sábado, 30 de setembro de 2006


(José Ames)

JOGOS DE ESPELHOS


Maximilien de Robespierre (1758/1794)

A propósito do Compromisso Portugal, ontem, no "Público", Vitor Dias teve o seguinte pensamento digno de Robespierre:

"Apesar de não ter o hábito ou o método de explicar ou associar mecanicamente as opiniões das pessoas ao seu estatuto social ou nível de rendimentos, creio que teria sido uma bela ideia se, no início de cada intervenção, o ecrã electrónico passasse a informação dos vencimentos, mordomias e bens dos oradores, o que decerto seria muito esclarecedor para os 200 mil trabalhadores da função pública cujo despedimento foi ali proposto, na medida em que ficaria patente que os autores da proposta pertencem a "outro mundo".

Seria um bela censura, como que indexar a verdade à palavra sans-culotte.

Mas a questão tem alguma pertinência.

Já houve um filósofo que disse que o pensamento dum homem é a sua função (Alain). Parece-me mais correcto do que dizer que é o seu rendimento.

De facto, um militar pensará como um militar, um bispo como um bispo, um ministro como um ministro, um deputado como um deputado e um sindicalista como um sindicalista, em vez de o fazerem de acordo com a sua conta bancária.

Um governante não é livre de dizer o que pensa (se não pensar como governante) e o chefe da oposição também não.

Quando ouvimos alguém num cargo de representação ser contrariado, nas suas opiniões, por um outro representante, temos a ilusão de que ambos se referem à verdade, mas que cada um tem um ponto de vista diferente.

Seria, contudo, mais adequado dizer que o pensamento dum é condicionado pelo do outro, independentemente da verdade.

É por isso que o sistema de partidos, considerado fundamental para a democracia, precisa de ser compensado por um amplo espaço de reflexão livre.

sexta-feira, 29 de setembro de 2006


Alfama (José Ames)

A BOLA DE CRISTAL



"A esperança da pensão possuía-os de corpo e alma. Ela chegar-lhes-ia um dia como a graça, a pensão, desde que tivessem a força de esperar um pouco antes de marar duma vez. Não se sabe o que é recuperar e esperar alguma coisa enquanto não se observou o que podem esperar e recuperar os pobres que esperam uma pensão."
"Voyage au bout de la nuit" (Louis-Ferdinand Céline)

No debate sobre o futuro da Segurança Social, todos farão alguma ideia do que deveria ser uma pensão digna. Não, evidentemente, a espécie de sorte grande, quando comparada com a miséria em que vegetavam os pobres de Céline, mas uma expectativa deduzida do que já foi alcançado entre nós e em outros países.

Mas que haja um problema com este sistema, a funcionar, "tant bien que mal", ao longo já de alguma décadas, é o que não parece evidente para todos.
O governo fez as suas contas e pretende que alguns pequenos cortes são necessários, invocando o factor demográfico e o realismo económico. E, prudentemente, usa de algum pessimismo (vamos continuar, por exemplo, na cauda da Europa) - pois não era assim, criando uma margem de segurança, que nós faríamos, se tivéssemos que projectar o nosso futuro?

Mas não digo que o governo escolheu o melhor caminho. É evidente que o governo não sabe qual é o futuro. Fez apenas uma projecção a 50 anos. Mas sei que quaisquer sacrifícios, qualquer que seja o caminho, encontrarão sempre uma forte oposição. Somos todos filhos, ou adoptados, da sociedade de consumo.

Entre os críticos há os que não reconhecem sequer a existência dum problema. A questão demográfica e a da possível falência do sistema parecem-lhes encenadas, como outros acham que o 11/9 foi encenado.

Pobre Descartes que assentava o seu cogito na evidência! A evidência já não é o que era neste mundo virtual e de manipulação da imagem.

Outros desvalorizam as consequências, apostando na cobertura do Estado, porque o Estado não pode falir! (o que se passou recentemente na Argentina não serviu de lição).

Entre os problematizantes da direita, temos uma solução que já alguém definiu como partir as pernas ao coxo para o pôr a rastejar.

