sexta-feira, 19 de maio de 2017

(José Ames)

PASSAR AO LADO


Henry James (1843/1916)


(...) Assim o vira ela enquanto ele não via; e assim ela servira agora para lhe trazer a revelação da verdade. E a verdade nítida e monstruosa era que, enquanto esperava, o seu destino era precisamente esperar. A companheira da vigília percebera-o a dada altura e oferecera-lhe a oportunidade de contrariar o destino. Mas nunca é possível contrariar o destino. No dia em que ela lhe dissera que o destino chegara, vira-o ficar estupidamente a olhar sem ver a saída que ela lhe oferecia."

"A fera na selva" (Henry James)

A dor no rosto do outro homem, uma dor verdadeira, a ferida de uma paixão, foi o clique que fez sair John Marcher do seu sono.

Até ali, ele pensava que visitar aquela campa, uma vez por mês, lhe daria a consolação de, pelo menos, ter vivido. Mas que espécie de vida tinha sido a sua que lhe permitia continuar como se ainda estivesse à espera e como se, realmente, nada se tivesse passado?

Este extraordinário conto mostra que o juízo de uma vida pode ser o resultado de uma história "mal contada". Podemos passar ao lado da verdade, como um fantasma, se a revelação não acontecer. Mas a revelação, que volta a rodar o filme para um olhar outro e tudo menos fiel dar-nos-á a verdade? Ou é a ideia do Amor que, de facto, nos julga, para grande felicidade dos romancistas?

Num único momento, fatal momento, a intensidade da dor no rosto do desconhecido, pôs a nu a insignificância da sua, o artifício que construíra à volta da sua cicatriz.

A vida toda baqueou sob a sentença. Mas pode o Amor julgar?

segunda-feira, 15 de maio de 2017

(El Escorial)

A FRONTEIRA DO CINEMA


"Close-up" (1990-Abbas Kiarostami)



Em "Close-up", Hossain Sabzian, um jovem desempregado, procura no cinema a fuga da realidade, não alienando-se na sala escura durante um par de horas, mas levando até às últimas consequências a "inspiração" de se fazer passar pelo realizador Makhmalbaf, primeiro, num autocarro, com uma mulher que conhece os seus filmes e a seguir junto da família dela que não precisa de ser convencida a protagonizar um novo filme.

Depois de alguns dias de falsos ensaios, é finalmente desmascarado e conduzido ao tribunal. Aí arrepende-se e obtém o perdão das suas vítimas.No final, o impostor cinéfilo e o próprio Makhmalbaf visitam a casa dos mistificados sob o signo da reconciliação.

Este caso estranho é inspirado na vida real, sendo quase todos os actores pessoas que viveram os acontecimentos. A alucinação do cinema normalmente não resiste à luz do dia. Mas havia no jovem Sabzian uma fronteira por definir. Os seus problemas familiares e a incapacidade de encontrar trabalho durante o sua "ausência" tornaram-se um simples guião e a sua encarnação de Makhmalbaf valeu-lhe o respeito daquela família e a experiência, para ele inédita, de ser obedecido.

O caso confunde-se, evidentemente, com a loucura. É talvez o cinema, arte de fazer de conta que visivelmente fascinava mistificados e mistificador, levado a sério de mais.

domingo, 14 de maio de 2017

(José Ames)

A INSIGNIFICÂNCIA

The poster for Sunshine, Danny Boyle's new science-fiction thriller



"

Agora sabemos que se a Palavra "era no princípio", também pode ser no fim: que existe um vocabulário e uma gramática dos campos da morte, que as detonações termo-nucleares podem ser designadas como "Operation Sunshine". Seria como se a quintessência, o atributo que identifica o homem - o Logos, o órgão da linguagem se tivesse quebrado dentro das nossas bocas."

"Paixão Intacta" (George Steiner)


O movimento da crítica (pós-estuturalista, desconstrucionista, etc.) converteu todos os textos, sagrados ou não, em pre-textos. Nessa tarefa demolidora, todos os que se interessam pela literatura participaram com um prazer perverso, porque era como se não houvesse mais nada para além dela.

Steiner acrescenta uma outra pressão, de ordem técnica, sobre a palavra escrita. "A cultura de massas, a economia do espaço e do tempo pessoal, o desgaste da privacidade, a supressão sistemática do silêncio nas culturas consumidoras de tecnologia, a expulsão da memória (do hábito de decorar) dos métodos de aprendizagem escolar, originam o eclipse dos actos de leitura e do próprio livro."

De certo modo, a falta de um fundamento, de um sentido verdadeiro que torna irrefutáveis todas as apreciações sobre um texto e desqualifica até a divisão entre o bom e o mau gosto, tem um efeito paradoxalmente semelhante ao do regime canónico e teológico que vigorou na Idade Média.

