segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

POLEMISTAS




Já tenho observado que há uma certa incompatibilidade que se vence pela fala. Mas então é uma fala distorcida e aparentemente inútil. Nas famílias é onde isso é mais visível por causa duma convivência necessária. Suponho que, à falta dessa necessidade, por tantos tecida, as pessoas se evitariam naturalmente, e isso não queria dizer menos respeito ou amor.

Algumas espécies de brincadeira caem dentro desta lei, porém eu penso que se trata duma modificação permanente da fala, e o tom é sensivelmente sério, mesmo sob a aparência mais jocosa. Não se deve brincar com coisas sérias como se diz, mas acontece por vezes ser a única forma de entrar e sair da caverna, sem acordar a fera. É possível assim fingir uma naturalidade que é menos tirânica para o espírito do que os verdadeiros sentimentos.

Pessoas que se tornam de um momento para o outro familiares por causa do casamento e que são obrigadas a um comércio diário que não se contenta com as fórmulas da simples cortesia recorrem quase sempre, por falta duma verdadeira base sentimental que é feita de experiência comum e de fidelidade, a uma espécie de hostilidade, nem sempre consciente, que lhes permite viver uma situação artificial. A sogra é uma mãe de convenção. E não se pode negar o nome nem os direitos por causa do laço conjugal. Mas também é evidente que falta sinceridade a esta adopção, complicada, por outro lado, pelo envelhecimento. Há aqui um problema de vocativo, naturalmente, errado mas justo socialmente. E vê-se o que o humor não educado pode fazer desta situação já de si incómoda. O sinal de que se salvam as aparências é conseguir-se falar, e a única fala que dá conta desta relação intratável é a polémica. E conheço um genro que leva este jogo tão longe que ofende sempre. Estas duas figuras tão glosadas pelo anedotário por causa desta curiosa dificuldade linguística são um exemplo puro da fala polémica.

Entre o pai e o filho, a dificuldade é outra. É uma relação feita para se negar e recuperar. Além disso, a família quando se encerra sobre si própria corrompe-se pelo abuso dos sentimentos naturais. Mas não há prisões para o espírito quando ele se separa das suas paixões, para ser fiel ao mundo apenas e a si próprio. É ao preço duma distância na linguagem que é possível pensar, quando a magia familiar nos cerca no tempo e no espaço. Mas a história de cada um dita a forma de resolver o problema. Há um momento em que o filho deixa de ser filho e a sociedade celebra de várias maneiras esse momento. Ainda que a estrutura antiga permaneça, já nada é como dantes. Daí o silêncio selvagem de alguns, ou a querela aparente de outros. Contudo, as formas chamam a criança sempre presente, o que é julgar sem sequência e sem espírito crítico. Estranha intimidade.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

UM CAVALO


"Guernica" de Pablo Picasso (pormenor)

Ao passar na rua Formosa, pelas traseiras do Coliseu, onde há uns anos via entrar os animais do circo, vejo um cavalo entre grades, sem espaço para se mover ou mudar de posição. Esquecido como uma máquina que se desliga, indo o dono à sua vida, sem pensar mais no caso.

Vem-me à ideia a cena com o cavalo chicoteado, em Turim, de que, dizem, foi protagonista Nietzsche, antes de perder a razão, abraçado ao pescoço do animal, numa manifestação de piedade para além do humano.

Em Auschwitz, havia uma tortura assim, mas pensada para o sub-humano: quatro presos de pé num buraco, uns colados aos outros, sem se poderem sentar.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007


Bom Jesus (José Ames)

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

OS POSSESSOS


Andrzej Wajda

Wajda realizou em 1988 um filme inspirado no romance de Doistoiewski "Os Demónios".

Os niilistas russos da última metade do século XIX são aqui retratados em toda a sua paixão iconoclasta e suicida, provocando, sabotando, assassinando, fiéis à divisa do "quanto pior, melhor".

Este grupo viajou pela Europa e trouxe a peste na bagagem, como Freud dizia ao levar a psicanálise ao novo continente.

O fosso entre o atraso das condições sociais do seu país e o que essa elite impaciente pôde testemunhar no estrangeiro era um verdadeiro abismo, em que algumas cabeças esquentadas se precipitaram, como a vara de porcos do evangelho, para a qual Jesus transportara o mal dum endemoninhado.

É esse o pensamento redentor do velho Verkhovenski que parece expressar a visão do romancista: o mal estrangeiro tem de ser concentrado nesses possessos do niilismo e nos defensores do progresso em geral, para que a Santa Rússia, enfim, purgada, seja salva.

Este mundo de loucos febris, amorais como algumas personagens de Gide, confia, no fundo num mecanismo histórico. Eles apressam a chegada do futuro, antes de outros darem a essa quimera uma outra eficácia.

Passaram do delíquio dos serões provincianos de Tchekov, sem esperança, mas resignados, directamente para a bomba.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007


(José Ames)

A ATENÇÃO ENTRE PARÊNTESIS


Image of a gamelan


"Não nego que exista uma estética da repetição, que nas peças de concerto e nas danças permite variações sobre um fundo de ostinato. Mas a música de concerto é rara e tardia. A maior parte das músicas, e nomeadamente as músicas repetitivas, acompanham um outro acontecimento, uma ou várias outras acções: teatro, dança, ritual, preparação de ritual. Estas músicas não valem por si mesmas e não são feitas para serem "escutadas", mas para serem "entendidas" ( - entendues - nos dois sentidos do termo: audição e entendimento)."

"Images du monde et traitement du temps dans le gamelan" (Catherine Bassset)


A repetição, quando "demasiado escutada", com toda a atenção, gera impaciência num auditório ocidental, diz a autora mais adiante.

