sábado, 30 de novembro de 2013

Sem título

 

EPPURE SI MUOVE

Galileu Galilei

Gibbon, na seu monumental "Declínio e Queda do Império Romano", aponta cinco causas para a evolução do Cristianismo:

" I - O inflexível e, se é que podemos empregar tal expressão, intolerante zelo dos cristãos, resultante, é bem certo, da religião judaica, mas expurgado do espírito estreito e insociável que, em vez de convidar, demovera os gentios de abraçar a lei de Moisés;

II - A doutrina de uma vida futura, aperfeiçoada por todas as circunstâncias adicionais e susceptíveis de conferir peso e eficácia a esta importante verdade;

III - Os poderes milagrosos atribuídos à Igreja primitiva;

IV - A pura e austera moral dos cristãos;

V - A união e disciplina da comunidade cristã que, a pouco e pouco, constituiu um Estado independente e florescente no seio do Império Romano."


A Igreja católica é, sem dúvida uma das instituições que mais resistiu à prova do tempo, ultrapassando em muito, por exemplo, a longevidade do Império Romano.

Todas as causas apontadas por Gibbon podem explicar, como ele diz, a evolução, mas em nada nos esclarecem sobre uma permanência que só encontra comparação nos tempos faraónicos.

O segredo destes governos teológicos é que, parecendo não se moverem (o problema é que não conseguem ficar parados), realçam o efémero de todo o movimento circundante.

Como uma constelação, inscrita noutro céu que não o da astrologia, convertem os acidentes do mundo e as próprias revoluções em pura "relatividade", insubstancial como as modas.

E, no entanto, movem-se...

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Sem título

 

O ESTÁDIO DO CONHECIMENTO


"Não é deixar de acertar, mostrar embora que as coisas se não acertam."

(D. Francisco Manuel de Melo)


Crescem as coisas sobre as quais só podemos dizer que não se acertam e, nisso, segundo o nosso autor seiscentista, não deixamos de ter razão.

A ciência tem uma cláusula que abona, aparentemente, em favor da sua humildade. É a que faz preceder toda a declaração dum: tanto quanto é do conhecimento actual...

Deixa-nos, assim, a esperança de que o que falta conhecer é uma questão de tempo.

E, com isso, é muito mais "auto-convencida" do que Sócrates que só sabia que nada sabia.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

O ENRAIZAMENTO

Simone Weil

 

"Li um livro importante. É 'L'Enracinement' de Simone Weil. Importante para todos e muito importante para mim. Eu conheço essa jovem, eduquei-a, deplorei a sua morte, mas deploro-a menos pensando que deixa este grande livro. É o único, tanto quanto é do meu conhecimento, que trata do socialismo. Conto com um franco movimento de opinião que consolidará o socialismo e arruinará o comunismo [...] É uma análise completa da sociedade moderna democrática e socialista [...] Estou feliz. Compreendo o silêncio desta jovem terrível, que permanecia para mim enigmático. Ela estava de tal modo acima dos seus camaradas que toda a comparação era impossível. Eu tinha-a apelidado de Marciana [...] Mme de Stael está ultrapassada, e segundo nós isso não é dizer pouco [...] Simone Weil é um exemplo eminente do espírito bíblico, elaborado em espírito moral e em espírito político. Honra portanto a Spinoza [...]"

Alain (in "Alain, Un sage dans la Cité" de André Sernin)

Simone Weil morreu em 1943 num hospital do Sussex. O 'espírito bíblico' de que fala o seu mestre não é o mesmo que inspirou Marx no seu grande empreendimento pela salvação na terra? O judaísmo foi sacudido por ambos, porque ambos nasceram filhos de Sem, mas, à distância, é o 'espírito bíblico' da Promessa que prevalece.

Marx, todavia, teve um segundo nascimento na teia hegeliana. 'Malhas que o império tece". O seu arremedo de sistema provou ser uma armadilha. E as suas profecias não podem ser levadas a sério. Fica a crítica do capitalismo do século XIX, que parece hoje mais do que justificada.

Alain diz que o livro de Simone foi a única obra 'socialista' de que teve conhecimento. E isso é quase incrível, porque nunca se deixou de escrever sobre o socialismo e não só da parte dos ideólogos oficiais.

Isso é porque a fonte de inspiração é outra, de outra filosofia e de outra tradição. Parece a ideia original do socialismo. Alain pode ter razão, mas 'L'Enracinement' impressionou mais os últimos abecerragens da cultura clássica e cristã do que os movimentos sociais da actualidade.

