sexta-feira, 30 de abril de 2010


Foz (José Ames)

quinta-feira, 29 de abril de 2010


(José Ames)

AGOSTINHO


Santo Agostinho (354/430)


"Agostinho estabeleceu, frente ao cepticismo antigo, a absoluta realidade da experiência interior (na sua prefiguração do cartesiano cogito, ergo, sum). Mas imediatamente tem lugar a volta para a metafísica: as veritates aeternae são as ideias na consciência absoluta de Deus."

"Estudos sobre mística medieval) (Martin Heidegger)


Como poderia a experiência interior ter acesso à realidade e ser, ela própria, irreal? Talvez tenhamos de pensar num instrumento de acesso que a certa altura se acende (desnecessariamente?).

Mas tudo o que é imaginação ou pura manifestação do corpo convive, em nós, com o sentido da realidade exterior. O dualismo cartesiano foi a mais radical separação de águas desde a divisão platónica entre o corpo e a alma.

De qualquer modo, não parece ter sido necessária à filosofia antiga a ideia do diálogo interior com Deus, tirando o esboço do daimon socrático que iniciou na realidade interior um processo com algumas semelhanças com o que no teatro grego levou à substituição do coro soberano pelos actores individuais.

quarta-feira, 28 de abril de 2010


Cáceres (José Ames)

FILHOS DE DEUS

http://9e.img.v4.skyrock.net


"Se lhe propus instalar uma caixa de sugestões dizendo respeito já não à produção, mas ao bem-estar dos operários, é que esta ideia me surgiu na fábrica. Um procedimento como esse evitaria todo o risco de humilhação – dir-me-á que sempre recebeu bem os operários, mas sabe o senhor mesmo se não tem também momentos de humor ou ironias deslocadas? -, constituiria um convite formal da parte da direcção, e depois, só de ver a caixa nas oficinas, ter-se-ia menos a impressão de não contar para nada."


Simone Weil (carta de 3/3/1936 a Victor Bernard)


No outro dia, pedir o regulamento das visitas num hospital de província foi o suficiente para alarmar as enfermeiras que sentiram, precipitadamente, que eu julgava um dos seus momentos de descontracção, entre elas, como tempo roubado aos doentes. A alguns metros, um aviso informava que havia ali livro de sugestões e reclamações.

Faz, de facto, toda a diferença, essa simples homenagem a um direito, mesmo que não sirva para mais nada, quer por as pessoas não acreditarem que valha a pena tentar transpor a sagrada muralha de médicos e enfermeiros, quer por terem receio de despertarem uma qualquer má vontade de que os doentes seriam as principais vítimas.

É inimaginável, por exemplo, que existisse, em casa dum patrício romano, uma caixa de sugestões ou de reclamações, e por aí se vê o alcance da revolução cristã ao incluir o escravo entre os filhos de Deus. Mas também quase não conseguimos conceber que um símbolo do direito como esse possa ainda ser considerado, hoje, em alguns locais de trabalho como "revolucionário".

terça-feira, 27 de abril de 2010


(José Ames)

DEMARCAÇÃO


http://thesituationist.files.wordpress.com


"A comum oposição entre direita e esquerda deriva, argumenta Luhmann, da Revolução Francesa, em que 'os representantes radicais de princípios revolucionários foram identificados como a esquerda' e 'as tendências moderadas, senão restauradoras, foram vistas como a direita'. Desde a Revolução Francesa, a oposição esquerda/direita foi capaz de providenciar uma 'orientação esquemática' para os partidos políticos e os votantes. A ulterior codificação de governo/oposição como ala esquerda/ala direita ou conservadora/progressista é assim uma útil disposição semântica que torna possível a 'transformação de temas em programas de tomada de decisão, e permite que assuntos díspares sejam selectivamente endereçados sob diferentes opiniões dentro do sistema.'"

"Niklas Luhmann's Theory of Politics and Law" (Michael King and Chris Thornhill)


Quando se procura compreender a política dum ponto de vista funcional, tomando como objecto o sistema dos partidos, deixamos, evidentemente, muita coisa pelo caminho. Posso até estar de acordo que a divisão entre a esquerda e a direita facilita as tomadas de decisão, embora, assim, tenhamos de completamente prescindir da ética.

É verdade que a explicação funcional nos permite compreender o fenómeno que deveríamos chamar de obtusidade política, que é o que se passa quando as nossas decisões são tomadas, não em função da verdade ou dos princípios, mas da necessidade de nos demarcarmos dos outros partidos.

