sexta-feira, 31 de outubro de 2008

A DECADÊNCIA POLITICA


Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921)


"Se António Cândido, faltando à verdade da sua inteligência e à verdade da sua consciência, tivesse declamado pomposamente sobre a decadência política dos nossos dias, atribuindo-a aos manejos maquiavélicos do sr. Fontes, que Deus haja, uns aplaudiriam entusiasticamente, outros invertendo o caso, lançariam a responsabilidade dessa decadência às lucubrações misteriosamente perversas do sr. José Luciano, que Deus conserve, mas ninguém alcunharia de anti-patriótica a inspiração honrada desse discurso, tão belo pela arte com que foi dito, como foi grande pela sincera verdade com que foi pensado."

"Alguns homens do meu tempo" (Maria Amália Vaz de Carvalho)


Em relação a esta ideia do parlamentarismo, o que mudou?

A fulanização funciona melhor dentro do mesmo partido (o marxismo passou por aqui), quando duas ou mais individualidades disputam a liderança. Mas, fora disso, os partidos atribuem-se uns aos outros o vício duma doutrina ou o dum sistema.

Se decadência há (mas este é um termo fora de uso; teríamos de recuar à época dos Descobrimentos e da partilha do mundo para ele fazer sentido), ela deve-se, para a esquerda, à natureza de classe de todos os outros partidos e, para a direita, a um ideário perverso e desactualizado.

Não que a crítica ao sr. Fontes ou ao sr. José Luciano deixasse supor que um outro homem podia mudar tudo, porque o espírito partidário rapidamente transferiria para o sucessor o estigma do novo líder.

Nesse sentido, nada mudou. Os partidos referem-se muito mais a eles mesmos e aos outros partidos do sistema do que a quaisquer objectivos programáticos.

Onde quer que a opinião se organize, esta só poderá subsistir mantendo a todo o custo a diferença semântica que se justifica a si mesma, o que a simbólica das cores não ilustra tão mal quanto isso.


(José Ames)

A ABÓBADA


Starry Night Over the Rhone (Vincent van Gogh)


"Não esperes até que Deus venha a ti

e diga: Sou.

Um deus que confessa a sua força

não tem sentido.

Hás-de saber que o sopro de Deus te invade

desde o princípio,

e quando o coração te arde e nada trai,

é ele então que em ti cria."


"Orações das donzelas à Virgem Maria" (Rainer Maria Rilke)



Neste céu um deus como Jeová não tem lugar. O Deus dos Exércitos começa por impressionar pela força, mesmo se essa força não é a do número. Os povos da Cananeia tiveram a amarga experiência de não serem o povo eleito.

O Deus do poema não está separado.

Que traição é essa de que pode ser culpado o coração, o órgão do sentimento e desse "o que em mim sente está pensando"?

Não é o homem tornado deus para si mesmo o tema dessa traição?

Mas como é fácil trair sob a cúpula do Palácio de Cristal de que fala Sloterdijk!

Nós trocámos por ela a abóbada celeste.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008


Tormes (José Ames)

O HOMEM DOS BINÓCULOS


Fabre d'Eglantine (1750/1794)


"Ele deu voltas e mais voltas a esta vã alegação, repetindo toda a história do girondismo. Fabre não aguentou mais e, perdendo a paciência, levantou-se para sair. Mas, neste momento, Robespierre, assentando no homem dos binóculos as suas lunetas e o seu olhar fulvo, pediu-lhe que esperasse. E prosseguiu, furioso, sobre os intrigantes, as serpentes que era preciso esmagar (aplausos unânimes). "Falemos da conjuração, e não mais de indivíduos..." E nesse momento: "Peço que este homem que só se vê de binóculos e que tão bem sabe expor intrigas no teatro, se digne explicar-se aqui...E veremos como se sairá desta..."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


Como se vê, o Incorruptível faz exactamente o contrário do que diz, continuando a falar de indivíduos.

Fabre d'Eglantine tinha de morrer e para isso era preciso implicá-lo numa conjura imaginária. Robespierre podia "mandar julgar sem provas ou matar sem julgamento", desde que continuasse a ser temido.

O que ele sentia como um grande perigo era a acusação de indulgência. Por isso, contra o seu carácter, o seu pensamento de padre, tinha de estar sempre do lado da opinião mais violenta. Daí a sua aliança táctica com os hebertistas.

Mas pior do que parecer fraco perante os traidores e os inimigos da nação era prestar-se ao ridículo. Tudo nele era gravidade, mas a um passo de se tornar mecânico e imensamente cómico. E era por aí que Fabre o apanhava. Autor de mérito, "a sua natureza era fina, forte, ardente, mas não era elevada". O lado elevado do Incorruptível não lhe era acessível. Só via um homem de casaca verde impecavelmente escovada a saltar duma opinião para outra. Os binóculos que assestava na assembleia e nos oradores eram o símbolo duma distância mortal e de como no drama político, ele procurava, sobretudo, material para a peça que tinha na cabeça. Danton disse dele: "A cabeça deste homem é um repertório de ideias cómicas".

Apesar de inocente, Fabre d'Eglantine foi ao encontro da guilhotina. O seu destino é bem a prova de que a posição de observador não é sempre isenta de riscos.

Fabre podia ser considerado um percursor do jornalismo de guerra e, mesmo se escrevia para o teatro, sabia do que falava.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

ESTÁ LÁ?