Sobretudo, não é nos partidos 'socialistas' que se podem encontrar quaisquer vestígios. A moderna esquerda pedala no mesmo tandem, quando chega a sua vez.

Spinoza continua a ser desonrado.


 

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Sem título

Hospital de S. José

 

AUTO-REVELAÇÃO

"Se não existissem seres humanos na terra, os objectos a que chamamos pedras estaríam aí, apesar disso; mas não seriam 'pedras', porque não haveria minerologia bem como uma linguagem capaz de as classificar e distinguir de outros objectos. (...) O inteiro desenvolvimento da epistemologia contemporânea estabeleceu que não há facto que permita que o seu significado seja lido transparentemente. Por exemplo, a crítica de Popper do verificacionismo mostrou que facto algum pode provar uma teoria, uma vez que não há garantia de que esse facto não possa ser provado de uma maneira melhor - por isso, determinado no seu significado - por uma teoria posterior mais compreensiva."

(Ernesto Laclau e Chantal Mouffe in "Post-Marxism without Apologies")

 

O social e a cultura vêm antes dos factos. Como dizem os autores, os factos não são 'transparentes'. Os mais óbvios resultam de uma leitura comum, de um consenso implícito. Por isso é tão importante dominar a linguagem e as sub-espécies dela.

Há factos científicos e técnicos que para a grande maioria das pessoas valem tanto como superstições. Quem precisa, por exemplo, de compreender a teoria quântica para aceitar como adquirido pela espécie, e seu de algum modo, um dos modernos 'gadgets' que existem graças a essa teoria?

A relação entre a extrema especialização científica e o comum dos mortais não é muito diferente da que existia entre os sacerdotes do Antigo Egipto e a população dos 'fiéis'. Porque sempre houve consensos deste tipo ao longo da história, entre os que julgam que sabem e os que sabem que não sabem.

A ideologia, proposta por Marx - e tacitamente aplicada a si próprio -, morreu com ele no 'marxismo triunfante'. Mas, de facto, continua a ser verdade que o pensamento acaba sempre em ideologia. Ela corresponde a uma leitura 'voluntária' dos factos que dispensa grandes consensos. Em política é uma espécie de auto-revelação do poder.

 

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

OS CIMOS

 


" Um cimo erguendo-se no céu (ver certas pinturas chinesas ou as de Leonardo da Vinci) não é somente um belo motivo pictórico; ele simboliza a residência das divindades solares, as qualidades superiores da alma, a força sobreconsciente das funções vitais, a oposição dos princípios em luta que constituem o mundo, a terra e a água, tal como o destino do homem (que vai debaixo para cima).

O ponto culminante numa região, o cimo de uma montanha - onde imaginamos poder banhar-nos no céu como os picos rochosos do famoso quadro do Louvre. ("Ana, Maria e a Criança" de Leonardo da Vinci) simbolizam o termo da revolução humana e a função psiquica do sobreconsciente que é a de conduzir o homem ao cimo do seu desenvolvimento. (Dies, 37).

"Dictionnaire des symboles" (Jean Chevalier et Alain Gheerbrant)

Hoje, o turismo de montanha é o oposto de certas superstições africanas de lugar proibido e passagem intransponível.

Conseguimos admirar o risco do alpinista sem sair do sofá nem ter de prescindir do ar condicionado. A 'montanha sagrada' foi profanizada pelas nossas câmaras e os nossos records desportivos.

Os oceanos, enquanto permaneceram incógnitos e, em vez de embaixadas, enviavam adamastores ao nosso assalto, podiam ser mais naturalmente símbolos da escalada humana. Desafios que o homem nunca deixa de tomar quando questionam a sua coragem.

A montanha, sobretudo quando vista através do cinema ou da televisão, é uma ficção tão pobre como o céu dos planetários.

É por isso que os antigos símbolos nos deixaram, porque já não há lugar para eles no no nosso mundo unidimensional.

Há ainda, claro, homens que não têm palavras para a realidade dessas coisas. Homens providenciais.

 

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

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Castelo do Queijo

 

TUDO E NADA

Gaston Bachelardl


"O nada é dado, tudo é construído."

(Gaston Bachelard)

 

Muitas vezes, ao acordarmos, não há nada. Quer dizer, não há mundo. É preciso um 'restart' que faz inveja ao mais rápido dos nossos computadores. Se estávamos no meio de um sonho, ou se nos lembramos do seu trabalho subterrâneo, acordamos com um farrapo de sentido que não é ainda o mundo.

