sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A ORQUESTRA



O que surpreende na análise de Fellini é que a sociedade se torne impossível pela sua própria riqueza e complexidade. Os músicos não são interesses que se debatem nem vontade de infringir a lei, Pelo contrário, o seu interesse seria sujeitar-se às leis da orquestra e da protecção estatal.

Cada um identifica-se com o seu instrumento, a ponto de lhe transmitir a neurose moderna. A personalidade dos fagotes ou dos violinos torna-se um valor absoluto, independente da música sinfónica. É pelo desenvolvimento individual que se perdem as relações e a referência. Significativamente, tudo explode na anarquia e na paixão, como se na fusão das energias se buscasse um novo ponto de partida, durante uma reportagem da televisão.

A orquestra não é a vedeta, mas os instrumentistas. Ao dar a palavra aos músicos, é como se se reconhecesse, pelo medium que mais representa hoje a legitimidade e o consenso, a prioridade de cada entrevistado. A curiosidade da televisão é desintegradora, porque comunica um conteúdo problemático. A televisão é o abstracto volvido concurso social da banalidade e do lugar comum. A opinião pública emerge do nevoeiro original com o rosto duma câmara acoplada a um operário, e revela o falso segredo da voz humana. A transcendência rebaixa-se nesta entrevista do anónimo. Tudo é dito e como que aspirado. Os homens que viram a face de Deus já não podem ser os mesmos.

Freud conta em “Totum e Tabu” que o indígena que inadvertidamente tocasse o rei se suicidava. E a televisão criou um espaço fortemente iluminado onde tudo se vê, mas onde nada é. Quando esta força perceptiva e mental se alia a um sindicalismo surreal, o resultado é uma ruptura dramática do tecido social. Os direitos, que também são interesses de aparelho e da burocracia, recobrem totalmente o indivíduo sob uma pesada capa protectora e securizante. De tal modo que deixam de corresponder a uma realidade humana, e é como se o sistema ao tomar a seu cargo todas as reivindicações se tornasse ele próprio a verdadeira necessidade.

É ver como a autoridade do delegado sindical vive da demagogia e do irrealismo infantil do protegido. Não é o facto dos direitos não terem uma contrapartida real que é sintomático nesta crise, mas sim que nenhum trabalho, nenhuma relação social activa – pense-se na relutância com que alguns aceitaram responder aos jornalistas, sem receber por isso -, possa subtrair-se ao cálculo dos direitos e à mediação dum outro. Esta segurança é um suicídio da vontade.

O que é novo, historicamente, nesta problemática é ter o homem pela primeira vez de sacrificar uma instituição para viver. Porque nada espanta nesta atracção do complexo maternal. Mas o homem sem acção o que é?

Fellini convida-nos a olhar na direcção daquela enorme esfera de pedreiro que derruba as paredes do 'Trecento'. E a obedecer depois da fúria à nota de música e ao maestro.

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