Talvez esta diferença em relação aos balineses explique outras "impaciências ocidentais", como, por exemplo, a que provocam a música e o teatro tradicionais do Japão.

Talvez que esse tempo e essas repetições de notas e de gestos não devam mais ser objecto da nossa atenção do que as paredes do templo em que nos recolhemos.

Mas o nosso modo "ético" de escutar a música concorre, cada vez mais, na cultura moderna, com a música ambiental, que nos rodeia apenas para impedir a entrada do silêncio.

domingo, 16 de dezembro de 2007


Moura (José Ames)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

NO DENTISTA



http://www.duvekot.ca/eliane/archives/dentist.jpg


A mão do velho médico tirou-me o siso difícil. Eu receava que essa mão tremesse e que ele não estivesse à altura do que prometera há cinco anos. Foi quando me disse, depois de ver a chapa radiográfica, que me ia custar um bocado e que não era qualquer um que mo tirava. Já tinha o alicate suspenso, mas eu decidi adiar a operação até quando o dente me doesse de verdade. A rapidez com que tudo se ia fazer devia-me ter alertado, porém a imaginação podia mais e esse siso foi durante uns anos uma espécie de pequena morte. Não que alguma vez me atacasse uma dor forte – era um grande molar pacífico que nascera deitado -, a profecia é que era a verdadeira dor.

Lembrei-lhe essas palavras, e o velho reagiu como que ofendido: - eu só lhe podia ter dito que talvez não pudesse abrir a boca nos primeiros dias! Mais nada… Mas a outra citação foi grata ao prático reformado. Via entrar no seu consultório, de resto sem mãos a medir, o nome que fizera nos seus muitos anos ao serviço da Caixa. Não lhe era indiferente resgatar-se daquele medo que me fizera. Devia saber que nesses tempos tinha reputação de homem brusco e sem maneiras, mas de excelente dentista. Bem vistas as coisas, esta é uma característica operária, e a especialidade é talvez a única que não precise de persuadir, segundo a forte ideia de Chartier. A psicologia acaba nestas presas de marfim que são um objecto distinto, quase todo exterior e que não muda conforme se observa.

Bem podia desprezar a cerimónia e ir direito ao dente. Mas raramente o homem foge à tentação de experimentar a sua força, e eu esperava naquela cadeira uma sentença. O operário não resistiu a fazer-me um pouco de medo e a entrar no domínio do padre e do médico vulgar. Eis por que lhe faço subir o sangue. Ao lembrar-lhe uma fraqueza, é o passado que julgo sem saber. E este velho tem qualquer coisa de romano que não suporta florilégios no seu epitáfio. Ah! como é doce viver na memória dos homens! Depurar-se a vida embora do que fazia o seu sabor, para ficar só o mármore e a ideia.

Há pessoas que guardam os dentes, e aquele siso mal tocado pela cárie dava um bom amuleto. Mas quando ele mo mostrou, ainda no alicate: - olhe que matulão! – pensava no poder duma simples frase e da imaginação sempre acordada pela língua e o palito. E, por outro lado, em como a anestesia me tinha deixado sem queixo por umas horas, o que reduzia a dor a um mau sonho. Vi como o médico se aplicou e torceu. Senti bater no fundo da maxila, mas foi apenas um estremeção, logo ampliado pelo pensamento. E compreendo por que razão me mandou o velho abrir os olhos. Ele leu, na declaração teatral que lhe fiz ao chegar e sobretudo no meu aspecto, o temperamento nervoso. Ter os olhos fechados era imaginar sem remédio. Enquanto que a luz da janela e o movimento das mãos me podiam chamar à realidade. Mas também ele se enganou pelo meu exterior, e o pânico foi dum segundo imediatamente vencido. Alguma coisa partia no meu corpo e por um momento fiquei sem saber o que se ia passar a seguir. Foi essa espera quase metafísica que me alarmou. Assim deve ser a última consciência.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007


(José Ames)

domingo, 9 de dezembro de 2007


Lisboa (José Ames)

sábado, 8 de dezembro de 2007

TELEMASSA




A misantropia vê mal. Quando todo um povo elege a telenovela, é melhor ser prudente e não falar em colonização e mediocridade demasiado depressa. Preferíamos que as pessoas se interessassem pelo teatro grego, mas esse povo já foi. O livro parece-nos uma cultura superior à televisão, e ninguém lê. O prazer da leitura é para o iniciado, enquanto a história do pequeno ecrã pode ser seguida por um analfabeto e despertar o seu interesse. De resto, nenhum livro conseguia reunir tantas pessoas ao mesmo tempo e nivelar assim a compreensão dos leitores. A possibilidade de escolher o seu ritmo de leitura, o treino da atenção e da inteligência abstracta, o esforço de tradução dos signos distanciam o leitor do homem que “convive” com as personagens da telenovela.
Descobriu-se um meio de aumentar a experiência global da humanidade e de conformar a linguagem. Mas seria errado pensar que isso significa tornar menos complexo o facto humano e cair numa civilização inferior. O mais provável que aconteça depois da sonda da televisão ter posto em contacto os diferentes planetas humanos é uma nova riqueza de formas e uma espécie de bilinguismo. Porque a vida e o trabalho não se transformam só por força da televisão, e a cultura tradicional subsiste por isso a par da cultura de massas. Ora essa situação é propícia ao juízo crítico e à mudança. Uma segunda língua permite pensar a língua mãe. A domesticação das espécies não teve como efeito reduzir as suas diferenças. Como mostra Darwin, foi o contrário que se passou. O meio humano multiplicou as formas de adaptação para além do que a vida selvagem poderia ser causa.
É verdade que a televisão não educa e é um meio ruinoso de formar o carácter e o pensamento. A televisão recria a aldeia humana, de acordo. É um instrumento de civilização, certamente. Mas quem vai ao teatro popular para se instruir? A telenovela é o teatro em grandes planos e som estereofónico. É a tragédia grega que merecemos. Mais os deuses da pequeno-burguesia.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007