Numa das últimas entrevistas de Agustina, ela disse que Deus era o equilíbrio perfeito do cosmos.

"- Acredito nisso, e numa sobrevivência. Vivo rodeada de fantasmas." A jornalista interpela:

"- Isso não contradiz a sua racionalidade?"

ABL: "- Não. É também uma forma de racionalidade. Para certas pessoas é mais fácil acreditar que não acreditar."

O "tudo" construído de que fala Bachelard é essa racionalidade no sentido lato, em que o corpo também tem inteligência, como diz a escritora.

Quando se acendem em nós todas as luzes, já somos absolutamente crentes nos nossos mitos e nas nossas histórias. Mas apercebemo-nos tão pouco disso, falamos tão pouco disso, como o marinheiro fala do mar.

De que outra maneira poderíamos viver no 'tudo'?

 

 

domingo, 24 de novembro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

PRECEITO TAOISTA


"Uma pessoa sentir-se-ia inclinada a invocar a antiga sabedoria Taoista: 'Os que sabem não falam; os que falam não sabem.' E o facto é que a maior parte dos marinheiros não tem muito a dizer sobre o mar. É simplesmente o seu meio natural;"
"The Hall of Uselessness" (Simon Leys)

O que percebemos aqui é que o verdadeiro saber não é simplesmente intelectual. Não é por isso que a escola apetrecha para a 'entrada' nesse saber, mas não o proporciona ainda? Não é por isso que os mais doutos podem falar do que não sabem, mesmo quando é, alegadamente, a sua especialidade?

Tanto Allan Greenspan e tanto Lyssenko! Nem sequer erraram meritoriamente, como Descartes com a sua glândula pineal...Porque há uma boa maneira de errar que é aquela que nos instrui a todos.

Mas o preceito encerra um paradoxo. Como haveríamos de aprender com os sábios, senão vivendo como eles, imitando-os pelo exterior para nos corrigirmos? Na sabedoria Taoista, muitas vezes o mestre responde por enigmas, ou ao lado da questão. Parece que essa vida se tornou um mito e não só para os ocidentais. Corresponde a um estado do mundo que já não existe, como o fórum ateniense, o qual, no entanto, inspira toda a tradição democrática.

Mas, de facto, o homem sábio e que 'não fala' não é tão raro como isso. Está fora e gosta de se manter fora da grande cúpula da 'comunicação'. E o seu saber, a consciência de que não sabe, realmente não o pode transmitir a ninguém. E ainda bem que é assim, para o homem continuar igual a si próprio, um joguete nas mãos dos 'deuses'.

Também ninguém precisa de que o marinheiro fale do mar. O que ele pudesse dizer de mais autêntico não se aplicava a nós.

 

sábado, 23 de novembro de 2013

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Aljustrel

 

 

O PASSADO IMPERFEITO



A participação popular, entendida como a mobilização cívica das paixões, já foi entre nós uma ideia de guerra permanente. Como se a apatia proverbial do nosso povo durante o regime de Salazar tivesse de se resgatar por um estado de alerta totalitário.

Mas quem sofria mais com o apoliticismo das massas era o pequeno-burguês. Ele sonhava com uma aventura épica que o tirasse das suas contradições. A democracia burguesa era odiada pela sua monotonia. Por roubar a estes espíritos torturados a própria necessidade da vingança. Porque o estado que mais lhes convinha era o dos privilégios criadores de riscos e responsabilidade.

O pequeno-burguês, no meio do seu conforto, sentia-se como um oficial na reserva compulsiva. As coisas que a sociedade lhe dava, as vantagens dum bom ordenado e duma boa situação profissional dividiam o seu coração entre o gosto das comodidades e do prestígio social e a veleidade de pagar tudo isso, com a vida se preciso fosse.