A questão é saber se isso é ou não uma fatalidade do sistema de partidos. Infelizmente, não vimos ainda nenhuma prova do contrário.

segunda-feira, 26 de abril de 2010


Angra do Heroísmo (José Ames)

PANÓPTICO


O Panóptico


Segundo Michel Foucault, o Panóptico, um dispositivo prisional circular, concebido por Jeremy Bentham (1748/1832), "tornava a vigilância permanente nos seus efeitos, mesmo se fosse descontínua na acção". "(…) O seu aparelho arquitectural deveria ser uma máquina para criar e manter a relação de poder independente da pessoa que o exercesse." George Orwell aplicou depois a ideia a toda a sociedade, com o Big Brother do seu "1984", que se tornou um dos modelos da sociedade totalitária.

Nos dois casos temos, não cidadãos, mas pacientes dum sistema penitenciário que, no segundo, dispensa os muros e o arame farpado.

Mas essa caricatura do controlo prisional ou político não parece útil nas sociedades democráticas, a não ser para conforto dos espíritos que assim imaginam o que seria a falta de liberdade total.

Um GPS que permite aos pais seguir os passos duma criança nada tem a ver com esse abuso do controlo, e é, na sua intencionalidade, uma extensão da vigilância que as famílias sempre exerceram sobra a sua prole. Mas é claro que essa monitorização pode ser levada a um ponto que inibe todo o sentimento de responsabilidade.

A ideia de Bentham era evitar a necessidade de punir, criando um espaço em que o prisioneiro se sentisse constantemente observado (mesmo se de facto não o estivesse). É assim que o crente se deve sentir perante um Deus zeloso que, a todo o tempo, "sonda os rins e os corações". Mas o sentimento de culpa que daí resulta nunca impediu a transgressão. O Panóptico, por outro lado, não podia induzir a culpa, só podia apoiar-se na ameaça duma punição.

O controlo nas nossas sociedades aperfeiçoou-se até o inimaginável e, se nem sempre é benevolente como o GPS familiar, criou em nós a ilusão de que a liberdade aumentou na mesma medida. Mas "Vigiar e punir" continua a ser a regra.

domingo, 25 de abril de 2010


(José Ames)

SELVA DENTRO


http://www.serendipity35.net

"E esta quietude não se parecia de todo com a paz. Era a quietude duma força implacável remoendo uma intenção inescrutável.

(…) Quando se tem que atender a coisas dessa espécie, a meros incidentes da superfície, a realidade – a realidade, digo-to eu – desaparece. A verdade interior está escondida – felizmente, felizmente. Mas eu sentia-a à mesma; sentia muitas vezes a sua misteriosa quietude observando-me nas minhas artes de símio."

"Heart of Darkness" (Joseph Conrad)


Neste passo, a selva envolvente, rio acima, em demanda de Kurtz, não se distingue da verdade interior, também ela escondida e "remoendo uma intenção inescrutável". A loucura de Kurtz ganha, assim, o carácter duma metástase que não distingue o interior do exterior.

Todas as febres que atacam o intruso "civilizado" decompõem em primeiro lugar a sua razão, os móbiles da vontade misturam-se ao intrincado das lianas e das raízes que a terra não pode conter.

sábado, 24 de abril de 2010


Leiria (José Ames)

ASSIMPTOTA


"O ponto decisivo de tudo isto, o carácter hipotético de todas as teorias científicas, era a meu ver uma consequência razoavelmente normal da revolução Eisensteiniana, a qual tinha mostrado que nem mesmo a teoria testada com mais sucesso, como a de Newton, deveria ser considerada mais do que uma hipótese, uma aproximação à verdade."

"Unended Quest" (Karl Popper)


Terá a própria ideia de aproximação à verdade de ser abandonada? Ou posto de outra forma, continua a ser necessária a ideia do absoluto? Porque Popper não quis, evidentemente, romper com a tradição ocidental, desenvolveu apenas a posição céptica sob a forma dum optimismo assimptótico.

Poderíamos, de facto, interpretar a história da ciência como a dum processo que se dirige para uma qualquer perfeição, pontuado por sucessos, cada vez mais abrangentes. Mas uma explicação pode ser melhor do que outra só porque o contexto é diferente.

Falta qualquer coisa às "verdades fora do tempo" para serem aproximações à verdade.

sexta-feira, 23 de abril de 2010


(José Ames)

A FARSA


"A Cidade"


"No Königstädter Theater levam-se à cena farsas e, como é natural, junta-se aí um público muito diverso; aliás alguém que queira fazer um estudo patológico do riso na sua diversidade em função da condição social e do temperamento não devia perder a oportunidade que a representação de uma farsa oferece. O júbilo e as sonoras gargalhadas da galeria e do segundo balcão são algo de completamente diferente do aplauso do público cultivado e crítico; são um acompanhamento permanente sem o qual a farsa simplesmente não poderia ser representada."

