terça-feira, 13 de março de 2012

SANDRO

"Madonna del Magnificat" (detalhe, Benozzo Gozzoli)


"Por vezes, à noite, quando ela estava fatigada, ele fazia-me notar em voz baixa como ela, sem se dar conta, dava às suas mãos pensativas, o movimento solto, um pouco atormentado da Virgem que mergulha a sua pena no tinteiro que lhe estende o anjo, antes de escrever no livro santo, onde já está traçada a palavra 'Magnificat'. Mas acrescentava: 'Sobretudo não-lho vá dizer, bastava que ela o soubesse para o fazer de outra maneira."

"À l'ombre des jeunes filles en fleur" (Proust, citado por Eleonora Marangoni)



Odette de Crécy é vista por Swann como um Botticelli. Zéfora, filha de Jethro, é o modelo. Como diz o romancista, ele não se enamorou de uma mulher bonita (Odette não era, aliás, "o seu género"), mas de uma mulher que, primeiro, lhe pareceu bela. A pintura do grande Sandro é o "medium" para manter o primeiro sentimento. Enquanto o objecto do seu amor, a antiga 'cocotte', a 'dama de cor-de-rosa' que o narrador, em criança, vira em casa do tio celibatário, depois do tempo em que se dedicou a seduzí-lo e a encorajar os seus estudos sobre a pintura de Vermeer, obtido o casamento e a abundância material, suportava mal a "refocagem" botticelliana que o agora marido, por uma espécie de fidelidade, lhe fazia ainda.

Depois de um tempo, Swann até disso se desinteressou. O pintor florentino satisfez a sua necessidade de romanesco, transfigurando uma mulher que "não lhe enchia as medidas" e que nem sequer, verdadeiramente, o amava.

A mania (assim, a certa altura, o narrador lhe chama) de Swann de utilizar os modelos da arte para viver um amor inspirado não é tão rara quanto isso. Há uma dimensão no amor, entre um homem e uma mulher, que se alimenta da poesia que encontra mais à mão. No nosso tempo, o cinema e a música 'romântica' fornecem o suplemento necessário.

Porque o desejo não chega a formar sentimentos. E sem eles que relação pode durar? A poesia nutre os amantes durante o tempo perigoso da paixão.

Botticelli foi para Swann poesia e paixão, coisas em que a pobre Odette foi algo como o 'terceiro excluído', ou quando muito, a matéria indiferente duma incarnação do ideal.

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