Era nisso em que pensava ao ouvir um deles dizer que aquele governo já era totalitário, e que a situação em muitos aspectos era pior do que no fascismo. E mesmo essa sedução por uma figura como Staline, que só conhecia da polémica. A ideia dum povo gigantesco que sacrificasse a sua liberdade para levar ao camponês espoliado da América Latina a mensagem do socialismo era demasiado vital para a sua mentalidade e para uma existência como esta para se arrumar sob a categoria do erro ou da ilusão.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

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A MURALHA CHINESA

http://politicanadaimparcial.blogspot.pt/2012/09/muralha-da-china-fotografia.html


"Os problemas da China não se ficam por aqui. Andy Serwer, no editorial da revista Fortune desta semana diz qualquer coisa como isto: “que interessam os comboios de alta velocidade, os projectos imobiliários gigantescos, .... se o governo chinês não consegue assegurar o mais básico elemento para a vida humana, que é o ar puro?” Reparem bem, não estamos a falar do discurso de algum ambientalista sobre o aquecimento global, que enquanto o pau vai e vem, nos permite uns melhores dias de praia. Estamos a falar de um problema de toxidade que se não é revertido muito rapidamente terá uma enorme repercussão na economia e será por certo o pior pesadelo do governo chinês."

(Miguel Pimentel, no 'Público' de hoje)

 

O articulista dúvida, além disso, que "o modelo de desenvolvimento centrado no Estado" funcione por muito tempo. Quanto a isto, não sei, porque tudo depende daquilo em que o sino-capitalismo se transformar, não graças à vontade reformadora ou ao 'verdadeiro espírito revolucionário', mas à incógnita tecnológica.

É verdade que o mercado e a 'democracia burguesa' demonstraram, no passado, uma incomparavelmente maior capacidade de adaptação à realidade do que a economia burocrática, e era forçoso que assim fosse, devido a uma irremediável falta de controlo do homem de hoje sobre a economia desenvolvida. A ignorância dos especialistas sobre as ciências sociais deu lugar a uma escolástica retrógrada de que ainda hoje sentimos os efeitos.

Mas, sem pensarmos nisso e sem que seja esse o objectivo da 'revolução numérica', como dizem os Franceses, o controlo da economia pode estar em vias de deixar de ser uma piedosa ilusão académica. Nada impede, teoricamente, que o pesadelo de "Alphaville", o filme de Goddard, não possa substituir o mercado através de uma centralização mais eficiente do que da burocracia. Os economistas passariam a palavra aos técnicos de bata branca ou de cor.

O que hoje parece uma incongruência do modelo chinês e um 'handicap' incontornável, pode ser "o ovo da serpente".

Já é revelador que o sucesso económico deste comunismo 'sui generis' se deva, em grande parte, a uma escolha política que privilegia o poder económico em relação à necessidade de respirar. Pensará o Partido que as 'dores de parto' da Revolução Industrial' em Inglaterra, mesmo agravadas desta maneira, são ainda hoje uma etapa necessária?

Sem darem por isso, os Chineses confrontam-se com outra versão do nosso século XIX. Um passo em frente, dois passos atrás.

 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

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Funchal (José Ames)

 

PARUSIA

"(Schmeisser) vivia 'para' o socialismo. Quando tinha fome ou quando se sentia humilhado, quando bochechava ou quando procurava um botão arrancado, isso era uma etapa na sua marcha para um fim."

"O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)

Deveria ser assim que os primeiros cristãos viviam na expectativa da parusia, o próximo regresso de Cristo. Não importavam os azares da vida, o mau carácter dos semelhantes, tudo era provisório. Ganhava-se até, com o sofrer, a alegria do contraste e do merecimento.

Não foi preciso muito tempo para o aperfeiçoamento da doutrina trazer um pouco de bom senso e fazer da paciência uma das maiores virtudes. O exemplo dos santos havia de converter a morte numa espécie de parusia. A vinda de Cristo, sempre imprevisível, tornava-se uma viagem garantida ao seu encontro.

Schmeisser era demasiado jovem para ser paciente e trocar a Revolução para amanhã pelo dia a dia acomodado duma vida burguesa.

O futuro passara a ser uma ideologia que lhe devorava o tempo de viver.

 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

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"Farm" (José Ames)


 

SÓ SEI QUE NADA SEI


"Saber, é saber que se sabe."

(Alain)


De outro maneira, é saber como uma máquina sabe. Hal, o computador de "2001, uma Odisseia no espaço", sabe? Ele é capaz de enganar os tripulantes, por todos os meios ao seu alcance, para levar a cabo a sua missão, como se esse objectivo fosse a sua única razão de ser. É isso que o desqualifica irremediavelmente. Quando mente, Hal, refere-se a uma verdade instrumental. Não é verdadeiramente mentir, porque o camaleão, o mais ilusionista dos caçadores de insectos, se disfarça por 'mimetismo', como parte do 'programa' da natureza.