"A Repetição" (Soren Kierkegaard)


Num dos mais recentes espectáculos do Teatro da Cornucópia, "A Cidade", com um arranjo de textos de Aristófanes, que teve lugar no S. Luís, pude aperceber-me duma outra situação. Ao público habitual da Cornucópia juntou-se o público do S. Luís, talvez menos "cultivado e crítico". O resultado foi que a farsa em cena não pôde beneficiar do acompanhamento que Kierkegaard considera indispensável. Perdidas num meio que lhes era estranho, ouviram-se algumas "sonoras gargalhadas" que não chegaram para salvar o produto tão pouco cornucopiano como o que se via no palco, qualquer que tenha sido o mérito do trabalho de Luís Miguel Cintra e dos actores.

Tem razão o filósofo no que diz quanto à farsa. Um público circunspecto e à espera das subtilezas da interpretação não compreende este tipo de teatro que exige a participação do público.

Mas, embora alguns tivessem ficado chocados, talvez que aquele "tom" estivesse mais próximo do teatro grego do que pensavam.

quinta-feira, 22 de abril de 2010


Aldeia da Luz (José Ames)

O PRÍNCIPE


René Descartes (1596/1650)

"Nenhum desenvolvimento é mais interior e original que o deste homem, que é, no entanto, que é justamente por isso, modelo para todos e bem comum. Só é útil o que é inimitável, porque aí encontramos o modelo do espontâneo e o exemplo da salvação possível. Justamente porque Descartes nunca abdicou. Este lábio grosso pensa."

"Pédagogie enfantine" (Alain)


Em Descartes, temos um dos exemplos mais notáveis duma vontade soberana. De alguém que fez um sulco no universo por se manter fiel a um princípio. Alguém que, de acordo com o seu século, procurou tirar de todas as peripécias duma vida aventurosa um ganho de conhecimento sobre si mesmo e o mundo à sua volta.

Mas parece que o rumo da sua vida não foi ditado pela maturidade, como aconselhava Simone Weil, nem sequer pela razão, mas pela ideia dum grande destino, como o prova a importância que o filósofo dá às suas visões e conversões. Para além disso, Descartes passou por ser um católico devoto, mesmo se, para o gosto de Pascal, reservasse a Deus um lugar decorativo.

O que diz Alain é que este homem não se salvou em espírito, contra uma parte de si mesmo. Uma saúde pouco firme não o impediu de seguir a carreira militar, e o que teria sido uma desvantagem para o comum, serviu para esculpir o seu carácter. E nessa empresa de se salvar todo, com todas as suas virtudes e todos os seus defeitos, é verdade que já não encontramos vestígio da negação do corpo que é a ideia platónica e cristã. É ainda a lição do bom uso das paixões.

quarta-feira, 21 de abril de 2010


(José Ames)

SCARTARIS



"A luz eléctrica fazia esplendidamente brilhar os xistos, o calcário e o velho grés vermelho das paredes; poder-se-ia pensar que estivéssemos numa trincheira aberta do Devonshire, que deu o seu nome a este género de terrenos. Espécimes de mármores magníficos revestiam as muralhas, uns dum cinzento ágata com veios brancos caprichosamente desenhados, os outros de cor encarnada ou dum amarelo manchado de placas vermelhas, mais longe, amostras deste mármore griotte de cores sombrias, das quais o calcário ressaltava em nuances vivas."

"Voyage au centre de la terre" (Jules Verne)


Agora que o vulcanismo nos invadiu os céus e chumbou as asas aos aviões, é tempo de recordar Júlio Verne e um outro vulcão islandês, o Scartaris (ó viajante audaz!) por onde começou a única descida "conhecida" ao centro da terra.

Quem me dera voltar a experimentar o sortilégio dessas páginas que nenhuma adaptação cinematográfica conseguiu igualar!

Tudo escrito por um homem que, rapaz, quando foi açoitado pelo pai por ter tentado escapar numa aventura real, jurou que a partir daí viajaria "apenas em imaginação".

terça-feira, 20 de abril de 2010


Londres (José Ames)

MATURIDADE


Santa Maria degli Angeli (Assis)


"Eis por que a ideia de procurar o amor para ver o que é, para dar um pouco de animação a uma vida demasiado morna, etc., me parece perigosa e sobretudo pueril. Posso dizer-lhe que quando tinha a sua idade, e até mais tarde, e que me veio a tentação de procurar conhecer o amor, eu a afastei dizendo que valia mais para mim não arriscar comprometer toda a minha vida num sentido impossível de prever antes de ter atingido um grau de maturidade que me permitisse saber ao certo o que pedia em geral à vida, o que esperava dela. Não lhe dou isto como exemplo; cada vida desenrola-se segundo as suas próprias leis. Mas pode aí encontrar matéria para reflexão."