Baleal (José Ames)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

O MASOQUISMO


"O êxtase de Santa Teresa" (Bernini)



"O segundo dragão é a imputação de masoquismo (...). Temos de entender os seus esponsais de dor como etapas obrigatórias no caminho para "o Bem". E, uma vez mais, este é um tópico extremamente complexo. Mas o que é certo é que até os amigos íntimos de Weil ficaram chocados com a sua confessada inveja das agonias físicas de Cristo, com o seu desejo de emular a Paixão. Por muito que se enquadre numa tradição mística de maceração divina, um sentimento destes situa-se na linha de sombra do patológico."

"Paixão intacta" (George Steiner)


O masoquismo é uma acusação diabólica, pois pode converter a maior devoção e o sacrifício mais abnegado no seu contrário. Lançar o veneno da suspeita sob a intenção mais pura. Suspeita de quê? Da virtude não ser mais do que um meio para servir algo de inconfessável como o prazer do corpo na forma paradoxal duma dor física. Sabemos que a própria consciência da virtude lhe é funesta, mesmo se procura o bem, mas aqui o próprio bem está ao serviço da luxúria.

Com a arma do masoquismo, não há santuário que não se remodele em lupanar.

E, no entanto, quem pode olhar o êxtase da Santa Teresa de Bernini sem sentir a ambiguidade?

Mas deixemos as armas à entrada, no caso de Simone.

Por que é que o excesso e a loucura não seriam expressões do amor autêntico?

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

OS DRAGÕES DE SIMONE


a celebration of Simone Weil's spiritual journey by Megan Terry


George Steiner, em "Paixão intacta", refere-se à tese de H.L. Finch de que há quatro dragões que "obstruem o caminho que conduz a uma avaliação correcta" de Simone Weil.

"O primeiro é o da anorexia, tal como esta pode ser encarada pela psicologia comum."

Simone deixou-se morrer de inanição, num hospital do Kent, aos 34 anos de idade.

Supostamente, por compaixão, por querer compartilhar os sacrifícios alimentares da França ocupada. Steiner considera "mais ou menos" melodramática esta atitude.

Mas a verdade é que esta "paixão" não se compreende sem o modo, aos olhos do comum, excessivo de viver de acordo com a sua teologia.

O carácter sacrificial da sua proposta de participar na frente de guerra como enfermeira e, sobretudo, o grau da sua preocupação com os problemas sociais ou os duma colónia tão distante como a Indochina tinha a pungência duma dor física que aos outros podia parecer teatral (isto era antes da revolução mediática. Como suportaria a sua imaginação compassiva, por exemplo, as imagens da televisão?).

Num outro extremo, temos um exemplo, em Proust, duma preocupação impotente e um tanto ridícula no seu exagero, quando a duquesa de Guermantes confia a alguém, com toda a seriedade, que a China a inquieta.

Enfim, poderemos pôr em causa a autenticidade desta paixão e aquilo que hoje se chama de honestidade intelectual levada à sua quase impossível perfeição?

Voltarei aos outros dragões.


Toledo (José Ames)

ALGURES, COPÉRNICO


Retrato de Copérnico por Jan Matejko


"Camille - Digo-vos eu, se não recebem tudo sob a forma de cópias inábeis etiquetadas em teatros, concertos e exposições de pintura, eles não têm olhos nem ouvidos. Se alguém talha uma marioneta pendurada na ponta de um fio que a faz gesticular e cujas articulações rangem a cada passo em pentâmetros iâmbicos, que personagem, que lógica!"

"La mort de Danton" (Georg Büchner)


O tom do discurso denuncia a paixão do orador. Se nos move, é porque ele parece abarcar o assunto no laço da sua voz e das suas palavras, como se o tivesse sob o olhar flamejante e o pudesse varar de um lado ao outro com os raios da sua inteligência.

Um nome é melhor do que um conceito e uma "dramatis persona" melhor do que um simples nome.

A certa altura, falando do sistema político (já em si uma audaciosa simplificação), põe-no em cena como uma personagem, frente a outras do drama. Empresta-lhe as intenções e as palavras, e como tem a peça na cabeça sabe o que se vai passar. Temos a sensação, ao ouvi-lo, de que não estamos mais no tempo real, mas no da tragédia.

A sua ficção faz todo o sentido, como outra faria. O nosso orador não é diferente dos outros. É com uma ficção que interpretamos a história e a política. Sem excepção. O mito é o princípio da ciência.

Mas depois das lições do século XX, persistir na mesma ficção é como se insistíssemos na versão ptolomaica quando já um certo monge polaco escrevia "De Revolutionibus Orbium Coelestium".

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

OS ALCATRUZES DA NORA


Uma Roda da Fortuna futurista
(http://www.hgf-synthesizer.de/se/X-WoF/Wheel-Of-Fortune.jpg)

A consciência (essa invenção dos Judeus, segundo Hitler) é cismática e criadora de diferenças tanto como fazedora de concórdia e de unidade.

O mundo, tornado mais pequeno pela comunicação instantânea, é um espectáculo difícil de suportar para os filhos da Revolução Francesa (mesmo se têm tendência para reduzir o tríptico célebre à igualdade e à fraternidade).

