domingo, 11 de abril de 2010

PENATES


Leonardo da Vinci (1452/1519)


"Mesmo a nossa personalidade, que tomamos grosseiramente pela nossa mais íntima e profunda propriedade, pelo nosso soberano bem, é apenas uma coisa, além disso mutável e acidental, em comparação com este eu, o mais nu possível; uma vez que podemos pensar nela, calcular os seus interesses, e até perdê-los um pouco de vista, ela não é mais, portanto, do que uma divindade psicológica secundária que habita o nosso espelho e que obedece ao nosso nome. Ela é da ordem dos Penates."

"Introduction à la méthode de Léonard de Vinci" (Paul Valéry)


Se o homem todo não é o autor, nem a personalidade, como o deveremos pensar? Para lá dos acidentes, da cor camaleónica e das anedotas que nos permitem distinguir as personagens históricas, Valéry propõe-nos a imagem de "um modelo psicológico mais ou menos grosseiro, mas que represente, de alguma maneira, a nossa própria capacidade de reconstruir a obra (referindo-se a Leonardo) que nos propomos explicar." E nesta misteriosa qualidade da representação encontramos toda a "insuficiência" da nossa visão do mundo. Valéry diz que a "lucidez a braços com a insuficiência, é um espectáculo deveras curioso."

Mas todo o esforço de análise do poeta-filósofo não fez a questão avançar um só passo. Podemos continuar a considerar Leonardo um génio inexplicável, quer pela sua obra, quer pela sua biografia que satisfaremos tal modelo psicológico. Que, de facto, não resolve nenhum problema insolúvel, mas estou menos certo de que o coloque "com uma nitidez incomparável."

E, como bem viu o nosso autor, a procura dum invariante, ou do eu absoluto, como do leito do rio heraclitiano, leva à perda de toda a individualidade. A consciência, nesse limite, teria de se reconhecer ele própria como coisa entre as coisas do universo.

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