Carta a Simone Gilbert (Simone Weil)


A correspondente de Simone Weil teria então 17 anos e fora sua aluna no liceu do Puy.

Se cada vida segue a sua própria lei, o amor não se encontra, certamente, entre as coisas que dependem só do indivíduo. São as circunstâncias exteriores que confinam Simone a uma escolha entre procurar ou não o amor, conhecê-lo, dando à sua vida um novo curso irreversível ou esperar pela "maturidade". De qualquer modo, qualquer das escolhas teria um sentido impossível de prever.

O "destino" estava tão pouco nas suas mãos, que Simone se deixa surpreender pelo amor (sob uma das suas formas) em Santa Maria degli Angeli, e o problema de Deus, que antes, para ela, não tinha condições sequer para ser colocado deu lugar à fé.

segunda-feira, 19 de abril de 2010


(José Ames)

UM HOMEM DO CAMPO




"-'Não compreendo, não compreendo', disse.

-'O que é que não compreendes?' disse Oblonsky, sorrindo radiante como sempre e sacando dum cigarro. Estava à espera duma rápida explosão da parte de Levin.

-'Não compreendo o que é que tu fazes', disse Levin encolhendo os ombros. 'Como podes fazê-lo seriamente?'

-'Por que não?'

-'Porquê? porque não há nada nisso!'

-'Tu pensas assim, mas nós estamos sobrecarregados de trabalho.'

-'No papel. Mas é verdade que tens um dom para isso', acrescentou Levin."


"Anna Karenina" (Leo Tolstoi)


Levin, o camponês, não compreende a burocracia, em que parece levitar o seu cunhado, bem instalado numa repartição, os seus grandes ares, a importância duma rubrica, a dança dos funcionários e dos papéis. Enfim, ali não há nada que ele possa considerar uma coisa concreta, um bem sólido, algo que possa medir com as suas botas ou trabalhar com as mãos. E Oblonsky até concorda que ele é mais feliz, com os seus mais de seis mil acres no distrito de Karazinsky.

A imaterialidade da burocracia, que a casa tão bem com o poder, não desceu das nuvens como um deus ex-machina. No componente da peça que sai da cadeia de montagem, o aço de que é feito não o torna mais "concreto". É o sistema económico e a organização fabril, coisas transcendentes em relação ao elo humano que o produz, que lhe dão um sentido e o fazem perder o seu carácter de abstracção.

domingo, 18 de abril de 2010


Cáceres (José Ames)

RITUAIS


"Émile Durkheim (1858/1917) diz que os rituais oferecem aos membros uma representação do grupo, mostrando o grupo a si mesmo, numa forma concreta, dando-lhe um nome e um corpo. Os rituais, indirectamente, é a própria sociedade que honram, como fonte de todo o sentido. Sem o reconhecimento directo e a celebração dos laços entre as pessoas, estiolam-se os sentimentos de alegre solidariedade, e uma sociedade saudável desmorona-se."

"Avoiding Politics" (Nina Eliasoph)


Quase só pensamos nos rituais na sua acepção negativa, como algo que se repete por obrigação, perfunctoriamente. Mas há um tempo de maturação que transforma as novas formas de expressão colectiva, de real comunhão, em armações que só os interesses parecem alimentar.

É o que sucede com as datas simbólicas. Não precisamos de pensar nos jovens que "não estiveram" no 25 de Abril, para quem a efeméride significa quase só um dia sem aulas.

O ritual é a única coisa que ainda consegue erguer uma espécie de monumento, à medida que os que viveram esses momentos mais exaltantes formam cada vez menos uma comunidade.

No caso do ensaio de Eliasoph, ela diz que a adesão daqueles americanos às quermesses e aos bailes de província, quase todos financiados pelo comércio local ou pela indústria do entretenimento, é enganadora quanto ao seu espírito. As pessoas, de facto, aderem mais a uma prática do que a uma teoria (os rituais, inclusive, "tornam confortável a ausência de conversação") e simulam uma comunidade que, na realidade, não existe.

sábado, 17 de abril de 2010


(José Ames)

O OBSERVADOR CONTAGIADO


Soren Kierkegaard


"Em geral todas as emoções humanas profundas desarmam no homem o observador que nele possa haver. Querer observar só acontece quando em vez de tais emoções se encontra um vazio ou quando alguma coquetaria as encobre. Testemunhando-se o acto de um homem que reza com toda a sua alma, quem poderia ser inumano ao ponto de ficar a observá-lo friamente, quem não se sentiria antes invadido por uma emanação do fervor desse indivíduo posto em oração?"

