sábado, 31 de março de 2012

(José Ames)

O PRIMEIRO DOS TELE-ESPECTADORES

Lula da Silva



Um destes dias Lula da Silva apareceu diante das câmaras, com aquela aparência dos que foram tocados pela doença que merece mais do que o sono, o epíteto de ante-câmara da morte. A aparência dos que sabem o que ninguém quer saber antes do tempo. A quimioterapia, ao privá-los do adorno capilar, faz, além disso, com que nos surjam como consagrados a uma espécie de "ordem monástica".

Veio anunciar que estava curado do seu cancro da laringe. Agradeceu a todos os que o apoiaram na provação, mas começou por fazer uma coisa surpreendente, se atentarmos no seu verdadeiro significado.

Agradeceu, em primeiro lugar, a Deus. Esse gesto para a televisão transforma Deus, evidentemente, no primeiro dos tele-espectadores. Como crente, Lula terá tido o seu diálogo privado com o Criador. Mas, como figura pública, o ex-presidente do Brasil, fez da televisão o veículo privilegiado da mensagem tanto para Deus, como para o povo brasileiro (na verdade, trata-se de um único destinatário, porque foi a imagem do crente que ele quis transmitir).

Este "pequeno lapso" não chega a chamar a atenção, tal é o grau de "conversão" do sagrado no profano. Por outro lado, exprime bem o poder dos mídia.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Lisboa (José Ames)

RESPONSABILIDADE ADESIVA



"A questão era saber se Eichmann tinha mentido quando disse: 'Eu nunca matei um judeu e, aliás, nunca matei um não-judeu...' A acusação, incapaz de compreender um assassino de massas que nunca tinha matado ( e que neste particular provavelmente nunca teria 'estômago' para matar), tentava constantemente provar um crime individual."

"Eichmann in Jerusalem" (Hannah Arendt)





Existe tal coisa como uma responsabilidade adesiva que se contrai pelo simples facto de exercermos uma função "alimentar" ( ou um emprego na administração dum estado criminoso - a defesa chamar-lhe-ia, claro, um estado de guerra)? Esse é o argumento de Eichmann. Ele até pode pensar que essa política é indefensável para um "leigo" (um não-alemão) e que o futuro do Reich é mais do que incerto, mas o seu lugar é aquele e o seu dever não lhe parece que seja a "auto-excomunhão."

O equívoco da acusação, segundo Arendt, é, no fundo, deixar-se levar pelo jogo de Eichmann. Como estabelecer a ligação pessoal do réu com um crime duma tal escala, onde parece arbitrário parar nalguns cabecilhas do nazismo, ao atribuir as responsabilidades pelo assassino em massa?

Esse problema da cumplicidade povoou de fantasmas a geração da guerra. Nunca todo um povo pôde sentir um tal sentimento de culpa. Sentimento transformado em mito pelo cinema e pela literatura, e do qual o "homem novo" que apareceu na Alemanha, depois do conflito e em tempo de prosperidade relativa, fez agravo histórico a justificar a insolência.

quinta-feira, 29 de março de 2012

(José Ames)

SERMÕES



"Beati pauperes spiritu"


(Primeira das bem-aventuranças evangélicas citada por São Mateus no capítulo V, versículo 3, e que inicia o Sermão da Montanha.)


Com a crítica marxista a "explorar o terreno", estamos sempre a tropeçar no óbvio. A bem-aventurança dos simples é para a outra vida, a dos astutos pode ser para esta. Parece mesmo haver uma regra de compensação entre os dois mundos.

Na verdade, os "os pobres de espírito" não precisam de esperar em futuros tesouros. Contentam-se com o que têm e do pouco fazem muito. Felizes, portanto, se os deixarem em paz.

Ora, aí é que está o problema. Eles não estão conscientes de todos os seus direitos e, por isso, nem pensam neles. Que espécie de cidadãos se fará com esta massa? Os "simples" parecem estar já às portas do Paraíso, sem que tenham feito nada para isso. Os outros podem despender as forças e ter todo o mérito, mas eles foram bafejados pela graça.

Só porque são pobres em espírito não precisam de fazer parte da cidade. Os problemas dos outros não são os seus problemas.

Esta "simplicidade" é já, talvez, o reino dos Céus. Mateus tem por isso razão, "beati sunt".

O paradoxo é que aqui a verdadeira fé pareça estar do lado do que quer salvar, tirando-os do seu sossego, aqueles a quem o evangelista chama de "pobres de espírito".