No entanto, também os privilégios se encontram mais expostos e se tornaram mais vulneráveis.

Se perante a impotência de actualizar as ideias de uns e a de se justificarem com um mundo mais justo de outros, um consenso for possível, deverá ter por base uma nova versão da famosa teoria da "igualdade de oportunidades". Na realidade, muito mais próxima do antigo conceito de Fortuna. Desde que os factores que decidem a desigualdade possam ser separados da influência política, tenderão a assemelhar-se a uma espécie de fatalidade objectiva.

É por isso que a filosofia e a separação de todas as formas de religião da política se tornaram o caminho da paz e da sobrevivência.


(José Ames)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

FIDELIDADE


"Melancolia” de Edward Munch

"As palavras não mudam tanto de significado, em séculos, como os nomes para nós no espaço de alguns anos. A nossa memória e o nosso coração não são suficientemente grandes para poderem ser fiéis. Não temos espaço bastante, no nosso pensamento actual, para aí conservar os mortos ao lado dos vivos."

"Le côté de Guermantes" (Marcel Proust)


Questão de memória, questão de espaço.

Como o nosso convívio com as máquinas "inteligentes" nos permite compreender esse limite!

O temperamento melancólico (segundo a ordem clássica dos quatro temperamentos), propenso a fechar-se sobre si mesmo e a ver tudo negro, é também o mais fiel.

É que nele a fidelidade é possível à custa das novas sensações e dos novos afectos.

Neste caso, os mortos podem expulsar os vivos, por não haver espaço para todos.


Alqueva (José Ames)

SIMONE E OS CÍNICOS


Diogenes, Jean-Léon Gérôme

"Segundo consta, Platão disse de Diógenes, o Cínico: "Ele é a versão enlouquecida de Sócrates." Nesta observação há tanto de homenagem inquietante como de escárnio. Como podemos evitar que esta descrição nos venha à lembrança quando pensamos em Simone Weil?"

"Paixão intacta" (George Steiner)


Diógenes queria menos reformar o mundo com o seu exemplo do que poder troçar dele e confrontá-lo com as suas próprias contradições.

Há aqui, como é proverbial, um orgulho feroz e uma vaidade paradoxal ("a vaidade transparece através dos buracos do teu manto.").

Se Platão fala em loucura neste caso é porque o que está implícito na "pedagogia" de Diógenes nunca poderia obter o acordo dos outros, por ser intrinsecamente anti-social.

A loucura (ou a santidade) de Simone Weil, aquilo que Steiner descreve como a patologia presente na sua vida e nas suas ideias, como a inveja da crucificação e o desejo de obedecer como a matéria, parece também destruir todas as pontes para o outro e enfermar de um luciferino orgulho.

Mas com isto não se tocou ainda no que constitui a grandeza de Simone Weil, nem se explicou como é que a sua "loucura", que tanto a religião, como a sociedade só poderiam condenar, assumiu tantas vezes a forma da preocupação social (desde que não se tratasse do seu próprio povo, o povo judeu, acrescentaria Steiner).

Essa grandeza só será patente quando nos pudermos abstrair da hagiografia: "Naquela aragem fria, não há lugar para o incenso."

domingo, 2 de dezembro de 2007


(José Ames)

CONTRADIÇÕES MILITANTES


http://www.ulm.edu/studentsuccess/career


Um amigo brusco e que quer demasiado fazer-se amar contorce-se na eterna imprecação contra os males da empresa. Mas agora houve uma mão-cheia de promoções e ambos fomos contemplados. Bem vejo por isso na sua irritação o desejo de mostrar que permanece o mesmo, apesar dos novos galões. Com o chefe que lhe deu a notícia, sentiu-se obrigado a dizer que era muito crítico em relação ao que se estava a passar, ao que o outro respondeu que não tinha o exclusivo.

Esta capacidade que tem o poder para desarmar o militante distribuindo-lhe uma parcela que ele não sabe recusar é prova de inteligência e não de força. O delegado sindical é assim aspirado para o mundo dos gabinetes, e mesmo que queira conservar o seu anorak, tem de aprender a cortesia e a pensar como os homens de gravata. As ideias perdem sempre com a mistura, e o militante divide-se dentro de si mesmo. Acontece também, mas raras vezes, que o poder não satisfaça o homem de ideal e se veja então a mesma pessoa presidir ao conselho dos chefes e conspirar na célula do partido. São estes exemplos, de resto, que escondem a ambição do militante e levam a que perante o primeiro degrau da escadaria triunfal, o delegado diga sim.

E eu não disse que não. Tomei laconicamente como um dever a cerimónia da investidura. O mal-estar de ambos é porém uma crise da adolescência. É mais fácil acusar o poder de discriminação e de arbitrário, quando somos o exemplo vivo da incomunicabilidade com a hierarquia. É como gozar duma renda de situação. Sem palavras nem actos, o juízo está feito pelo simples contraste. Tudo isso muda, e quase sem custo, se o sistema nos oferece a paz e a tolerância, apesar de havermos quebrado tanta loiça e vociferado tanto. E se pensarmos que a ordem e a organização são coisas indispensáveis a qualquer sociedade, se não confundirmos a empresa com o poder e os títulos de propriedade, não podemos recusar um acréscimo de responsabilidades. Menos ainda o podemos se criticámos esse poder no passado e acusámos as pessoas de não cumprirem com o seu dever.

No fundo, receamos sempre não estar à altura da nossa crítica e falhar onde os outros falharam. A honestidade exige pois que se aceite o cargo, por muito que agradasse mais ao filósofo ser razão e juiz apenas. Para isso era preciso não entrar no jogo da política. O delegado sindical só será escolhido agora se fizer melhor do que os outros, porque não está confinado apenas à fala rebelde.