"A Repetição" (Soren Kierkegaard)


Há um tipo de repetição que não faz observadores nem provoca empatia. Os que trabalham num hospital público sabem o que isso é. Nem que quisessem, não poderiam emocionar-se e manterem-se úteis ao mesmo tempo.

É, por exemplo, o espectador normal da televisão um observador ou há qualquer coisa no espectáculo que frustra o carácter activo da observação?

O homem de que fala Kierkegaard que, sem precaução, se deixaria "invadir" pelo exemplo da religiosidade dum outro é difícil de encontrar num meio que considera a religião uma questão de escolha pessoal.

Mas é necessário qualquer coisa de parecido com a caridade cristã para que a observação – palavra aqui mal aplicada – não se transforme num juízo.

sexta-feira, 16 de abril de 2010


Pico (José Ames)

BATER PALMAS COM UMA MÃO


"Os mistérios da fé podem ter e tiveram o uso que a dialéctica marxista teve para Lenine (nos dois casos, trata-se de eliminar a contradição como critério lógico do erro), subjugar totalmente os espíritos pela hábil manipulação do anátema. Os eleitos, a quem repugnam tanto a revolta como o servilismo do espírito, fazem deles koans para a contemplação. Mas o seu segredo está noutro lado. É que há duas razões.(…)"

"La connaissance surnaturelle" (Simone Weil)


Não foi Simone que inventou a razão plural. Basta lembrarmo-nos de Kant e das suas duas razões. E como haveríamos, hoje, de chamar ao "coração" de Pascal, com as suas razões que a razão desconhece?

Para a nossa filósofa, a contradição não é, sempre, uma manifestação do erro, pode ser outra coisa, como um impasse. Ela admite, por isso, uma razão natural (a geométrica, "terrestre") e a sobrenatural (a da plataforma no Universo?), que pode pensar os contrários. Mas já os eleatas achavam que conceitos como o movimento e a mudança envolvem contradição…

Um célebre koan atribuído a Ekaku pergunta: "Batendo duas mãos uma na outra temos um som; qual é o som de uma mão?" Podemos conceber a medição do som duma das mãos que batem palmas, mas a ideia não é essa, é o som duma mão que não tem outra contra a qual bater.

Ou isto é absurdo ou só tem sentido fora da física que conhecemos.

quinta-feira, 15 de abril de 2010


(José Ames)

O DEDO E A LUA



"Os Budistas Zen dizem que é preciso um dedo para apontar para a lua, mas que não devemos mais preocupar-nos com ele logo que a lua foi reconhecida."

(Fritjof Capra)


Se aplicarmos a parábola à comunicação social, com Mc Luhan no pensamento, ficamos com a ideia de que o dedo é tudo com que nos preocupamos. Mas é verdade que o indicador não é um verdadeiro medium e, portanto, o célebre canadiano não é para aqui chamado.

O ponteiro chama a nossa atenção para um determinado ponto, o dedo dirige o nosso olhar, não é uma lente para vermos através dela. Mas gosto tanto da citação que me parece um desperdício aplicá-la só aos ponteiros.

Porque a televisão, por exemplo, também ela reclama o nosso olhar e a nossa atenção, mas o que ela mostra está nela mesma. Ela é o dedo e a lua ao mesmo tempo. Lua que só existe na ponta do dedo.

quarta-feira, 14 de abril de 2010


Madrid (José Ames)

AS QUESTÕES PESSOAIS



"Sem dúvida que a senhora nunca fez segredo do que sentia, nem mesmo agora, incluindo do que sente a meu respeito. Esse sentimento causa um tal impasse que se torna quase impossível conversar, pois tudo o que o seu interlocutor possa dizer será de antemão caracterizado como judeu, alemão ou chinês. Estou disposta em qualquer altura, como já disse ao Martin, a discutir estes assuntos em termos objectivos e políticos – penso que tenho algum conhecimento de causa –, mas com uma condição, que todos os aspectos humanos e pessoais sejam excluídos. Um argumento ad hominem destrói qualquer possibilidade de entendimento porque envolve uma coisa que sai do escopo da liberdade humana."

