento o que se passa com a língua. Ela é comunicação e não se compreenderia o absoluto solilóquio.

Por outro, o problema da verdade separa-se das suas origens metafísicas e torna-se uma espécie de acordo sobre o conhecimento. A verdade engendra o erro e o erro a verdade, se considerarmos a história das ciências como um processo.

A comunicação está, pois, no centro do conhecimento científico. Foi, aliás, o extraordinário desenvolvimento das comunicações, no nosso tempo, que fez entrar a ciência em órbitas inesperadas, também percorridas por outros planetas que se julgavam fazer parte de outra galáxia.


domingo, 8 de novembro de 2009


Roma (José Ames)

A BELEZA



"(…) a Beleza que é teológica; sim, é uma virtude teologal, a quarta, a secreta, a que decorre de uma para outra, das três conhecidas."

Cristina Campo


Tal como queria Simone Weil. Isso deveria ser uma evidência para os crentes, se o mundo é Criação. O problema é o do significado dessa inspiração, se assim lhe podemos chamar, para aqueles que acreditam na única realidade da "matéria".

Não há homem, por mais bruto, que não seja sensível a um qualquer grau da beleza. O que pode, pois, querer isso dizer?

Será um sentimento próximo daquele, mais intelectual, que produz a simetria?

sábado, 7 de novembro de 2009


(José Ames)

KANT E A EDUCAÇÃO


Immanuel Kant, lecturing to Russian officers — by I. Soyockina

"O homem só pode tornar-se homem pela educação. Ele não é mais do que aquilo que a educação faz dele. É preciso notar bem que o homem só é educado por homens e por homens que igualmente foram educados. É por isso que a falta de disciplina e de instrução que se observa em alguns homens faz destes maus educadores para os seus alunos."

"Réflexions sur l'éducation" (Kant)


Kant lamenta que os homens superiores só pensem neles próprios e não queiram associar-se a uma experiência de educação (reunindo os melhores no projecto educativo) que faça a natureza "dar mais um passo para a sua perfeição."

Podíamos dizer que o filósofo exagera a importância da educação institucional. Afinal, os melhores podem sê-lo apesar dessa educação, a qual, especialmente no nosso tempo, não tem a mínima ideia do que deveria ser o aperfeiçoamento da natureza em que pensava Kant.

Mas estamos condenados a ter os maus alunos formados por uma escola "sem disciplina" e sem verdadeira "instrução" tornarem-se nos professores dos alunos de amanhã.

Haverá função da sociedade em que a falta da reflexão filosófica e da própria utopia se façam mais sentir do que na educação?

Decorre da própria psicologia da idade dos educandos que a simples reprodução do conhecimento nunca seja suficientemente estimulante. Envolver a imaginação dos alunos numa qualquer ideia de perfeição, como queria Kant, parece ser, pois, uma das primeiras necessidades.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009


Vairão (José Ames)

O REAL E A REPRESENTAÇÃO


Etty Hillesum (1914/1943)


"Porque o grande obstáculo é sempre a representação e não a realidade. A realidade, lidamos com ela com todo o sofrimento, todas as dificuldades que a ela se prendem - assumimo-la, carregamos com ela aos ombros e é aguentando que cresce a nossa capacidade de resistência. Mas a representação do sofrimento - que não é sofrimento, porque este é fecundo e pode tornar-nos a vida preciosa - é preciso quebrá-la. E quebrando essas representações que aprisionam a vida detrás das suas grades, libertamos em nós mesmos a vida real com todas as suas forças, e tornamo-nos capazes de suportar o sofrimento real, na sua própria vida e na da humanidade."

Journal (Etty Hillesum)


Neste caso, o inimigo não é só a imaginação que nos impõe um sofrimento desnecessário e estéril, de todos os pontos de vista. Porque temos de incluir algo daquilo a que chamamos a nossa visão do mundo, na medida em que ela é afectada pela perspectiva egocêntrica. Com efeito, se nos sentimos tantas vezes inclinados a confundir a "representação" com a vida real, é porque precisamos de exagerar a nossa própria importância (Alain diria porque todos fomos crianças). A tarefa de conquistar a vida real (se não preferirmos o pessimismo) é de todos os momentos e, quando já alguém disse que o principal da educação é desentoxicar- nos da "massagem" dos media, a separação de águas entre a representação e a realidade parece ainda mais primordial.