Quanto mais a necessidade cinge o homem, mais pura é a liberdade. Mas também mais difícil é agradar, e isso é bom para o espírito. O meu amigo prefere ler os factos pela grade da esquerda e da direita. E como não pode deixar de acontecer a sua cólera é toda política. O sistema explica tudo. É uma palavra que substitui a ideia da totalidade e nesse sentido, podia ainda ser útil. Mas quando se reduz o sistema a leis da produção manuseáveis pela sociedade ou pela vanguarda, pensa-se que é possível mudar a totalidade.

Daí que estas promoções selvagens sejam fruto do sistema, que nos indignem maximamente, mas que se desculpem os homens e se esqueçam as paixões até à Revolução.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

A LIÇÃO CHINESA


"Chung Kuo Cina" (1972-Michelangelo Antonioni)



Trinta anos depois, com a emergência da superpotência económica e as consequentes pressões sobre o seu perfil ideológico, ver a reportagem de Antonioni sobre a China (1972 -"Chung Kuo Cina") pode ser uma experiência didáctica.

Quando filmou os chineses nas suas ocupações, passeando uma câmara exótica pela paisagem humana que parece não ter sofrido recentemente as inclemências da Revolução Cultural e do Grande Salto em Frente, mostrando as tradicionais virtudes de paciência e sabedoria milenares, uma coisa nos impressiona em primeiro lugar, que é a disciplina omnipresente que a todos afecta, desde os operários e camponeses às criancinhas nas escolas, que nem sequer "costumam ter caprichos".

Ora essa ordem, presente em toda a parte, que afecta os gestos e as palavras (discute-se a produção entre as citações do livrinho vermelho) e parece transformar o país numa grande fábrica, impõe-se como uma necessidade antes de todas as outras, perante a ameaça, sempre à espreita, da fome e da violência, e toda a tentativa de comparar essa sociedade com a da Europa moderna e a problemática da sua organização, nem sequer é concebível.

O casamento da filosofia alemã com o Império do Meio tal como chegou ao século XX parece acidental e pouco terá sobrevivido de Hegel e dos seus discípulos nos aforismos do Grande Timoneiro. Mas a ideia do Estado Todo-Poderoso e de partido revolucionário, a que Lenine deu a forma rematada, desempenhou decerto um grande papel no esforço centralizador para transformar a China. E se a disciplina fabril, à escala do país, era necessária nos anos 70, sabemos como as coisas mudaram desde então, graças à nova política económica, para esperar grandes novidades nesse capítulo.

Significativamente, o partido é a última coisa a mudar.

terça-feira, 27 de novembro de 2007


Sameiro (José Ames)

O REALISMO MORAL


Conde de Saint-Simon (1760/1825)

"Desde há mais de uma centena de anos, os críticos do sistema da livre empresa recorrem ao argumento segundo o qual a simples organização racional da produção resolveria todos os problemas económicos. Em vez de enfrentarem o problema posto pela escassez, os reformadores socialistas tiveram sempre a tendência para negar a sua existência. Desde os saint-simonianos, a sua tese é que o problema da produção foi resolvido, e que só resta o da distribuição."

"Essais" (Friedrich Hayek)


Ninguém pensaria, numa sociedade em que o rei tivesse a única grande fortuna, que a simples redistribuição resolveria os problemas de todos.

Mas quando os ecrãs são múltiplos, a organização muito mais complexa, e em vez de se suportar o fausto de um monarca, temos o de algumas centenas de famílias ou de magnatas, quando, além disso, uma grande percentagem dos recursos é desviada para o armamento ou para a burocracia governante, a ideia de que o problema está só na distribuição impõe-se irresistivelmente.

Contudo, o problema pode continuar a ser, no fundo, o do primeiro exemplo. A escassez sempre a condicionar a satisfação por igual das necessidades de todos.

Mas há aqui, evidentemente, um vício de raciocínio.

Porque a hierarquia das classes e a blindagem dos interesses farão sempre obstrução ao esclarecimento do problema social e da questão de saber se uma distribuição mais justa é possível, sem violência, e indo ao encontro dos valores essenciais.

A solução natural desta dificuldade parece estar, assim, na constante adaptação do sistema, em que a pressão dos que se sentem prejudicados constantemente obriga os interesses instalados a ceder.

Mas como essa pressão é "cega" e se move apenas pelo interesse material, transforma-se no próprio nervo do espírito de competição que caracteriza o sistema.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007


(José Ames)

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

AS BOAS INTENÇÕES


http://www.deepstream.com/images/about_us/


"Se as importantes concentrações de capital que são as empresas pudessem ser utilizadas à discrição das direcções, para qualquer fim aprovado de um ponto de vista moral ou social, se o juízo duma direcção de um determinado fim, em função de razões intelectuais, estéticas, científicas ou artísticas devesse justificar as despesas da empresa, isso transformaria as empresas de instituições ao serviço de necessidades expressas pelos indivíduos em instituições que determinam quais os fins que os esforços dos indivíduos deveriam servir."

"Essais" (Friedrich Hayek)


E, a fim de salvaguardar o interesse público seria lógico, continua Hayek, que os "representantes designados do interesse público controlassem a direcção", ou, de outra maneira, aqueles que foram escolhidos pelos accionistas "pelas suas capacidades em domínios completamente diferentes" teriam um poder exagerado sobre a cultura, a educação ou o que é que fosse o fim de interesse público perseguido.

O único fim desejável das empresas seria, assim, o de "afectar os seus recursos ao seu uso mais rentável", sem que tenha o poder de escolher entre valores.