Carta de Hannah Arendt a Elfride e Martin Heidegger


A verdade é que as duas rivais no amor não são "livres" da mesma maneira em relação a Martin. O romance de Hannah com o filósofo "durou pouco tempo - de 1927 a 1928" (Elzbieta Ettinger), embora tivesse deixado marcas profundas, mas, entretanto, ela casou e duas décadas decorreram. Quanto a Elfride Petri, a mulher, foi a companheira duma vida. A possibilidade de discutir a divergência de ideias, em termos "objectivos e políticos" não representa a mesma coisa para ambas e pode perceber-se a nuance retórica na argumentação de Hannah.

Na vida real, os aspectos humanos e pessoais imiscuem-se quase sempre nos debates importantes. É difícil não defendermos um ponto de vista de que depende o nosso equilíbrio psicológico sem lhe "darmos corpo", sem nos envolvermos dum modo mais subjectivo do que às vezes desejaríamos.

As condições para a liberdade numa discussão só são menos complicadas do que aquelas que exige a liberdade política quando são possíveis o desafecto ou uma real generosidade.

terça-feira, 13 de abril de 2010


(José Ames)

JOGO DE LUZES NO PRETÓRIO



Bartolomeo Cipolla foi um jurisconsulto de Verona, do século XV, autor de um tratado de astúcias (cautelae) permitindo contornar as leis.

Está, talvez, a fazer falta uma súmula de todos os artifícios que desde o tempo de Cipolla foram criados para fintar as leis.

É de esperar que tal empresa encontre forte resistência corporativa, menos por parecer um atentado à majestade da Lei, do que um ataque a um monopólio de conhecimentos práticos.

Mas, tal como a bondade divina sai realçada da comparação com o tripudio das legiões de demónios, mais resplandecente aparecerá a lei, se tudo o que se fez contra ela, na forma ou no espírito, por meios especiosos ou não, pudesse oferecer-se à contemplação de todos.

Poderíamos então legendar com mais verdade alguns (in)sucessos do pretório.

segunda-feira, 12 de abril de 2010


Toledo (José Ames)

O PODER E A REGRA



"É assim, não porque os interesses económicos com os quais essas medidas interferem são mais importantes do que outros, que o controlo dos preços e das quantidades deve ser por completo excluído num sistema livre, mas porque esta espécie de controlos não pode ser exercida de acordo com uma regra, mas pela sua própria natureza tem de ser discricionário e arbitrário. Conceder tais poderes à autoridade significa de facto dar-lhe o poder de determinar arbitrariamente o que deve ser produzido, por quem e para quem."

"The Constitution of Liberty" (Friedrich Hayek)


Apesar deste ser o livro que Margareth Thachter proclamou a bíblia do seu partido, podemos nele encontrar muito mais do que o programa conservador.

Passagens como aquela que qualquer adepto da teoria dos sistemas subscreveria têm, por isso, o condão de provocarem uma imediata rejeição no grande número dos que sentem que o capitalismo só pode ser considerado um sistema livre por comparação com sociedades como a da Coreia do Norte.

Não seria admissível, mesmo para o mais impenitente dos liberais, considerar o tipo de regulação darwiniana que se observa na natureza como um exemplo de liberdade (certamente esse não é o caso de Hayek), mas temos de reconhecer que até ao presente todos os esforços para construir um sistema, sem violência e apenas governado pela razão universal, redundaram em históricos fracassos.

Os limites do nosso conhecimento sobre os sistemas sociais complexos só têm paralelo na insuficiência dos nossos esquemas sobre a natureza, os quais poderemos resumir no facto de continuar a fazer todo o sentido a ideia de necessidade, pelo menos tão antiga como a humanidade clássica.

O que sabemos é que isso não tem impedido, nos últimos séculos, o aparecimento de teorias que postulam o controlo pelo homem das suas condições de existência e que, consequentemente, convertem a questão da necessidade numa questão de justiça. Aos críticos da necessidade do poder discricionário, bastará identificar os que beneficiam com o sistema para conceberem a solução. Mas o ponto de Hayek continua a ser pertinente: se não dominamos o "sistema", devemos entregar todo o poder a quem não sabe como respeitar a regra da justiça?

domingo, 11 de abril de 2010


(José Ames)

PENATES


Leonardo da Vinci (1452/1519)


"Mesmo a nossa personalidade, que tomamos grosseiramente pela nossa mais íntima e profunda propriedade, pelo nosso soberano bem, é apenas uma coisa, além disso mutável e acidental, em comparação com este eu, o mais nu possível; uma vez que podemos pensar nela, calcular os seus interesses, e até perdê-los um pouco de vista, ela não é mais, portanto, do que uma divindade psicológica secundária que habita o nosso espelho e que obedece ao nosso nome. Ela é da ordem dos Penates."