O remédio da esquerda é, no fundo, anti-capitalista e, por isso, não passa duma declaração de princípios (sem qualquer efeito sem uma mudança de regime), acompanhada duma projecção voluntarista (não devemos continuar na cauda da Europa!) e de novos impostos, porque a distribuição é injusta e os sacrifícios pedem-se sempre aos mesmos.

Sendo assim, parece-me que não temos nada de válido a opor aos sacrifícios, a não ser os nossos sentimentos e a nossa rebeldia.

quinta-feira, 28 de setembro de 2006


"Cabeça" (José Ames)

quarta-feira, 27 de setembro de 2006

A NOSSA VIDA EM FILME




"Donde vem esta inesperada vulnerabilidade às teorias conspirativas e a esta versão delirante sobre uma "verdade" escondida do 11 de Setembro?Pois muito simplesmente do serviço público de televisão, que alimentando todas as dúvidas e sem prevenção nenhuma especial, transmitiu 4 vezes (quatro) um suposto documentário com esta tese. Apenas por curiosidade, o site da Wikipédia não deixa de notar: "Portuguese public TV Station RTP showed the documentary on the 10 of September, 2006 in prime time hours"... o que só aconteceu mais num canal pago australiano e noutro paquistanês privado. Ainda a enciclopédia não sabia das repetições. Como se dizia do Marquês de Porras y Porras, o problema não estará tanto no facto em si, mas na insistência."

(Manuel Queiró em "O Público" de 27/9/2006)

O efeito desrealizante da televisão é por de mais subestimado. A abordagem da actualidade por este medium nunca é informação verdadeira, mas sempre, no fundo, entretenimento.

Para além do facto da política se fazer cada vez mais para as câmaras, os nossos níveis de percepção foram já demasiado modificados por esta tecnologia, para sabermos se estamos ainda no mundo da ilusão e do espectáculo ou se já saímos dele.

O nosso nível de credulidade perante as dúvidas semeadas sobre o 11/9 por aquele programa parece ter atingido um ponto crítico.

O ponto crítico é este: não foram precisos 50 anos, nem que nos tornássemos revisionistas da História, como o que sucede com os que agora põem em causa a realidade do Holocausto.

Não. Tanto o ataque às Torres Gémeas, quanto a reacção dum Bush estupidificado quando recebeu a notícia, passaram quase em directo diante dos nossos olhos, há apenas cinco anos.

Mas, justamente, esses factos não os vivemos. Por muito que nos doa são espectáculo.

E o espectáculo das vítimas "vale" o filme da conspiração.

segunda-feira, 25 de setembro de 2006


Berlim (José Ames)

domingo, 24 de setembro de 2006

SELVAGEM É O FUTURO


http://animal.discovery.com/convergence/futureiswild/futureiswild.htm

Vi na 2 uma estupenda recriação do futuro selvagem do planeta. Qualquer coisa como 100 milhões anos longe de nós.

Quando a calote polar der lugar a uma exuberante floresta tropical e a Austrália encaixada na Ásia formar um planalto com 5 mil quilómetros de extensão e com uma altura superior à dos Himalaias.

A Evolução, quando não somos já o ponto de chegada, mas, desaparecidos com todos os outros mamíferos (à excepção dum qualquer roedor do planalto), formos um link perdido, uma estrela que brilhou um instante e se extingui no céu constelado, já não parece ter o mesmo sentido, se é que ainda tem algum.

Simone Weil dizia que "ver sem perspectiva é já uma compreensão". Pois bem, a primeira coisa que perdemos com esta extrapolação científica é precisamente a perspectiva.

sexta-feira, 22 de setembro de 2006


(José Ames)

quinta-feira, 21 de setembro de 2006

ILEGIBILIDADES


www.lapsus.bitacoras.com/

Um actor de revista dos anos 60 apareceu na RTP-Memória, num dueto arrebicado com uma comparsa, enquanto num canto do ecrã, a cores, o homem que foi esse actor observa, parecendo guardar um sorriso entre o irónico e o compassivo.