Mas saber que se sabe é, forçosamente, também saber, como Sócrates, que não se sabe. No momento do juízo só a fé existe. Depois dele, o próprio pensamento é coisa e monumento.

É bem verdade que a tradição é o que lembra o pensamento a si mesmo. E quando ela se esquece ou se perde de vez, 'saber que se sabe' torna-se quase impossível.

 

terça-feira, 19 de novembro de 2013

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Campanhã (José Ames)

 

UM SEDUTOR

 


"Julien tremia de pensar que o seu pedido lhe fosse concedido; o seu papel de sedutor pesava-lhe tão horrivelmente que, se pudesse seguir a sua inclinação, ter-se-ia retirado para o seu quarto durante vários dias, e não teria visto mais essas damas."

"Le Rouge et le Noir" (Stendhal)


A orgulhosa juventude impõe-se sempre o papel que a distingue do que considera a mediocridade. E não é de estranhar, porque nessa idade ainda não sabemos quem somos.

Mas que bela carreira se abre, às vezes, a essa ambição e como o caminho está cheio de descobertas sobre nós mesmos!

É, sem dúvida, uma necessidade que os jovens não possam ser justos em relação às gerações anteriores.

Se os afectos, na família, não moderassem os efeitos desse drástico juízo, não haveria sociedade.

Mas vejamos. Não há uma ideia nos himalaias mentais de Julien Sorel que não seja um lugar-comum transfigurado pela inexperiência. Um sedutor!

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

A PAIXÃO DE TRUMAN

Truman Capote foi acusado por alguns dos seus amigos de explorar psicologicamente Perry Smith, um dos homicidas no massacre dos Clutter (Kansas 1959).

Ao confortar e ajudar os culpados, conseguindo mesmo o adiamento da execução, na verdade, pesquisava, recolhia material para o livro da sua vida, "In cold blood".

Se fosse essa a motivação, o filme de Bennett Miller revela-nos o preço real que o escritor teve de pagar pela sua história. Ao identificar-se com Perry, a ponto de considerar que ambos haviam nascido sob um mesmo tecto ( o da orfandade?), tendo um saído pela porta da frente e o outro pela das traseiras, conhece uma terrível depressão e afunda-se no álcool, não conseguindo acabar mais nenhum livro.

O ponto é que mesmo essa motivação ia ao encontro da necessidade de reconhecimento do condenado.

O interesse, consciente ou não ( terá existido um santo que não pensasse na sua salvação?) pode macular um gesto, mas não é a última palavra. O que acontece a seguir escapa aos actores do drama. "O homem põe e Deus dispõe", diz o ditado.

Alguém pode ser julgado por um motivo, que pesa tão pouco no resultado?

 

domingo, 17 de novembro de 2013

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Hospital de S. José (José Ames)

 

A HERESIA

 

Dizia Alain que é pela heresia que a fé se rejuvenesce de século em século. Na verdade, é a dúvida que impede o 'eterno repouso' do pensamento. Para o judaísmo, o nazareno foi um herege, e a Igreja fortaleceu-se no combate às heresias que apareceram depois. Era fatal que depois de dois milénios de experiência em defesa do cânone, e de se ter imposto como a árvore mais antiga, ainda de pé, da nossa cultura, a Igreja já não veja na heresia um grande perigo. As seitas que proliferam, por exemplo, nos EUA, representam uma normalidade com que Roma pode bem.

O grande perigo vem, porém, dessa posição 'acima das heresias' que está a transformar a Igreja num apêndice dos seus museus, nos quais se inclui a sua própria história, as suas ideias e a sua liturgia.

Como os grandes bancos 'demasiado grandes para falir', o seu futuro parece não estar em causa, e existe uma inércia que garante a sua sobrevivência e que os crentes nunca lhe faltem. Por outro lado, o cerco da 'modernidade' desempenha, cada vez mais, a função herética e a ciência vitoriosa não precisou de nenhum 'cavalo de Tróia', para impor a sua idolatria.

Mas é esta situação que pode levar a Igreja, pelo contra-exemplo, à descoberta duma espiritualidade para o nosso tempo.

 

sábado, 16 de novembro de 2013

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(José Ames)

 

UMA "BOUTADE"

"Hoje, toda a gente escreve e já ninguém lê."