"Introduction à la méthode de Léonard de Vinci" (Paul Valéry)


Se o homem todo não é o autor, nem a personalidade, como o deveremos pensar? Para lá dos acidentes, da cor camaleónica e das anedotas que nos permitem distinguir as personagens históricas, Valéry propõe-nos a imagem de "um modelo psicológico mais ou menos grosseiro, mas que represente, de alguma maneira, a nossa própria capacidade de reconstruir a obra (referindo-se a Leonardo) que nos propomos explicar." E nesta misteriosa qualidade da representação encontramos toda a "insuficiência" da nossa visão do mundo. Valéry diz que a "lucidez a braços com a insuficiência, é um espectáculo deveras curioso."

Mas todo o esforço de análise do poeta-filósofo não fez a questão avançar um só passo. Podemos continuar a considerar Leonardo um génio inexplicável, quer pela sua obra, quer pela sua biografia que satisfaremos tal modelo psicológico. Que, de facto, não resolve nenhum problema insolúvel, mas estou menos certo de que o coloque "com uma nitidez incomparável."

E, como bem viu o nosso autor, a procura dum invariante, ou do eu absoluto, como do leito do rio heraclitiano, leva à perda de toda a individualidade. A consciência, nesse limite, teria de se reconhecer ele própria como coisa entre as coisas do universo.

sábado, 10 de abril de 2010


Vila Franca de Xira (José Ames)

CADMUS


Cadmus


"Há no texto escrito, quer se trate do tablete de argila, do mármore, do papiro ou do pergaminho, de um osso gravado, de um rolo ou de um livro, uma máxima de autoridade (...)"

"Les Logocrates" (George Steiner)


Digamos que o escrito tem já sobre o diálogo mental connosco mesmos a " autoridade" do objectivo, do que se fixa e permanece, escapando ao destino desses pensamentos cuja meteorologia nos impede de continuar o quer que seja, devendo nós, como Sísifo recomeçar tudo de novo.

Um dente de dragão, como na lenda de Cadmus, ou uma pirâmide impõem-se na linha do horizonte, até o momento em que, de tão preenchida, essa linha deixa de aparecer. O escrito da era digital encontrou uma outra espécie de volatilidade que lhe alienou muito da sua "auctoritas".

sexta-feira, 9 de abril de 2010


(José Ames)

DEUSES


Platão (428/427 - 348/347 AC)


"Porque nenhuma das grandes artes pode passar sem essa 'tagarelice e essas especulações de alto voo sobre a natureza'; porque é bem daí que parece vir a altura do espírito e a facilidade de levar a bom fim todas as suas empresas."

"Phèdre" (Platão)


Falam assim ( de tagarelice) os inimigos de Sócrates que o hão-de levar à cicuta. Melitos, por exemplo, acusa-o de se ocupar dos fenómenos celestes, acusação de impiedade e de desonestidade intelectual porque esse não seria um assunto do conhecimento humano. Tudo isso se resume em não ver diferença nenhuma entre a filosofia e a sofística.

São passagens como esta que medem o salto duma civilização que, começando por venerar os deuses, se serviu da linguagem mais abstracta, ela só digna de se dirigir a essas entidades, e descobriu o próprio espírito.

quinta-feira, 8 de abril de 2010


Tibães (José Ames)

COM AS PATINHAS DE FORA


Corte del Remer
(http://www.flickr.com/photos/daisuke_ido/61623318/)


"(…) mas lembro-me agora dum exemplo muito curioso, numa arquivolta duma casa na Corte Del Remer perto do Rialto, em Veneza. É composta por uma coroa de floreados – um modelo bizantino recorrente – com um animal em cada dobra; o conjunto envolvido por dois laços. Cada animal, saltando ou correndo, arranhando ou mordendo, é mantido estritamente, apesar disso, na sua dobra e entre os laços. Nem o sacudir duma orelha, nem a ponta duma cauda ultrapassam o desenho desta linha, numa série de vinte e cinco ou trinta animais; até que, subitamente, e por íntimo consentimento, dois pequenos bichos (não olhando para os restantes, mais incontrolados do que os outros), um em cada lado, colocam as suas patinhas através do laço envolvente, exactamente no mesmo ponto do seu curso, e assim quebram a continuidade da sua linha."

"The stones of Venice" (John Ruskin)


A transgressão aqui apontada por Ruskin é um mero acidente no ornamento duma arquivolta, mas parece satisfazer uma necessidade acima do gosto pela simetria e o respeito dos contornos.