"W." (2008-Oliver Stone)


O Bush de Stone não é a criatura que se esperava. E não é nada ao estilo de Michael Moore.

Acabamos até por simpatizar um pouco com este anão que calçou "as botas de sete léguas", este aprendiz de feiticeiro que não sabia no que se ia meter.

Como acontece sempre que e o ponto de vista psicológico é o predominante, não nos sentimos seguros no atribuir das responsabilidades que, no entanto, é preciso atribuir a alguém.

No filme, Bush (Josh Brolin) diz a Dick Cheney (Richard Dreyfuss) para conter o seu ego porque é ele, Bush, o presidente. Se a propósito do Iraque parece ter sido enganado por toda a gente, é preciso reconhecer que foi sobretudo enganado por si próprio, pelo seu pseudo chamamento evangélico.

Ele ocupa, de facto, o lugar da máxima responsabilidade, mas não há ninguém lá para responder.


(José Ames)

PASSAMENTO EM SAINT-CLOUD


Luís XIV e o irmão, duque de Orleães


"Com a partida do Rei a multidão esvaziou de Saint-Cloud pouco a pouco, de tal maneira que Monsieur morrendo, lançado num sofá (lit de repos) no seu gabinete, ficou exposto aos ajudantes de cozinha e aos sargentos, os quais, a maior parte por afeição ou por interesse estavam muito comovidos. Os primeiros oficiais e outros que perdiam cargos e pensões faziam vibrar o ar com os seus gritos, enquanto que todas aquelas mulheres que estavam em Saint-Cloud, e que perdiam a sua consideração e todo o seu divertimento, corriam de um lado para o outro desgrenhadas como bacantes."

"Mémoirs" (Duc de Saint-Simon)


Luís XIV chorou a morte do irmão, que amava muito. Quis o azar que nesse mesmo dia tivessem discutido por causa dos filhos (o duque de Chartres tratava mal a filha do rei). O rosto apoplético de Monsieur levou mesmo o irmão a aconselhar que fosse sangrado. Mas o médico de Monsieur estava velho e sangrava mal e este, para não lhe fazer uma desfeita, "teve a bondade de não querer ser sangrado por nenhum outro e disso morrer." (ibidem)

Saint-Simon, depois de relatar a cena do passamento, dedica um capítulo, como o teriam feito os clássicos latinos, ao carácter do homem.

"A sua familiaridade obrigava e a sua grandeza natural conservava-se sem repelir, mas também sem tentar os estouvados a abusar dela."

Vemos pela reacções dos que ficaram a velar o morto, em Saint-Cloud, como o desgosto mais sincero se aliava ao mais material dos interesses.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

O QUE CAI COMO A CHUVA


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"E nós, que pensamos na ventura

ascendente, sentiríamos a comoção

que quase nos conturba

quando algo de ventura cai."


"Décima Elegia de Duíno" (Rainer Maria Rilke-trad. de Paulo Quintela)


Não só "a chuva a cair sobre o reino sombrio da Terra na primavera", mas a própria luz do sol e os corpos pesados do amor.

Sem dúvida que a posição dos astros está na origem do ascendente. Olhamos para o alto à procura da permanência, do que sabemos estar sempre lá. A noite, uma bela noite dá-nos um sentimento mais profundo ainda do ascendente.

Não admira que o eclipse trouxesse o terror e as fases da lua a incerteza e talvez a primeira ideia da complexidade.

É por isso que a Terra, o olhar que acompanha os nossos passos no caminho é o símbolo duma felicidade que adormece e que se completa na morte.

Mas a Física abriu o firmamento em todas as direcções e a nova casa do homem já não tem alto nem baixo.


Oxford (José Ames)

ADI E A MANAGER



Uma mulher nua entrega-se a uma solitária celebração do corpo numa espécie de bunker alcandorado nos Alpes. Acena às sentinelas que a observam pelos binóculos. É Eva Braun.

Aleksandr Sokurov, em "Moloch" (1999), faz dela uma espécie de manager sentimental do tirano. Nas suas próprias palavras, é a única pessoa que lhe faz frente, que lhe diz algumas verdades incómodas sobre si mesmo, que é um hipocondríaco, temendo o cancro e a velhice, um fraco que perde o ânimo ao menor dos achaques, uma "mulher parida", como as mulheres gostam de dizer dos homens.

Essa audiência junto do ditador é essencial ao rendimento da personagem que ele quer representar para o mundo. Com Eva, tira a máscara e mostra-se como um Ubu em cuecas. Ela permite-se muito mais do que o bobo da corte, devolvendo-lhe a imagem dos afectos estropiados.

A descrição do ambiente paranóico do salão do Berchtesgaden, o castelo-fortaleza nos Alpes da Baviera, com alguns dos figurões do regime e as suas consortes, movendo-se como títeres ao sabor dos humores de Adi (Adolfo para Eva) na mais abjecta lisonja, é magistral.

Numa das excursões pelos caminhos da montanha para as quais o ditador arrasta o bando, depois de se ter rendido ao seu cansaço nervoso, no meio da mímica ridícula dos circunstantes, vemo-lo dançar desajeitadamente e até caçar borboletas.

Não podia ser maior o contraste entre a insignificância daquela corte e o poder devastador de que ela era aparentemente a cabeça.

Mas há melhor indício de que a "máquina" já funcionava sozinha?