Há, evidentemente, nestas prevenções, um pessimismo fundamentado na experiência e na noção de que o indivíduo é sempre condicionado pela organização. Nesse sentido, é uma posição mais "materialista" do que aquela que aposta na bondade ou na maldade intrínsecas, ou em função dum critério social.

E ilustra perfeitamente o velho aforismo que diz que "de boas intenções está o Inferno cheio". Porque pode parecer uma boa ideia que as empresas persigam valores nobres ou filantrópicos, em vez de objectivos rasteiramente económicos, com a mira no lucro máximo.

No entanto, o poder negativo de algumas empresas não suficientemente controladas pelo interesse público não seria nada comparado com o que essas mesmas empresas teriam se pudessem substituir-se ao Estado e de algum modo determinar os valores da sociedade.

Cenário perigosamente próximo sempre que o Estado abdique de funções essenciais como a educação e a saúde.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007


Elvas (José Ames)

A FORÇA DO OBTUSO


Leonardo Fibonacci (1170/1250)

"Se bem que Leonardo Fibonacci tivesse demonstrado desde 1202, no Liber Abaci, a superioridade do método de cálculo utilizando os algarismos indo-árabes sobre os algarismos romanos, foi preciso esperar ainda muito tempo para que os algarismos - ditos árabes - se tornassem de uso corrente, tão tenaz foi a oposição que eles encontraram. A mais célebre tentativa de "censura" foi orquestrada pela Arte del Cambio, associação dos banqueiros florentinos que, em 1299, tentou interditar o uso dos algarismos indo-árabes na contabilidade. Esta interdição foi reiterada pelo menos três vezes antes de 1316. Longe de assinalar que ninguém utilizava os algarismos indo-árabes, estas disposições provavam pelo contrário a sua popularidade."

"L'invention du temps mesuré au XIII siècle" (Anna Maria Busse-Berger)


Este exemplo é elucidativo de que não basta a uma ideia inovadora a evidência das suas vantagens para ser adoptada.

O que os banqueiros florentinos tinham que mudar nas suas rotinas pesava mais do que essas vantagens.

Ora, os homens não mudaram tanto para que esta atitude não se possa verificar nos banqueiros do século XXI.

Toda a aparente iniciativa a favor das novas tecnologias, com a consequente obsoletização dos que "resistem à mudança", não revela uma menor quantidade de preconceito nos banqueiros, mas a força de "sugestão" dos que vendem os novos equipamentos e os estudos milionários para manter as empresas up-to-date.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007


Dressed (José Ames)

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

POLEMISTAS


http://www.facom.ufba.br/com024/dpm/images/screamy.jpg

Já tenho observado que há uma certa incompatibilidade que se vence pela fala. Mas então é uma fala distorcida e aparentemente inútil. Nas famílias é onde isso é mais visível por causa duma convivência necessária. Suponho que, à falta dessa necessidade, por tantos tecida, as pessoas se evitariam naturalmente, e isso não queria dizer menos respeito ou amor.

Algumas espécies de brincadeira caem dentro desta lei, porém eu penso que se trata duma modificação permanente da fala, e o tom é sensivelmente sério, mesmo sob a aparência mais jocosa. Não se deve brincar com coisas sérias como se diz, mas acontece por vezes ser a única forma de entrar e sair da caverna, sem acordar a fera. É possível assim fingir uma naturalidade que é menos tirânica para o espírito do que os verdadeiros sentimentos. Pessoas que se tornam de um momento para o outro familiares por causa do casamento e que são obrigadas a um comércio diário que não se contenta com as fórmulas da simples cortesia recorrem quase sempre, por falta duma verdadeira base sentimental que é feita de experiência comum e de fidelidade, a uma espécie de hostilidade que tampouco é sentida, mas que lhes permite viver uma situação artificial..

A sogra é uma mãe de convenção. E não se pode negar o nome nem os direitos por causa do laço conjugal. Mas também é evidente que falta sinceridade a esta adopção, complicada, por outro lado, pelo envelhecimento resultante da separação dos filhos. Há aqui um problema de vocativo, naturalmente, errado mas justo socialmente. E vê-se o que o humor não educado pode fazer desta situação já de si incómoda. O sinal de que se salvam as aparências é conseguir-se falar, e a única fala que dá conta desta relação intratável é a polémica. E conheço um genro que leva este jogo tão longe que ofende sempre. Estas duas figuras tão glosadas pelo anedotário por causa desta curiosa dificuldade linguística são um exemplo puro da fala polémica.

Entre o pai e o filho há menos liberdade e a dificuldade também é outra. O anacronismo é o fruto do tempo nesta relação feita para se negar e recuperar. Além disso, a família quando se encerra sobre si própria corrompe-se pelo abuso dos sentimentos naturais. Mas não há prisões para o espírito quando ele se separa das suas paixões, para ser fiel ao mundo apenas e a si próprio. É ao preço duma distância na linguagem que é possível pensar, quando a magia familiar nos cerca no tempo e no espaço. Mas a história de cada um dita a forma de resolver o problema. Há um momento em que o filho deixa de ser filho e a sociedade celebra de várias maneiras esse momento. Ainda que a estrutura antiga permaneça, já nada é como dantes. Daí o silêncio selvagem de alguns, ou a querela aparente de outros. Contudo, as formas chamam a criança sempre presente, o que é julgar sem sequência e sem espírito crítico. Estranha intimidade.

terça-feira, 13 de novembro de 2007


Praia (José Ames)

FILOSOFIA








(Alain en salle de cours à Henri-IV)


Acabo de ler “Les souvenirs concernant Jules Lagneau”. Aí está o espírito do mestre passando para quem decifra os seus enigmas. Eu, que sigo Alain de livro em livro, recolho o pólen ciosamente, sempre pensando no estranho destino deste filósofo que para Maurois será dentro de cem anos o único vulto do seu século, tal Montaigne.