O famoso crítico de arte inglês, tão admirado por Marcel Proust que traduziu algumas das suas obras, vê nas leis da arquitectura e da arte em geral o trabalho duma inspiração de ordem moral. As três dezenas de animais da arquivolta do Rialto encontram-se limitadas e contidas por duas linhas, existindo aí, "uma feliz submissão, como se agradados, mais do que vexados por lhe sugerirem uma lei tão bela que segui-la é o mesmo que pôr-se de acordo com a sua própria natureza". E "podendo haver aqui e ali uma transgressão e uma adaptação a qualquer outra necessidade (…), apesar disso, esta liberdade é sempre para ser aceite com o sentido solene duma permissão especial."

Ao encontro da tese do paradigma foucauldiano, podemos aperceber-nos de que nesta fusão entre estética e moral, defendida por Ruskin, se anuncia já uma teoria da evolução (Darwin ia ainda a meio do seu famoso ensaio) que de modo nenhum põe em causa a sua visão ética (com a liberdade da transgressão) e religiosa da natureza e da arte.

quarta-feira, 7 de abril de 2010


(José Ames)

A ARBITRARIEDADE




"O senhor não me compreendeu no que diz respeito aos despedimentos. Não é o próprio arbitrário que eu quereria limitar. Quando se trata duma medida tão cruel (não é a si que esta censura se dirige), a escolha nela mesma parece-me em certa medida indiferente. O que eu acho incompatível com a dignidade humana, é o medo de desagradar engendrado nos subordinados pela crença numa escolha susceptível de ser arbitrária. A regra mais absurda em si mesma, mas fixa, seria em comparação um progresso, ou ainda a organização dum qualquer procedimento de controlo garantindo aos operários darem-se conta de que a escolha não é arbitrária."

"Lettre à Victor Bernard (*), Mai 1936" (Simone Weil)


Simone havia escrito um artigo sobre "Antígona" para o jornal da fábrica (uma das inovações do seu correspondente). A forma como ela vê a questão dos despedimentos parece inspirar-se na ideia de necessidade (anankê) dos Gregos.

Pois se os próprios deuses se têm de submeter a essa necessidade, trata-se de não nos iludirmos sobre o que podemos ou não podemos. A compreensão da necessidade faz saltar as "escamas dos olhos" e traz consigo a obediência ao que é inelutável.

Ora, a ideia do destino desapareceu com o mundo dos deuses. Se hoje existe uma ideia comparável deve ser a do progresso histórico, que já viu melhores dias.

Além disso, não há controlo (mesmo se tecnicamente ele fosse possível) que possa afastar a crença numa possível arbitrariedade, seja ela alimentada por uma doutrina política ou pela simples misantropia, numa sociedade consciente das suas desigualdades.

E a verdade é que se se tenta muitas vezes ignorar a realidade (ou a necessidade), lutando contra "moinhos de vento", não está dito que isso não altere os dados do problema, mesmo se para pior. Haverá talvez que contabilizar esse potlach irracional como um dos custos da integração social.


(*) "Victor Bernard (1884/1944), engenheiro, director técnico das fábricas Rosières, onde trabalhava cerca de um milhar de operários na época em que Simone Weil visitou as oficinas."

terça-feira, 6 de abril de 2010


Wroclav (José Ames)

INIMIGOS DO GÉNERO HUMANO


"Paira sobre os primeiros cristãos uma atmosfera inquietante, já suspeita para os seus contemporâneos, na qual nem sempre se distinguem nitidamente o valor de confissão da lascívia de morte. Para Suetónio, trata-se, entre os cristãos, de psicopatas que atentam contra a vida – o que parece justificar a sua titulação chocante de 'inimigos do género humano'; por isso conta a sua execução entre as 'boas' acções do césar Nero."

"O Estranhamento do Mundo" (Peter Sloterdijk)


A incompreensão de Suetónio em relação ao que hoje chamaríamos de fanatismo ou de fundamentalismo (no fundo a radicalidade duma opção de vida) dos primeiros cristãos só tem paralelo no escândalo que é para os nossos espíritos, apesar de tudo, tão de bem com o mundo, quer isso se deva aos progressos da razão e da ciência, quer aos benefícios duma paz que bem sabemos ser precária, o exemplo daqueles que estranham o mundo dum modo tão radical, a ponto de trocarem a vida por uma promessa de futuro em que só muito poucos acreditam.

Não é a pulsão de morte freudiana que pode explicar o sacrifício do bombista suicida no Iraque ou noutro lugar de guerra, antes é caso para falar num excesso do simbólico sobre o real. Tal como os mártires do cristianismo, esses oferecem a sua vida em troca da "verdadeira vida".


segunda-feira, 5 de abril de 2010


(José Ames)