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

TORMES REVISITADA


Telégrafo de Morse


"Vê aí o telégrafo!...Ao pé do divã. Uma tira de papel que deve estar a correr.

E, com efeito, duma redoma de vidro posta numa coluna, e contendo um aparelho esperto e diligente, escorria para o tapete, como uma ténia, a longa tira de papel com caracteres impressos, que eu, homem das serras, apanhei, maravilhado. A linha, traçada em azul, anunciava ao meu amigo Jacinto que a fragata russa Azoff entrara em Marselha com avaria!

Já ele abandonara o telefone. Desejei saber, inquieto, se o prejudicava directamente aquela avaria da Azoff.

- Da Azoff... a avaria? A mim?...

Não! É uma notícia."

"A Cidade e as Serras" (Eça de Queirós)



Continuamos a encontrar nos dias de hoje homens e mulheres que se poderiam rever naquela diferença de tipos que o romancista nos apresenta.

Mas enquanto a atitude do Zé Fernandes podia ser levada à conta do isolamento serrano de que ele não tinha culpa - e sabemos que, no fundo, havia aí muito de ironia, conhecendo nós a futura conversão do seu amigo -, o homem que hoje lhe corresponde é um refractário sem desculpa, não havendo já berças sem televisão. Como se diz nas empresas: resiste à mudança.

Quanto ao Jacinto que víamos no romance a ganhar corcova e com aquele tique de "apalpar a caveira", sobretudo saciado e definhando num perpétuo aborrecimento, no meio das últimas conquistas da "civilização", está hoje ainda mais transformado.

A sociedade de consumo, além de multiplicar o tipo jacíntico, graças à democratização, acabou de vez com o ennui.

E é a energia do ritmo frenético desse consumo que impede a conversão dos nossos "parisienses" em apóstolos da nova Tormes.

Sem que isso prejudique o enorme sucesso das escapadas do turismo.


(José Ames)

A TEMPESTADE


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"Mergulho com o meu tema na noite e no Inverno. Os ventos encarniçados das tempestades que açoitam há dois meses as minhas vidraças nestas colinas de Nantes, acompanham com as suas vozes, ora graves, ora dilacerantes, o meu Dies Irae de 93. Legítimas harmonias! Devo agradecer-lhes. Muitas coisas que me eram incompreensíveis tornaram-se-me claras na revelação destas vozes do oceano (Janeiro de 1853)."

"História da Revolução Francesa" (Jules Michelet)


Sessenta anos depois, num outro cenário de tempestade, o grande historiador procura recriar a Revolução. Ou melhor, procura compreendê-la segundo o modelo que aqui a natureza lhe oferece.

Não são as forças humanas, quando os presumíveis autores deste ou daquele raio de energia são, eles próprios, tragados pela voragem, não é a razão, nem a vontade que podem proporcionar-nos esse modelo.

A História como sujeito não tinha conquistado ainda os espíritos, embora Hegel tivesse descido à terra há mais de vinte anos. Nem o seu mais célebre discípulo, em revolta contra o mestre, tinha completado o seu sistema.

Também não é à interpretação clássica que Michelet recorre. Aqui os deuses antigos nada têm que dizer. Quando muito, uma misteriosa sintonia do homem com o universo que empresta ao vigilante na tempestade os órgãos de um médium.

A revolução como choque de forças cegas, mas em que se distingue, apesar de tudo, num outro plano, a órbita majestosa das grandes entidades: o Povo, a França...

sábado, 25 de outubro de 2008

A COMPLACÊNCIA



"O amor é uma doença, sabemo-lo, ou melhor, não o sabemos suficientemente. Casanova faz aqui um estudo exaustivo (pensamos, uma vez mais, no narrador da Recherche, cujo verdadeiro órgão sexual, é, afinal, a inveja). Mas Casa colabora com a sua patologia, mostra-se activo, dir-se-ia que quer esgotar a força. Chegamos, assim, à explosão última antes do risco de depressão e a uma admirável descrição da possessão maníaca."

"Casanova, o admirável" (Philippe Sollers)


Para dizer como Sollers, qual é o verdadeiro órgão sexual do libertino?

Para sabermos isso, temos de afastar o véu de Maia da primeira leitura, da explícita procura do prazer através dos encontros amorosos.

Proust talvez tenha sido um snob impenitente, mas apesar de não ter ilusões sobre a "nata" social em que procurava integrar-se e a que se julgava superior pelo espírito, não deixava de se sentir um estranho, como o Swann abandonado, do fim da vida, que reconheceu no judaísmo a sua verdadeira casa.

Na grande narrativa, ele restabelece a justiça, apresentando a elite mundana desprovida de quaisquer títulos à auto-justificação. Se esta é a obra da inveja, é duma inveja julgada que em vez da frustração produz o olhar compassivo sobre todo o humano.

Mas Casanova, a quem a velhice obriga à revisão da vida e à triste prudência, escreve para salvar a sua colecção, o seu catálogo donjuanesco, da deformação da memória e do esquecimento.

E Sollers vem em defesa do falso sedutor: "Brincou, por vezes, com alguns dos seus partenaires mas, como ele próprio explica, era a vontade deles, não a sua, e qualquer outro teria abusado igualmente deles, e tê-lo-ia feito menos bem."

Deveríamos então tomar à letra a sua divisa: "Sequere Deum"? E seria a complacência o "órgão sexual" deste devoto paradoxal?


