terça-feira, 6 de março de 2012

A SEITA DOS EGOÍSTAS



O próprio título do romance "A Seita dos Egoístas" (Eric-Emmanuel Schmitt) é um paradoxo. Numa sociedade individualista como a nossa, a tendência geral só por ironia pode designar uma seita.

Mas esta é a história dum imaginário "filósofo" do século XVIII,  Gaspard Languenhaert, que tendo abraçado o solipsismo (defendia que se as nossas sensações estão na origem de toda a nossa experiência então nada de objectivo se pode provar), se convenceu (como um verdadeiro egoísta?) que era ele o centro do universo e a razão de ser de todas as coisas. Um passo mais no seguimento desta lógica e ei-lo a considerar-se o próprio Criador de todas as coisas.

É assim que de visita à terra dos seus antepassados, a personagem, acompanhada dum criado, interrompe a missa dominical. Mas vale a pena transcrever.

"Chegaram a meio da missa. O padre, no púlpito, entregava-se a uma prédica de admoestação diante duma multidão atenta, almas simples que bebiam a sua retórica dominical.

- Temei a Deus, ribombava o padre, vós estais negros, vós estais sujos, o vício apodrece a vossa pele, os miasmas pútridos da vossa concupiscência sobem até mim, das vossas mãos corre o estupro.

Os bons pais e mães de família, esgotados pelo trabalho de toda uma semana, limpos e endomingados, exultavam com a violência do sermão; eles, de resto, tão prudentes e laboriosos regozijavam de pensar, uma vez por semana, que podiam ser culpados, ou melhor capazes, duma tal falta de vergonha. No fundo, era só no tempo da missa que eles cometiam o pecado da carne, pelo menos em espírito. Verdadeiramente, era aquela a sua  homilia preferida.

- Os vossos olhos estão inchados de desejo, os vossos vícios fazem neles bolsas, e as vossas peles estão avermelhadas, tumefactas, crestadas à força de se esfregarem umas contra as outras. Os vossos intestinos sangram. A vossa cauda arde. Orai, meus irmãos, e confessai-vos. Só haverá salvação pelo arrependimento. Se o vosso remorso é sincero, talvez que Deus vos perdoe...

Gaspard marchou direito ao altar, os seus passos ressoando alto e distintamente sob a abóbada surpreendida. Subiu os degraus, parou diante do crucifixo, pôs-se de frente para a assembleia, abriu os braços e declarou numa voz de bronze:

- Não tenhais medo, fiéis, eu estou pronto a perdoar tudo. Roubai, matai, fornicai, pouco importa, fazei portanto o que quiserdes entre vós, criaturas, mas amai o vosso Deus, temei-O, respeitai-O. Esse é o caminho da vossa salvação. Aí está a via da vida eterna."(...) "Amai-me, retomou lentamente Gaspard, amai-me, e tudo será perdoado."

O investigador que tenta descobrir o segredo deste excêntrico (não tão diferente de nós quanto isso) perde-se no nevoeiro do tempo e da incerteza. No final, nem ele sabe se não imaginou tudo e se o nome que encontrou na Biblioteca nacional não foi inventado.

Dentro da história, algumas cenas como a da igreja, acima transcrita, são duma ironia incomparável. Afinal, há uma outra versão do "ópio do povo", que não parte do princípio de que este é um objecto passivo da "alienação", mas que faz jus a um uso discriminado e voluntário do "ópio". Claro que, nesse aspecto,  a televisão foi mais longe do que tudo o que se inventou até agora.

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