O Sermão aboliu o tempo. A beatitude dos simples, dum certo modo, é já. O profeta do Manifesto não fala doutra coisa senão do tempo (que há-de vir).

quarta-feira, 28 de março de 2012

Porto (José Ames)

ALAVANCAGEM

Brasão imperial da Áustria

"(...) quem quer que hoje pretenda realizar grandes ideias políticas deve ser um pouco especulador, ou um pouco criminoso!"

"O Homem Sem Qualidades"   (Robert Musil)



Palavras do conselheiro Tuzzi a Ulrich, o homem sem qualidades. É um ponto de vista do poder burocrático que já funciona no "melhor dos mundos possíveis"? É um ponto de vista conservador, mas que, ao mesmo tempo, parece "justificado" pelo tribunal da História.

Karl Popper estaria de acordo com este preconceito contra as "grandes ideias" tendo como objecto a sociedade humana. O caso é que não devemos pensar a sociedade como uma máquina a precisar de conserto. Não temos ideia do que é, nem como funciona. Mas podemos, e de facto sempre o fizemos, considerar essa realidade como uma "caixa negra" (por exemplo, na agricultura, a terra é uma "caixa negra"; não foi preciso saber o que se passava no mundo subterrâneo para plantar as sementes) e medir a saliência de alguns parâmetros que fazem sentido dentro dos nossos "modelos", mais ou menos arbitrários. Popper, em face disso, aconselhava a estratégia reformista e pontual.

Tuzzi diz o mesmo. Não sabemos as consequências das  "grandes ideias", nem no que a sua maior ou menor adequação à realidade pode produzir na vida da maioria das pessoas. A menos que se defenda que mudar o mundo é mais importante do que compreender o que sai dessa mudança - atitude que nunca adoptaríamos na nossa vida individual -, é preciso dar razão ao nosso conselheiro. A analogia com os especuladores da Bolsa só é injusta porque esquece as "boas intenções" de alguns que dão tudo para "alavancar" (empreguemos aqui este termo da nova finança que vem tão a propósito) as oportunidades "revolucionárias" e apostar o seu e o futuro dos outros numa falsa grande ideia.

O crime aplicar-se-ia, então, aos outros, aos que conhecem por de mais as consequências inevitáveis, mas preferem ouvir o oráculo dos seus próprios interesses ou os do seu partido.

terça-feira, 27 de março de 2012

(José Ames)

O MOSCARDO

Júpiter e Io (Correggio)


"Oistros, o moscardo que atormenta os bois, é a potência mais evasiva, e no entanto omnipresente, entre aquelas que governaram os Gregos."

"Les noces de Cadmos et Harmonie" (Roberto Calasso)


Que um insecto possa ter-se tornado um formidável operador mitológico diz muito sobre o espírito anti-sistemático dos Gregos.

Não é só que a hierarquia, apesar de tudo existente, entre os deuses do Olimpo careça da perfeição piramidal (os irmãos dividem o poder entre si, sob a férula mais do que complacente de Zeus). O imponderável, o ser mais ínfimo podem tanto servir o desígnio de uma divindade contra outra, como confundir o próprio "pai dos deuses", que, com a melhor das graças, reage como se reconhecesse uma justiça superior à sua.

A etapa histórica seguinte, com o monoteísmo, poria fim às diferentes "comarcas" da Razão. As contradições deixaram de ser o resultado de disputas entre iguais, mas o sintoma de um problema para resolver, um defeito da lógica.

Uma ideia como a do Limbo ou a do Purgatório exprimem a nova situação em que já nada escapa ao inventário.

Mas a história do moscardo que, por vingança de Hera, perseguiu Io até ao Egipto, e que com isso mudou a face dos continentes, é hoje, tal como ontem, um bom símbolo do que nem a razão nem o poder podem explicar.
 

segunda-feira, 26 de março de 2012

Gaia (José Ames)

O CONTRATO SOCIAL



"Alienar, é dar ou vender. Ora, um homem que se faz escravo dum outro não se dá; ele vende-se pelo menos pela sua subsistência: mas um povo por que se venderá? Muito longe de um rei fornecer aos seus súbditos a sua subsistência, é só deles que ele tira a sua; e, segundo Rabelais, um rei não vive de pouco. Os súbditos dão então a sua pessoa, na condição de se lhes tirar também os seus bens? Eu não vejo com que é que eles possam ficar."


"Du Contrat Social" (Jean-Jacques Rousseau)



Esta é uma linguagem sem respeito, a não ser pela razão. A Razão, no século XVIII, foi chamada a refundar todas as instituições, e a cabeça do rei rolou para o cesto na consequência de um silogismo.