Braga (José Ames)

A CONSCIÊNCIA FORA DO SISTEMA


http://packphour.files.wordpress.com/


"A resposta de Luhmann é ver o indivíduo como um observador da sociedade, mas não tendo existência dentro da sociedade. 'O indivíduo deixa o mundo para olhar para ele. Ele não pertence a qualquer [sistema social] em particular, mas depende da sua interdependência.' A consciência individual então claramente observa a sociedade e está dependente da sociedade, mas não é, no esquema de Luhmann, parte da sociedade."

"Niklas Luhmann's Theory of Politics and Law" (Michael King e Chris Thornhill)


Aqui está um repto lançado ao senso comum, que pretende que a sociedade seja constituída por indivíduos (evidentemente, com os seus estados de consciência).

Mas o caso é que a sociedade, enquanto sistema, é comunicação e não consciência. Só enquanto comunicadores, os indivíduos podem ser sociedade.

E é como dizer que pensar a mais simples operação de aritmética não está ao alcance de um grupo, mas só de uma consciência. Então, essa consciência já não faz parte do grupo.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

CANTAR ÀS ESCURAS


Friedrich Nietzsche (1844/1900)


"(...) nesta (a profetologia) trata-se de dizer verdades precárias de forma a que aquele que fala não se destroce com aquilo que sabe e que diz. A cada passo vamos ter boas razões para nos lembrarmos da frase de Nietzsche de que nós temos a arte de não morrermos da verdade. Por certo, a arte tem de ter a seu lado uma filosofia entendida em cantar às escuras."

"O Estranhamento do Mundo" (Peter Sloterdijk)


A nossa morte está sempre no futuro. Se essa ideia pode destroçar aquele que sabe é porque o pensamento se tornou depravado.

A arte de viver seria, então, não o entretimento duma ilusão, uma embriaguez feita de um intermitente "blackout", mas a tarefa de salvar o pensamento de si mesmo.

Porque o futuro não pode ser sentido ( e o pressentimento é uma ideia que nos afecta). Não morrer da verdade é por isso separar a ideia da coisa.

A frase de Nietzsche sugere que se fôssemos lúcidos ficaríamos à mercê de um silogismo.


(José Ames)

A CABAIA DE EÇA


Eça de Queirós na sua cabaia


A vedeta da Casa de Tormes, em que Eça viveu uns escassos três meses a sua epifania serrana, é um objecto estranho que não pertence ao mundo da sátira social que é o dos seus romances.

Não são os livros que vieram da sua casa de Paris, os objectos pessoais, a estante onde escrevia de pé (a cicerone explica-nos que esse hábito se deve aos problemas gastro-intestinais do romancista), não é a rústica mesa onde terá comido o célebre arroz de favas, a vedeta da Casa-Museu é a cabaia, uma espécie de quimono que um amigo original lhe ofereceu e que ficava demasiado larga para os seus ossos.

A cabaia, dentro da sua vitrina, atrai-nos como um farol. É o seu exotismo que confere a tudo o resto um ar de família. Ela é o símbolo de tudo o que Eça não escreveu, do mundo que nunca pôde conhecer, apesar de ser viajado.

Afinal, nenhuma vida é completa sem a sua cabaia.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008


Braga (José Ames)

A PRISÃO ELECTRÓNICA




Tivemos há anos um crítico de televisão que disse uma vez numa entrevista que tinha dezassete anos de prisão electrónica. Ora, essa afirmação era o indício de que tinha demasiadas razões para não mudar de ideias.


Não adianta discutir com um homem assim. É melhor tomá-lo, com as suas ideias, como uma natureza. Uma árvore não pode deixar de ter os nós que tem. Se a sua veemência era descortês e surda, era a atitude de um homem que precisava de falar mais alto para não se trair. Como a prisão sem metáforas que tinham conhecido alguns dos seus amigos, os milhares de horas agarrado ao posto da televisão eram as provas dadas que lhe permitiam uma superioridade moral e o direito de profetizar.


Mas fechar a televisão seria a única crítica consequente. Ele dizia amá-la, e que era por isso que se doía. Sonhava com um programa ao serviço do povo, porém, era óbvio que o que ele queria era um jornal com outra doutrina, como se as ideias fossem o conteúdo da televisão.


Pensar que um auditório de milhões pode ser influenciado pela pregação directa ou subliminar é a convicção da publicidade e dos ideólogos de todos os partidos. Mas está longe de estar provado que o telespectador seja um passivo ruminante de ideias e sugestões. O poder da televisão talvez que não se conte em votos, embora haja uma política que é um jogo de pose e maquilhagem diante da câmara. Quando a política pode mudar por um sim ou por um não, tudo se transforma em espectáculo. O maniqueísmo é a única maneira de entrar no jogo, e o espectador deixa de se divertir no momento em que a televisão se assume como instrumento político. É então quando se mostra mais utilitária e mais imprescindível à participação de milhões de pessoas que há razão de dizer que a política é feita pela televisão.


Vê-se assim como a igualdade dos partidos no tempo de utilização e no aproveitamento técnico do medium redunda em pura tautologia. É o acaso que decide a votação dos indecisos e o que importa para os políticos é estar presente nesse jogo. Mas ninguém pensa o seu voto a partir da televisão, quer a democracia funcione, quer a ditadura. Porque neste caso é o contrário do que diz o poder que é a verdade, e isso não é ainda um pensamento político.