(Arnheim, personagem de Robert Musil)



T.E. Lawrence, o famoso Lawrence da Arábia, uma vez confessou a alguém sobre a prosa do seu muito admirado "Seven Pillars of Wisdom" que o seu estilo "era uma coisa fabricada, densamente incrustada com o que me pareceu os melhores bocados e as ideias mais giras de autores estabelecidos." (citado por William Rothenstein)

Esta 'boutade' não tira nada ao valor do escrito. Exprime até muito bem a teatralidade da personagem criada pela lenda. Pode ler-se como a vontade de subalternizar o escritor em relação ao fazedor de história. Mas ao mesmo tempo é uma ostentação do seu génio, para quem o que escreveu não requereu a invenção nem o esforço de que outros precisariam. Parece uma gabarolice adolescente, mas estamos aqui em presença duma 'avis rara'.

O curioso é que a 'boutade' sobre a facilidade em enganar o crítico de letras e de debicar aqui e ali os 'titbits' e os 'wheezes' deixou hoje de o ser porque escrever assim está ao alcance dum simples 'copy and paste', para não falar das capacidades autorais crescentes do computador.

Uma coisa que Proust gostava de fazer, o 'pastiche' do estilo dos outros (que é na verdade um fenómeno bastante comum na literatura, pois se começa quase sempre por imitar alguém), segue-se na lista das possibidades a curto prazo, tal como hoje já se converte uma fotografia ao estilo impressionista, por exemplo.

Com tanta gente, pois, a poder 'exprimir-se' que tempo e vontade há para os verdadeiros autores?

A tecnologia levou-nos a descobrir potenciaiidades da democracia com que nem sonhávamos. Mas se ninguém lê, é o melhor do espírito que se perde, em favor do mediano. O que é uma consequência adivinhada já por Platão.

 

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

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Lisboa (José Ames)

 

CORRUPÇÃO

 

Joseph Conrad

"Sei apenas que quem estabelece um laço está perdido. O germe da corrupção entrou na sua alma."

(Joseph Conrad, citado por Greene e Steiner)

Os heróis da pureza são solitários. Aliás a pureza não é alcancável. Permanece um ideal. Mas a própria palavra interesse, que usualmente se contrapõe ao desinteresse da 'pureza', nos adverte para o que está em questão.

A origem da palavra vem do latim 'inter-essere' que quer dizer 'existir entre', estar com outros naquele intrincado de laços que, segundo Conrad, nos perde, afastando-nos do mundo dos 'puros' e da 'salvação.

Este exemplo é apenas um dos inumeráveis que revelam a natureza dualística da moral. Não há bem que não pressuponha um mal. Um deles está sempre na sombra, a um passo de erguer a sua cabeça de anjo ou de demónio.

É nesse sentido que, para mim, é verdadeira a palavra do evangelho, quando se diz que pecamos todos os dias, apesar dos nossos esforços.

Se perdêssemos toda a noção de pureza, a corrupção teria livre curso, e haveria um mundo de 'pernas para o ar'. Mas o que é natural é que não faltem ocasiões para nos deixarmos corromper por causa de um dos nossos 'laços'. A 'salvação' é quase um milagre, porque não há quem, no segredo do seu coração, esteja livre de 'pecado'.

Assim, a religião vencida nunca foi ultrapassada e está por detrás de todos os nossos juízos morais, mesmo quando não empregamos os termos consagrados de bem e de mal, perdição e salvação. Sem isso, em nome de quê combateríamos a corrupção?

 

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Sem título

(José Ames)

 

A MORAL SEM REDE

"Não tinha ele dito que no momento mais alto de um homem não havia nem bem nem mal, mas somente a fé ou a dúvida?"

"O Homem Sem Qualidades" (Robert Musil)

O hábito ou o exemplo decidem do bem e do mal, na maior parte dos casos. A consciência vigilante é devoradora de energia e, algumas vezes, de bom senso. Não se pode viver assim, sem regressar à forma de cada um.

Sabendo disso, alguns líderes políticos 'cavalgam' o entusiasmo popular ("o meu reino por um cavalo!", dizia o Ricardo III do poeta inglês) para melhor o reconduzirem ao estábulo.

Mas há, de facto, momentos em que não há nada nos hábitos nem nos exemplos que nos ajude. Ora, o que são o bem e o mal quando temos de pensar nisso? É como dizia Agostinho a propósito do tempo. Eu sei o que é o tempo, mas se me perguntarem o que é, vão-se-me todas as certezas.

Ficam a fé e a dúvida, como no exemplo de Ágata, em Musil.