Mas duvido, porque não sei se a filosofia continuará a ser ensinada tanto tempo. Mesmo que o Estado se preocupe com o que cada vez mais é um simulacro da filosofia. E isso não é novo. Mas que toda a cultura se vá perdendo e o homem empobrecendo o seu pensamento é isso que é de temer. A ideia do progresso pode ser exaltada, o espírito técnico pode triunfar em todo os cantos do planeta, e ao mesmo tempo termos entrado num declínio imparável pela incapacidade de julgar essas pobres ideias.

Homens livres, guiados pelo espírito, há-de haver, amanhã como hoje, mas como poderão desarmar os bárbaros dos novos media? É possível falar a um auscultador? Por todo o lado o poder é adorado sob a forma dum botão ou dum pedal. Tornamo-nos maiores, mas pensamos menos. Somos talvez os novos dinossauros. Mas estou a falar do que ninguém pode saber. A filosofia foi e há-de ser sempre menos do que o grão de mostarda.

O espectáculo de milhões, de quase todos, condenados à mecânica social sem poder esperar do alimento mais rico do espírito senão migalhas e falsificações tem-se repetido ao longo dos tempos. Contudo, quem hoje não é um pouco platónico, mesmo sem saber? A pureza das ideias e o rigor do pensamento não podem ser espalhados porque o grande número assegura as funções vitais, e é o corpo e a memória dos pensadores. Por isso que mudam a demografia e os mass media? Há uma informação mais rica e mais generalizada, certamente, mas a antiga desigualdade do saber permanece inabalável. Porque não é uma questão de democracia nem de política.

Se a televisão passasse a vida e a obra dos filósofos, ninguém aprenderia a pensar por isso. mesmo um esforço colectivo para devolver ao livro o seu lugar eminente não asseguraria a igualdade do saber. É a moral dos melhores que pensa e verdadeiramente sabe. Um povo pode ser cartesiano só até um certo ponto. E ainda bem, porque assim como a juventude obriga a pensar tudo de novo, a grande massa julga pelos instrumentos e pela felicidade.

Mas nada disto será a não ser que os homens queiram. Aceitemos o progresso desigual na filosofia e a necessidade duma sabedoria popular que recolhe tudo com o tempo, sem ser igual nem se bastar a si mesma. E encontremos a passagem neste mundo electrónico e superficial que são as sociedades desenvolvidas para o que pode continuar a filosofia.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007


(José Ames)

NO TROUBLE IN PARADISE


"The Blue Lagoon" (1980-Randal Kleiser)


Passadas as peripécias do naufrágio e da sobrevivência dos pequenos robinsons, a aventura reduz-se à descoberta do corpo feminino, duma forma ao mesmo tempo pedagógica e ingénua. O hardcore e a violência estão ausentes desta banda desenhada sobre a vida e a morte que não nos poupa nenhum passo da aprendizagem, segundo o lugar comum. Mas em nome de quê se pode dizer que não é um filme inteligente? O seu sucesso parece demonstrar que o problema de agradar ao público foi bem resolvido.

Sem desnecessária subtileza, nem complicação. O homem e a mulher existem um para o outro, e com o filho perdem mesmo o desejo de regressar à civilização. Mas é evidente que os autores da “Lagoa Azul” pensam que esta família bem podia existir no interior americano, refugiada numa espécie de paraíso que apenas o tantã incompreensível do habitante de outra ilha vem desfigurar. A perfeição da trindade familiar é a mentira que se quer ouvir. Mas não sem precauções, não ofendendo a mais superficial inteligência. A morte aí está, no sacrifício do estrangeiro e na comparação com o esqueleto de Paddy para moderar um idílio demasiado insosso e abrir a porta ao religioso. Que este seja um ideal sobretudo feminino não nos podemos admirar. O amor transforma o jogo infantil e a agressividade numa sinfonia povoada de tartarugas acopuladas e de bênçãos da natureza. Os outros homens não fazem mais falta do que a letra do “jingle bells”, porque a ideia do amor, do Natal e do Deus Pai podem guardar-se da corrupção como as velhas fotografias, e enxertadas no solo da amada ilha continuarão a alimentar as gerações como a bananeira.

Nesta historinha cor de rosa, há porém um outro rendimento demagógico que é a ideia da naturalidade do sexo. Os belos corpos conhecem-se para a santa consequência. No olhar do jovem há apenas curiosidade e entusiasmo. O corpo feminino é cheio de mistério para a jovem mesma. E aqui talvez se pesque uma grande ideia: o ventre como manifestação da divindade e o estatuto religioso da mulher na sociedade primitiva. Depois da vaga pornográfica, esta vingança da sexualidade ingénua até se parece com a saúde.

domingo, 11 de novembro de 2007


Guarda (José Ames)