A juventude, que tem menos resistência cultural à televisão, é quem critica a estupidez electrónica e o império de imagens e de som a que as famílias se submeteram. Há que tirar a lição desta inteligência mutilada e desta educação das crianças pelo princípio do prazer. Ser prisioneiro duma profissão que se serve do medium electrónico, não é o melhor caminho para o explicar.


Mas, no fim de contas, a fé não se discute e só a hipocrisia merece ser desmascarada.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

A RELIGIÃO NATURAL



"Deste modo, podemos concluir que em todas as nações que abraçaram o politeísmo, as primeiras ideias religiosas não surgiram da contemplação das operações da natureza, mas da preocupação com os factos da vida e das incessantes esperanças e medos que animam a mente humana."

"História natural da religião" (David Hume)


Por outras palavras, a natureza ensina-nos que tudo pode ser traduzido num conjunto de coisas, num único princípio ou num só desígnio. Einstein ainda procurava uma Teoria do Tudo.

Esta maravilhosa unidade é, no fundo, a unidade do sujeito. As contradições surgem quando o sujeito encontra um outro sujeito. As intenções opostas e os poderes contrários, as acções desencontradas e o torvelinho das paixões caracterizam o mundo humano.

E é essa a primeira experiência do homem, primeiro na família, depois no grupo. Começamos, como diz Hume, por interpretar a natureza segundo o modelo das paixões humanas.

O monoteísmo pressupõe outros monumentos que nos permitam considerar o humano como um objecto fora de nós.


(José Ames)

AS INVASÕES BÁRBARAS


"Les invasions barbares" (2003-Denys Arcand)


Um homem de meia idade, Rémy, vai morrer, com o sentimento duma vida frustrada. Não foi um bom pai, nem um bom marido e, já que é um literato, nem sequer escreveu um livro.

Como no filme de Capra "It's a wonderful life!" (1946), em que um anjo concede à personagem a possibilidade de ver como o mundo seria se ela não tivesse existido, Rémy descobre que, afinal, foi tendo sido exactamente como foi, amando os livros, a música e as mulheres que foi capaz de transmitir aos filhos e aos amigos a fórmula da felicidade.

Pelo meio encontramos o drama dos hospitais públicos que o filho, milionário, sabe, contornando os obstáculos (entre eles um sindicato instalado na sua renda demagógica), à custa da persistência e do suborno, transformar em condições de privilégio para poupar as convicções socialistas do enfermo.

A piedade para com as ilusões paternas vai ao ponto de o levar a comprar a visita de alguns ex-alunos e a mover meio mundo para que o velho não se sinta só.

O título do filme é uma metáfora que exprime o mundo sempre novo e estranho com que um homem que já viveu se tem de confrontar. Os bárbaros também podiam ser a própria doença ou o 11 de Setembro, mas, na verdade, é todo um mundo pessoal que abre fissuras sob o ataque do presente, e é isso a velhice.

terça-feira, 21 de outubro de 2008


Chester (José Ames)

A INTIMIDADE CODIFICADA


Niklas Luhmann

"Isto mostra claramente que o amor resolve os seus problemas de comunicação duma maneira completamente única. Para pôr a questão paradoxalmente, o amor é capaz de realçar a comunicação prescindindo de qualquer comunicação. Faz uso, em primeiro lugar, da comunicação indirecta, confia na antecipação e no ter já compreendido. E assim o amor pode ser prejudicado pela comunicação explícita, por distintas perguntas e respostas, porque tal abertura indicaria que alguma coisa não foi naturalmente compreendida."

"Love as passion" (Niklas Luhmann)


Diz também Luhmann que o esforço de compreensão no amor é tão estrénuo que naturalmente existe a tendência da pessoa se apoiar nos sentimentos, o que teria o inconveniente de "impedir qualquer solução institucional para a relação do amor e o casamento."

Por aqui se vê que o amor entregue a si próprio, se pudesse alimentar-se apenas de si, é anti-social nessa secundarização da linguagem.

E é um paradoxo que, ao mesmo tempo, seja uma condição de sobrevivência da sociedade. Luhmann, é verdade que não se refere ao instinto sexual, mas ao medium, com uma semântica própria, chamado amor, em simbiose e diferenciação com outros sistemas de comunicação.

Uma tendência acentuada para a exclusividade dos sentimentos criaria por isso um problema de comunicação entre o medium e o seu ambiente, para usar a terminologia de Luhmann. Isto se todas as coisas da natureza não tivessem o seu limite...o artificial é que pode não ter, como o poder ou a ideia do movimento perpétuo.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

PROCURA-SE OUTRA TEORIA


Adam Smith (1723/1790)


"Do capitalismo, porém, só agora se pode dizer que representou sempre mais do que "uma relação de produção"; desde sempre, a sua pregnância ultrapassou amplamente o que a figura intelectual de "mercado mundial" podia designar. Ele implica o projecto que consiste em transpor a totalidade da vida do trabalho, dos desejos e da expressão artística dos seres para a imanência do poder de compra."

"Palácio de Cristal" (Peter Sloterdijk)


Como diria Niklas Luhmann, o mercado é um sistema para redução da complexidade. Nunca qualquer sociedade que fosse se identificou com as suas "relações de produção" ou as chamadas leis da oferta e da procura.