Qual é a ideia? Um confronto com o passado, que nunca deveria dar-se em espectáculo, ou uma perversão do debate contraditório (ainda que sem palavras)?

Receio que seja pior do que isso. Qualquer coisa de tele-sentimental como: estamos todos muito felizes por ele estar vivo ainda e connosco poder ver o nosso arquivo. E, para além disso, tão bem conservado!

quarta-feira, 20 de setembro de 2006


Berlim (José Ames)

segunda-feira, 18 de setembro de 2006

GUERRA PSICOLÓGICA


http://utter.chaos.org.uk/~markt/conspiracy/conspiracy.jpeg


Apanhei, sem contar, na televisão mais um programa do que pretende ser a desmistificação do 11/9.

Com uma qualidade técnica razoável, o documentário vai acumulando dúvidas, pondo em questão, num ponto e noutro, a versão oficial, como se estivesse a fornecer ao espectador a chave dum imbróglio inaudito. A conclusão é que nada bate certo e que a "história foi muito mal contada".

É claro que o espectador não tem meios de verificar as inúmeras pistas, dignas dum script hollywoodesco, e os seus únicos aliados são o bom-senso ou uma fé indefectível.

Mas se se conseguir instalar a suspeita, a aposta dos patrocinadores do programa já está ganha. Diria até que, se o 11/9 não fosse o que parece ser, teríamos aqui um verdadeiro terramoto cultural e epistemológico, que faria esquecer a importância da tragédia real.

Ah! levar os americanos, eles em primeiro lugar, a diabolizar o sistema, a perder a sua fé nas instituições e nos valores da sua democracia, que triunfo para a contra-informação!

Para a Al Qaeda, isso seria muito mais importante do que qualquer dos seus atentados.


Berlim (José Ames)

domingo, 17 de setembro de 2006

DELÍRIOS E PROVOCAÇÕES


O incêndio do Reichstag

Quando oiço algumas teorias conspirativas pretendendo "criminalizar as vítimas" e transformar o 11/9 num trabalho dos Serviços Secretos americanos, ocorre-me logo o modelo desta suspeita delirante: o incêndio do Reichstag, em Fevereiro de 1933, que, tudo leva a crer, foi uma provocação montada pelos próprios nazis.

Mas só quem pode controlar a opinião pública e a investigação criminal, impor a censura sobre os media e dispor do poder judiciário evitaria que um acto tão estúpido desabasse sobre a sua cabeça.

A demonização do "imperialismo americano" vai ao ponto de ignorar as diferenças entre os tempos, os regimes e os homens.

quinta-feira, 14 de setembro de 2006


"Anjo" (José Ames)

quarta-feira, 13 de setembro de 2006

OS TRÊS NÃOS




"Pais de cartão "substituem" militares dos EUA em missões no Iraque e Afeganistão

O programa começou no Maine e visa ajudar as famílias a ultrapassar as longas ausências dos soldados que servem no estrangeiro.

O tenente-coronel Randall Holbrook está no Afeganistão desde Janeiro, no Grupo 240 de Engenheiros de Augusta (Maine), a sede da Guarda Nacional. Mas em Bangor, cidade onde habitualmente reside, continua a viajar no carro entre os filhos, Logan, de cinco anos, e Justin, de 14. "É reconfortante. E ajudou muito na adaptação", disse ao Bangor Daily News Mary Holbrook, mulher de Randall, a propósito do marido a duas dimensões e de cartão que adquiriu no âmbito de um programa da Guarda conhecido por Flat Daddy, qualquer coisa como "Papá Plano"."

"O Público" de 13/9/2006


À primeira vista, parece mais um daqueles exageros a que nos habituámos, vindos do outro lado do Atlântico.

Depois, pensamos que, afinal, o que é uma fotografia que se traz na carteira senão um sucedâneo, uma ilusão que mitiga em nós a dor da ausência?

Mas não há aqui um qualquer limite transposto sem se dar por isso? Um limite do bom-senso, da sanidade mental, da auto-ilusão, o que seja?

Imaginemos, na mesma direcção, em vez do pai de cartão, um pai robot ou um pai virtual. Tudo para não enfrentar a realidade.