OVNIS


http://www.ciufo.cl/Adm/Modulos/Noticia/Images/

Para quem pretende transformar o mundo, do céu nunca vem nada de bom. Por isso, o fenómeno dos ovnis lhe é altamente suspeito. Há por detrás de cada superstição um explorador do homem, e quanto mais andar o povo com o nariz no ar, menos atenção dedica a quem lhe vai ao bolso. Todas as forças são precisas para a luta de classes. O jornalismo que entretém as pessoas com os discos voadores está ao serviço da direita, e o governo bem pode folgar as costas se apanha tanta gente distraída.
Graças à doutrina, tudo se pode compreender com o tempo pelo próprio progresso das ciências. Mas há que escolher hoje em termos políticos. O extraterrestre é um criador da unidade humana, e esse é o princípio da religião. Trocar as pessoas de Deus pela dum aviador sublime não seria grande vantagem para o materialista, se bem que um encontro de naturezas tão afastadas significaria, se fosse recebido em todo o seu impacto, uma autêntica catástrofe para o género humano e, logo, o fim de todo o sistema político.
A história dos discos voadores bem podia transportar-nos ao período fetichista, anterior ao estudo das leis celestes. E se nos lembrarmos que a astronomia é a base de todas as ciências, não podemos deixar de pensar em como é precário o nosso conhecimento, e no que diria Tales desses astros caprichosos. Mas o que é mais natural no meio humano do que o desconhecimento de todas as consequências dos nossos actos? Devemos contentar-nos com a estatística e as aproximações. É impossível prever o que dará a ovnimania.
A doutrina quer tratar as ideias como ideologia, e muitas vezes o que não chega a ser ideia. Mas sem uma ideia da sociedade, tosca que seja, é impossível agir e avançar no conhecimento dos homens e da política. Não admira, por isso, e pelas razões do ofício, uma dose de bom-senso tão venerável no operário que teimosamente crava os olhos no opressor e vê na nuvem do ódio o disco voador. É uma imaginação produtiva à medida do espírito técnico.

sábado, 10 de novembro de 2007

A HONRA DE DEUS



"Becket" (1964), o filme de Peter Glenville, baseado na peça de Jean Anouilh, "Becket, ou l'Honneur de Dieu", tem, talvez, a melhor representação do actor Peter O'Toole, o que é dizer muito.

É a história de uma amizade impossível de manter quando o rei, Henrique II e o arcebispo da Cantuária (Richard Burton) se defrontam na arena do poder.

Até ser nomeado pelo rei para o mais alto cargo da Igreja, no seu país, Becket, consciente da vida sem sentido que leva ao lado do seu real companheiro, diz que lhe será sempre fiel, enquanto puder improvisar a honra, dia a dia.

Mas o seu novo cargo fá-lo encontrar a verdadeira honra, e Becket, inspirado pelo que chama a honra de Deus, opõe-se ao monarca que protege um dos seus nobres acusado de assassínio.

Compreendemos por que, para Henrique, submeter-se à honra de Deus é, de facto, vergar-se ao poder da Igreja e por que para Becket continuar a ser fiel à amizade significa o mesmo em relação ao Estado.

Henrique acaba por ser o fautor do assassínio do seu rival. E, só depois de morto, Becket volta a ser amado.

O poder que separa os amigos não tem a conotação negativa do poder pessoal ou do poder abstracto.

De facto, ao invocarem um a Inglaterra e Deus o outro, deixam de se poder distinguir a paixão e a ideia política.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007


Viseu (José Ames)

A OBTUSIDADE DOS FACTOS


Matrix


"Julgo que não tenho necessidade de defender o ponto de vista segundo o qual só a teoria pode ser considerada como uma ciência no sentido estrito. O conhecimento dos factos enquanto tais não é uma ciência, e não nos ajuda a controlar o curso dos acontecimentos ou a influir sobre ele."

"Essais" (Friedrich Hayek)


Os factos devem constituir os dados nas nossas fórmulas, a fim de se poderem fazer previsões acertadas.

Mas é fácil confundir o cúmulo de informação sobre os factos, que a moderna tecnologia põe rapidamente ao nosso dispor, com uma maior capacidade de prever o "curso dos acontecimentos" e de controlar os processos sociais, a exemplo do que é possível fazer com os fenómenos mecânicos mais simples.

Todos os que trabalharam numa grande empresa sabem que se pode viver inundado de dados inúteis, visualizados no ecrã ou impressos em estradas de papel, os quais, para terem alguma utilidade, devem ser reconvertidos e interpretados para fazerem algum sentido.

Por isso, nenhum responsável se desobrigará do dever de esclarecer, por exemplo, uma comissão de trabalhadores pela simples apresentação dos dados.

O problema é que a política exige a cada parte uma interpretação autónoma e, não estando esta ao alcance do amadorismo, normalmente os trabalhadores dispõem só duma interpretação suspeita.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007


Alcochete (José Ames)

terça-feira, 6 de novembro de 2007

A GUERRA DO RUGBY


M.A.S.H. (1970-Robert Altman)

Talvez a questão mais interessante levantada pelo filme de Robert Altman "M.A.S.H." (1970) seja a de saber se esta paródia pode ser, como defendem os seus panegiristas, um filme contra a guerra.

A vida neste hospital de campanha, durante a guerra da Coreia, é uma divertida intriga, graças sobretudo ao elemento sexual e ao informalismo dos diálogos e da representação.

Os feridos e os mortos não chegam a ter existência. Por muito que sangrem, fazem parte dos adereços, como os frascos de soro, as macas e as tendas.

É verdade que ferozmente se troça dos poucos militaristas do campo e que a justificação da guerra está de todo o ausente do discurso.

Parece que os americanos transportaram para o campo militar o seu modo de vida e uma partida de rugby ocupa mesmo uma parte desproporcionada do filme, como a sugerir que a guerra não é outra coisa do que aquela luta pela bola no meio da lama e dos encontrões.

Enfim, parece-me mais uma comédia que se aproveita de uma história de guerra, onde a vida reclama os seus direitos, quaisquer que sejam as dificuldades, do que um filme contra a guerra.

Se a guerra não interrompe a vida nem impede os americanos de jogar rugby, o que haverá nela de atroz?