Mas para podermos lidar com a realidade social, devemos sempre interpretar, servindo-nos para isso duma teoria.

A "Mão Invisível" de Adam Smith que faz com que, no fim de contas, as coisas dêem certo é isso mesmo ( e vem depois da Providência Divina). E é fácil perceber como a ideia de sistema, que veio a seguir, é uma variante dessa espécie de princípio homeostático.

A tese de Sloterdijk diz-nos que a complexidade da sociedade moderna já não pode ser interpretada ( e reduzida) pela ideia de sistema. Descobrimos que as cumplicidades sociais são pelo menos tão importantes quanto as divisões e diferenciações estabelecidas pela teoria.

A informação como equivalente geral ultrapassa o domínio da tecnologia para se impor sob a forma do poder de compra. O insidioso princípio é o de que todas as diferenças se reduzem a isso e são tão moralmente neutras quanto a própria informação.


(José Ames)

A PREGUIÇA



"É preciso de resto acrescentar que não se pode imaginar quanto, duma maneira geral, o Sr. de Charlus podia ser insuportável, mesquinho, e até, ele tão fino, estúpido, em todas as ocasiões em que entravam em jogo os defeitos do seu carácter. Pode-se com efeito dizer que estes são uma doença intermitente do espírito. Quem não notou o facto nas mulheres, e mesmo nos homens, dotados de notável inteligência, mas atingidos pela nervosidade?"

"Sodome et Gomorrhe" (Marcel Proust)


O carácter, as disposições permanentes da personalidade, impõem assim à inteligência os seus próprios fins, ao sabor das nossas simpatias ou antipatias. Mas este instrumentalismo perderá a sua validade quando as paixões não estão presentes?

A "Natureza" teria criado, assim, um órgão independente das necessidades do indivíduo e que só funcionaria bem quando os homens "estão felizes, calmos e satisfeitos com o que os rodeia"?

Não é de crer que, mesmo nessas situações, quando não se fazem sentir "os defeitos do carácter", a inteligência está sempre ao serviço de um motivo?

É o que ilustra a neurastenia, por exemplo. Não nos faz estúpidos, mas tira-nos a energia.

Alain dizia que não há, talvez, vontades boas e vontades más, mas a vontade e a preguiça.

Pensar mal, nesse sentido, seria uma das formas da preguiça.

domingo, 19 de outubro de 2008


Lisboa (José Ames)

PARADOXOS DA EFICÁCIA




"Esta guerra suja foi travada contra a ETA, mas um terço das vítimas, que incluíram um velho pastor francês, uma adolescente e um casal de ciganos, nada tinha a ver com o grupo. Foi levada a cabo por um bando que se intitulava Grupos Antiterroristas de Liberación, popularmente conhecido como GAL. O grupo foi fundado e financiado pelo Ministro do Interior do governo socialista de Felipe González."

"Fantasmas de Espanha" (Giles Tremlett)


O caso dos GAL ilustra duma maneira exemplar a natureza inumana do poder que, tal como os explosivos e a força concentrada deve ser sempre contido e vigiado.

Não se pode dizer que o PS e o seu secretário-geral fossem particularmente sedentos de poder ou tivessem um espírito anti-democrático. Com o aparelho do franquismo ainda a funcionar, durante a transição política, era simplesmente demasiado tentador não responder ao terrorismo com os meios disponíveis e, aparentemente, mais eficazes.

O resultado, que é muito bem analisado pelo autor da obra citada, foi a corrupção da polícia e a contaminação do próprio Estado. A desmoralização do partido no governo, de que as posições de Felipe González dão uma ideia, e a perda de confiança dos eleitores foi a sanção mais do que merecida.

O conceito de eficácia é simplista, quando aplicado às questões políticas e sociais, porque os efeitos de qualquer medida devem ser analisados no tempo sem esquecer que a percepção sobre ela pode mudar entretanto. A ideia de pôr fim ao terrorismo usando os métodos deste é também fatal para a democracia além de que, por essa via, se atrai mais violência e irracionalidade do que aquela que se visava combater.

sábado, 18 de outubro de 2008


(José Ames)

FATAL ANALOGIA


http://wagbarart.files.wordpress.com

"A seguir volto-me para o ateu que, afirmo, apenas o é nominalmente e nunca o pode ser com sinceridade e pergunto-lhe se não há, a partir da coerência e aparente simpatia em todas as partes deste mundo, um certo grau de analogia por entre todas as operações na natureza, em qualquer situação e em qualquer época. (...) Tendo obtido esta concessão, levá-lo-ei um pouco mais longe no seu recuo e pergunto-lhe se não é provável que o princípio que inicialmente configurou e ainda mantém ordem neste universo não apresenta também alguma remota e inconcebível analogia com as outras operações da natureza e, entre o resto, com a economia da mente e do pensamento humano."

"Diálogos sobre a religião natural" (David Hume)


No século dezoito ( e até Kant ) ninguém se perguntava se o facto de existir uma analogia entre a natureza ( as leis que nela descobrimos ) e a razão humana não se deve ao modo como a podemos compreender, aos órgãos que nos servem de intermediários e de tradutores nessa apreensão e compreensão.

Tiremos os óculos escuros e a paisagem é outra. Com olhos de gato não veríamos o mundo da mesma maneira. Se não tivéssemos que nos movimentar no espaço, talvez não precisássemos de calcular nem, se calhar, do órgão da razão.