A Revolução francesa é a origem de todas as ideias de tornar o nosso mundo racional. E mais do que isso, de o fazermos com carácter de urgência, já que possuiríamos todos  a ideia do mundo tal como deveria ser e supostamente conheceríamos o nosso mundo. Na verdade, logo que não exista força maior ou necessidade, todo o mal merece o nome de injustiça. E é o próprio Rousseau que o afirma, a força ou a necessidade não têm por que invocar o direito e todo o povo que obedece quando não pode fazer outra coisa é prudente. Mas, pelo mesmo princípio, tem o direito de se libertar do jugo, logo que o possa fazer.

Como não existe nenhum aparelho de medida da necessidade do jugo, estão, criadas as condições para toda a necessidade, à partida,  ser injusta.

Talvez por um efeito de "deslumbramento" devido às conquistas da humanidade no campo científico, toda a força se tornou superável e toda a necessidade uma justificação ideológica.

Contudo, devia ser patente aos olhos de todos que não conhecemos o nosso mundo (não chega dizer que é mais complexo do que aquilo que poderíamos imaginar, porque, no fundo, existe uma impossibilidade, como a de saltar sobre a nossa própria sombra) e os nossos modelos de sociedade têm obrigatoriamente de falhar  ainda mais do que as simulações da economia. Mas os que jogam com estas ganham sempre, como se viu e está a ver. Mas que seguro ou "bail-out" cobrirá o nosso investimento nos novos avatares da Revolução francesa?
 

domingo, 25 de março de 2012

(José Ames)

LINHAS TORTAS



"Para ele (Maquiavel) o ponto decisivo era que todo o contacto entre a religião e a política tem de corromper as duas, e que uma Igreja não corrompida, se bem que consideravelmente mais respeitável, seria ainda mais destrutiva para o domínio público do que a Igreja corrompida de então."

(Hannah Arendt)



O que nos permite compreender por que razão os períodos revolucionários, em que o "espaço público" é lavrado em todos os sentidos pelo fanatismo das ideias que não deixa lugar à palavra nem à acção política por ela motivada, ou pela vontade de "transformar o mundo", inspirada na ideia industrial (a de pôr a "máquina nos eixos", com uma bela certeza "operária"), de facto, inviabilizam a política, ou a corrompem por muito tempo.

Temos também uma ideia do que pode ser uma  "Igreja" (ou um Partido) que não se deixa "corromper", isto é, que não se converte ao regime da palavra e da discussão pública da 'polis', impondo uma pureza de ideais que faz a sua força, mas que pode destruir a 'cidade'.

A famosa questão dos princípios, constantemente invocados para preservar da 'corrupção' política todo o revolucionário, princípios que, está bom de ver, são independentes das situações reais, permitindo o exercício "livre" da vontade, ilustra bem como a eficácia da religião e da política "não corrompidas" depende do seu isolamento. Contudo, é preciso dizer que a eficácia aqui mencionada é o que há de mais paradoxal, visto que não se pode medir pela sua conformidade às ideias e aos princípios que a inspiraram, porque sempre a história, tal como Deus, preferiu escrever por "linhas tortas".

sábado, 24 de março de 2012

Salgueiros (José Ames)

A PRONÚNCIA DO AMOR


"Pronunciar a palavra amor é embaraçoso. A língua fica parada, como se estivesse cansada de fazer um percurso conhecido, que foi feito demasiadas vezes e que agora não quer voltar a percorrer."

(Roberto Saviano: "Regresso de Cabul")



Há palavras assim, pudicas. Outras há que são meretrizes e que estão abaixo do seu valor facial. Estas são, porém, muito úteis na conversação. Quando me perguntam se estou bem, não é para ouvir a resposta, é para passar à frente. Essa indiferença é preciosa, ao contrário do que parece, pois não alimenta o hipocondríaco em nós (e todos o somos um pouco).

Os verdes em anos é natural que considerem essa formalidade como pura hipocrisia, no que estão enganados, por não darem o devido valor ao controle das expressões que nos permite dizer só o que queremos, sem o ruído das nossas "tubagens".

Também é nesses que o amor não sofre de já ter percorrido o mesmo caminho e pode ser inventado pela magia própria das palavras.

Essa magia não se separou de todo das palavras interditas e que a língua resiste a repetir. Mas é como a espécie de alma que Proust atribuía, depois da destruição das coisas, ao olfacto e ao sabor, chaves para reviver o passado: só essas almas por muito tempo permanecem " a lembrar, a esperar, na ruína de tudo o resto, a carregar sem flectir, sobre a gotícula quase impalpável, o imenso edifício da recordação." ("À la recherche du temps perdu")

É esse ser invísivel, guardado pela linguagem da nossa memória, que 'desacredita' a palavra amor. Por isso mesmo, os que melhor esquecem são os que mais livres se sentem do embaraço de que fala Saviano.