A segurança dos fundamentos levou a que toda a produção fosse uma glosa interminável, auto-replicante, e sempre conotada a uma verdade original. O actual "colapso filosófico-psicológico" permite uma igual pletora da produção, que já não precisa de se justificar, que nos convida "a ganhar confiança sólida no peso crescente - isto é, estatístico - da concordância histórica e da persuasão prática. Os latidos e as ironias do desconstrucionismo ressoam na noite, mas a caravana do "bom senso" passa." (ibidem)

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Bustelo 

CADÁVERES EXCELENTÍSSIMOS

"Cadaveri eccelenti" (1975-Francesco Rosi)

Voltaire, nas palavras do Presidente Riches (Max Von Sydow), começou o ataque à magistratura. Foi o primeiro a lançar a dúvida sobre a sua "infalibilidade".

O juiz explica que não existe tal coisa como o erro judiciário. Porque as condenações e o valor do exemplo são imprescindíveis à ordem. É o princípio da dizimação. A inocência ou a culpa individuais nunca são a questão.

Nesta parábola sobre a Itália dos anos setenta, a partir dum texto de Leonardo Sciascia, vemos uma dessas vítimas do sistema judiciário transformar-se num assassino em série (a série é constituída por todos os magistrados que tomaram parte no seu processo).

Apesar da "chave" ser de fácil leitura para o inspector Rogas (Lino Ventura), o sistema dos partidos impõe a sua agenda e a sua interpretação, no sentido de uma viragem à direita e da repressão dos grupúsculos de esquerda.

Este cenário, que era credível nos tempos das Brigadas Vermelhas, parece hoje uma coisa de loucos.

Mas já vimos como a história nos pode surpreender com uma mudança súbita de "registo", pondo a "loucura" na ordem do dia.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

(José Ames)

OS MUITOS



"O desprezo pela política, a convicção de que a actividade política é um mal necessário, devido em parte às necessidades da vida que forçam os homens a viver como trabalhadores ou a governar sobre os escravos que os alimentam, e em parte aos males decorrentes do próprio viver-juntos, quer dizer, ao facto de os muitos, a que os gregos chamavam hoi polloi, ameaçarem a segurança e a própria existência da pessoa individual, corre como um fio vermelho ao longo dos séculos que separam Platão da época moderna."

"A Promessa da Política" (Annah Arendt)

Mas a política, como domínio da palavra e da acção, entre iguais, libertos da necessidade económica, graças a um estatuto social privilegiado, tendia a ser cada vez menos prática e ligada à realidade, a confundir-se com a liberdade de "se preocupar com o eterno (o aei on)."

Por isso, a conclusão pessimista de Platão deu-lhe a torção necessária a que a política se tornasse, de facto, uma libertação de quaisquer obrigações políticas e de toda a actividade pública. No que foi a fonte inspiradora da atitude cristã (Tertuliano: "Nada nos é mais estranho do que a coisa pública").

Essa retirada da política vingou, como diz Arendt, na instituição da universidade, com o seu espaço protegido da política.

Não obstante, a ideia de que a política é independente da necessidade e de quaisquer fins sobrevive ainda por detrás da sociedade sem classes e do Estado evanescente.

domingo, 7 de maio de 2017

(Porto)

O EFÉMERO DO DISCO DURO



"Le philosophe lisant" (1734-Chardin)




"Não é um verdadeiro leitor, un philosophe lisant (Chardin), aquele que nunca sentiu o fascínio acusador das grandes prateleiras de livros não lidos, das bibliotecas à noite de que Borges é o fabulista. Não é um leitor aquele que nunca ouviu, no seu ouvido mais íntimo, o apelo das centenas de milhares, dos milhões de volumes alinhados nas estantes da British Library ou de Widener, pedindo que os leiam. Pois existe em cada livro um desafio contra o esquecimento, uma aposta contra o silêncio que só pode ser ganha quando o livro for de novo aberto (mas, em contraste com o homem, o livro pode esperar séculos pela sorte da ressurreição)."

"Paixão intacta" (George Steiner)

Que o espólio de todas as bibliotecas do mundo possa ser transposto para um disco duro aproxima esses milhões de obras, cujas lombadas demoraríamos talvez anos a percorrer, do nosso inconsciente.

A pulsão de ler seria então como o desejo de nos conhecermos em profundidade.

E quando todas essas páginas virtuais ressuscitassem à luz da consciência, seria a assembleia do Vale de Josafat.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

(José Ames)

A LÓGICA DO ABSURDO





Muito do fascínio dos filmes de Carpenter vem-lhes duma concepção metafísica do Mal.

Não há, por exemplo, nenhum motivo plausível para o assalto à esquadra, em "Assault on precint 13" (1976), se bem que seja deixada, negligentemente, uma ponta para interpretar o ataque suicida como uma vingança pela morte de um dos assaltantes.

Mas não, a partir do juramento de sangue dos cabecilhas, não voltamos a reconhecer um rosto nas sombras que invadem a noite em volta do recinto.

Compreendemos pela revelação de Wilson, um dos prisioneiros solto para o tudo por tudo, que se trata dum gang apostado em lutar até à morte.

E a pergunta persiste: porquê morrer para destruir uma esquadra abandonada?