Que "simpatia" pode haver entre as partes deste mundo que não seja, fatalmente, antropologia?

sexta-feira, 17 de outubro de 2008


Ludlow (José Ames)

O PIOR DOS REGIMES, EXCEPTO...



"Na verdade, ele dá-nos uma caracterização detalhada dos sistemas políticos democráticos, identificando certas condições necessárias (ou pelo menos prováveis) da regra democrática. Estas são, primeiro, a diferenciação interna do sistema político em política, administração e público; segundo, a limitação formal do exercício do poder pela lei; terceiro, a existência de um certo número de partidos políticos e outros mecanismos para o poder se auto-testar e para a manutenção de opções no sistema político; quarto, a implementação de ulteriores meios semânticos (leis do estado, constituições, etc.), pelas quais o sistema político estabiliza os seus subsistemas internos uns contra os outros e se protege da conflação com outras arenas da comunicação social."

"Niklas Luhmann's Theory of Politics and Law" (Michael King e Chris Thornhill)


Poder-se-ia dizer que, segundo a teoria dos sistemas, a principal vantagem da democracia, em relação a todos os outros regimes, tem a ver com a funcionalidade e a eficácia, muito mais do que com quaisquer razões de ordem ética.

À complexidade da sociedade moderna, o sistema democrático responderia com a complexidade da sua diferenciação nos vários subsistemas e do seu mais articulado jogo de equilíbrios.

O ideal da justiça não poderia, de resto, ser perseguido numa sociedade em bloqueio, artificialmente simplificada e incapaz de se adaptar ao seu meio ambiente. Todos os sistemas, em comparação com a democracia, representariam, pois, organizações mais simples que interagiriam com maior rigidez nas situações novas e se veriam, por isso, na necessidade de recorrer mais amiúde à violência.

O mesmo pensamento levar-nos-ia, por outro lado, a reconhecer que a democracia não oferece já qualquer vantagem quando aplicada a sociedades realmente menos complexas, podendo ser, pelo contrário, uma fonte de complicações e de ineficiência.

Também se poderá ver aqui como a questão do poder , até do ponto de vista da técnica da adaptação, é crucial. E um dos trunfos da democracia é precisamente o de limitar a irracionalidade do poder, que é a principal causa da inadaptação e da violência.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008


(José Ames)

A INSUSTENTÁVEL LIGEIREZA


W.A.Mozart (1756/1791)


"Isso faz-me pensar em alguém (um poeta surrealista na época) que achava que faltava a Casanova o "sentido do trágico". Mas, pelo contrário: o sentido do tempo, do instante, a sensibilidade para cada situação do tempo, implicam uma fina percepção do negativo. O próprio Stefan Zweig achava Casanova ligeiro: "Ligeiro como uma efémera, vazio como uma bola de sabão." Aí estão os propósitos superficiais da pseudo-profundidade (muito espalhada e, finalmente, clerical). Mozart é dilacerante e ligeiro. O amor, tão forte como a morte, é feito para triunfar dela. Trata-se de ser atento e sério, eis tudo."

"Casanova, o admirável" (Philippe Sollers)


Nesta cópula está a solução para um enigma que há muito me questionava. Como conciliar o autor das cartas à Bäsle, em que se puxam as barbas do menos sisudo, e os compassos verdadeiramente trágicos do Requiem? Era o mesmo homem, num período feliz da sua vida, mal saído da infância , e mais tarde (mas não muito mais tarde, lembremo-nos de que morreu jovem), às portas da morte?

Não, não. O que Sollers diz não é que ele tenha sido, em tempos diferentes, ligeiro e grave, mas que no mesmo momento era ambas as coisas. Que o segredo dessa música não está no temperamento, mas na lucidez.

A escatologia da correspondência seria tão trágica quanto a abertura do Don Giovanni. Ele ri-se sobre o abismo.

Como em Casanova, no mar dos acasos, os encontros são o aceno de Deus. Na música e no amor, a mesma liberdade.

Oiçamos as palavras deste libertino tão mal classificado:

"Aqueles que, independentemente de tudo, adoram a Providência, só podem ser bons espíritos embora culpados de transgressão."

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

OS DESPOJOS DO DIA


A história de Stevens (Anthony Hopkins), em "The Remains of the Day" (James Ivory, 1993), é a tragédia de um homem que por formação e pela função que exerce não pode exprimir os seus sentimentos.

Assaltam-nos os lugares-comuns sobre a frieza dos Ingleses em geral, e é por isso que na cena final da despedida vemos a frustração do antigo mordomo de Lord Darlington com os olhos da antiga governanta Miss Kenton (Emma Thomson) e os nossos preconceitos, apesar de, supostamente, a narração ser de Stevens. E é como se ele de facto julgasse a nossa incompreensão.

Mas para Stevens é apenas um destino que ele aceita sem se questionar se deveria ou poderia ser outro. E então a proverbial contenção expressiva parece-nos uma espécie de ascetismo, cada vez mais exótica num mundo que exige de todos que se exprimam, porque a "libertação" do que somos é uma espécie de última fronteira que nos separa da total visibilidade do poder.


Praia das Ilhas (José Ames)

O GRANDE TÁCTICO



"A minha artimanha foi bem sucedida porque não era estudada, porque não podia ser prevista. É o que acontece com o exército em geral, uma artimanha de guerra deve nascer, na cabeça de um capitão, da circunstância, do acaso e da experiência na pronta percepção das relações e das oposições dos homens e das coisas."

"Histoire de ma vie" (Giacomo Casanova, citado por Philippe Sollers)


Que vem fazer a arte da guerra nas memórias do grande sedutor? "À l'amour comme à la guerre?" Será porque o sedutor conquista, faz da posse o seu objectivo, mas o que ele quer, como o diabo, é a alma.

O catálogo de Dom Juan podia ser feito só de juras, se a honra estivesse sempre em alta. Mas o sedutor conhece melhor a sua presa e poderia fazer da célebre ária do "Rigoletto" sobre a volubilidade das mulheres a sua cartilha.

Mas voltando à linguagem militar, podíamos resumir assim a ideia de Casanova: o quartel-general (a ideia feita) é completamente inapta para fazer mudar a sorte no terreno. O bom general, como Bragation, em Tolstoi, sanciona sempre a manobra que o homem no terreno "vislumbra" ou se vê obrigado a executar.

Casanova também preferia deixar-se guiar pela intuição, o que ele chamava de "seguir Deus".

terça-feira, 14 de outubro de 2008


(José Ames)

A CIA E A TEORIA DOS JOGOS



"Destruir depois de ler" (Ethan e Joel Coen, 2008) ou de como a obsessão duma mulher por dar uma volta à sua vida sentimental, através duma cirurgia estética, se parece com a complexidade política nos envolvimentos da CIA, quando as personagens se entregam aos seus jogos de decepção e mistificação numa época em que nem o maniqueísmo político facilita as coisas.

O tom de comédia acaba muito naturalmente na violência extrema que é a imagem de marca dos Coen. E ficamos cientes de que a bagunçada final em que já ninguém tem a pretensão de compreender o que aconteceu e a veemência dos fucks praguejados é a medida da impotência de todos é a única coisa a que pode aspirar a "Intelligence". Talvez que a teoria dos jogos possa, afinal, explicar tanta ineficiência.

Nesse sentido, uma comédia como esta vai muito mais longe do que a crítica tradicional do poder da CIA ao denunciar o seu fundamental anacronismo.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008


Gloucester (José Ames)

AUTORICTAS


A Autoridade consulta a Lei Escrita (Constantino Brumidi)


"A sua marca distintiva (da autoridade) é o inquestionado reconhecimento por aqueles que são chamados a obedecer; nem a coerção, nem a persuasão são necessárias (um pai pode perder a sua autoridade quer batendo no seu filho quer começando a discutir com ele, quer dizer, tanto comportando-se como um tirano quanto tratando-o como um igual)."

"On violence" (Hannah Arendt)


Este raciocínio é cristalino e parece poder servir de norma para definir o conceito de autoridade. Mas logo nos apercebemos de que há qualquer coisa na vida moderna que mina os próprios fundamentos desse fenómeno de "governo do homem pelo homem".

Compreendemos que o saber e o conhecimento, adquiridos pela experiência ou pelo estudo, estão na base desse fenómeno e que são sempre esotéricos quando a autoridade está em causa. Eles são uma espécie de monopólio sacerdotal que se impõe como um carisma, sem necessidade de violência nem de argumentação.

Mas não é por acaso que vivemos na chamada sociedade do conhecimento e talvez seja essa a marca da verdadeira democratização.

No exemplo do pai que argumenta com o filho (que o trata como igual, nas palavras de Arendt) é claro que nem a paternidade, nem a diferença de idades reivindicam qualquer privilégio.

Dá-se de barato que o saber e o conhecimento estão ao alcance de todos, mesmo dos que não atingiram ainda a "idade da razão". E a enciclopédia das enciclopédias, que se abre com um simples clique do rato, pode confundir qualquer adulto que discuta com uma criança. É que um está em frente ao outro, nessa situação, não como pessoa real ou ser político, mas apenas enquanto utilizador da tecnologia.

A informação disponível passa, então, a ocupar o lugar do saber e do conhecimento e a autoridade, sob todas as suas formas, declina na mesma medida.

sábado, 11 de outubro de 2008


(José Ames)

A FUGA DA BASTILHA


A tomada da Bastilha


"Que entendes tu, diz-me, por esse sentimento de gratidão com que julgas teres-me cativado [...] raciocina melhor, criatura mesquinha, que fazias tu quando me socorreste? Entre a possibilidade de seguires o teu caminho e a de vires em meu auxílio, escolheste a última como um movimento que o teu coração te inspirava [...] Entregavas-te, portanto, a um prazer? Por que diabo queres tu que eu seja obrigado a recompensar-te do prazer que a ti própria proporcionaste?"

"Infortunes de la Vertu" (Marquês de Sade, citado por P. Klossowski in "Sade, meu próximo"


O paradoxo do masoquismo está todo neste raciocínio.

Desde que acreditamos que se pode ter prazer no próprio sofrimento, isto é, quando a natureza e o bom senso parecem enganar-nos tão completamente, somos levados a estender a cínica inquisição à própria "Vida dos Santos".

Donde vem esta "liberdade" do juízo que ataca as mais veneráveis tradições? Sade compreendeu muito bem essa liberdade que resulta do acto de revolta contra Deus.

O homem que responde só perante si próprio corresponde à situação do homem que, em espírito, se libertou da Bastilha.