A ideia é, tipicamente, não crescer, não sofrer e não morrer.

terça-feira, 12 de setembro de 2006


(José Ames)

domingo, 10 de setembro de 2006

TER MAS NÃO PODER


Serra da Arrábida (José Ames)

Bénard da Costa, comentando no "Público" o triste destino dum dos mais belos lugares da Europa, pasto dos incêndios e das hordas domingueiras, brandindo o direito à sua parte do paraíso, diz que a Arrábida não foi feita para o turismo de massas, porque é "uma varanda de frades".

Muitas vezes me perguntei como é que se poderia compatibilizar a democracia e a igualdade com o usufruto do que é raro e frágil e tem de ser salvo das multidões para continuar a existir.

A Serra da Arrábida é um bom exemplo. As praias não lhe dão sossego. E não se pode transformar a Serra como a Cova da Iria e construir um adro gigantesco para conter a multidão de adoradores do sol.

De mais democrático, só vejo o sorteio ou a proibição a todos do acesso.

Uma portagem, por outro lado, sem ser uma medida cega, nem radical, permitiria, talvez, preservar um bem que é de todos. Porque é um bem de todos, mesmo se não for gratuito.

Como se percebe, não é a igualdade que está aqui em causa, mas o direito ao que é nosso, sem dar para todos.

sexta-feira, 8 de setembro de 2006


(José Ames)

quarta-feira, 6 de setembro de 2006

DEFESA DO LIRISMO


René Magritte (1898/1967)

Se a poesia é realista, o seu mundo não é o mundo em que nos movemos no dia a dia. Este está sujeito a rotinas e a mapas em que todos se reconhecem, e ela lança pontes para o desconhecido e abre secretas veredas.

Os tolos apropriaram-se dum dos seus nomes para chamar "lírico" àquele que não vive neste mundo.

Mas porque o mundo desses é fechado e estreito é que se enganam redondamente.


"Azulejo" (José Ames)

terça-feira, 5 de setembro de 2006

UM LORD JIM SOLAR


Gary Cooper (1901/1961)

Gary Cooper é o anti-Mitchum. Tudo nele é tensão e ranger de dentes.

No outro, o underacting é de rigor. Dir-se-ia que o actor não está ali para se esforçar demasiado, mas o efeito vai de encontro aos gostos de hoje, em que se procura, muitas vezes, o máximo de sentido através do que parece um anti-expressionismo.

Os caprichos do zapping levaram-me a um filme de 1959 ("The wreck of the Mary Deare" de Michael Anderson), em que Gary, nos antípodas do herói problemático de Conrad, enfrenta o dilema de Lord Jim.

Como não podia deixar de ser, tanto sofrimento virtuoso, é, para gáudio da Lloyds, recompensado pelo desmascaramento duma sabotagem.


Aquileia (José Ames)

segunda-feira, 4 de setembro de 2006


"Éfeso" (José Ames)

domingo, 3 de setembro de 2006

NIILISMO


pc.hrej.cz/clanky/recenze/ubersoldier-recenze/

"A defesa contra o niilismo é a verdadeira guerra ideológica da modernidade. Se o fascismo e o comunismo lutam em qualquer parte numa frente comum, é decerto na do "niilismo" que se imputa à "decadência burguesa".

(...) Um e outro garantem um fim último que justifica todos os meios e que promete um sentido à existência."

Peter Sloterdijk ("Critique de la Raison Cynique")


Quando os dois contendores mergulharam na sombra, quer a sua Nemesis tivesse adoptado a forma dum descalabro moral e militar ou a duma implosão nunca vista, fica-nos a desoladora questão:

foi então tão completo o triunfo do niilismo que só nos resta a razão cínica?


Dresde (José Ames)

Qual Fénix renascida das cinzas, a maravilhosa "Florença do Elba"!

O DESMENTIDO DAS FORMAS


A Frauenkirche de Dresde, reconstrução até ao pormenor do edifício original destruído pelos bombardeamentos de Fevereiro de 1945 de Ingleses e Americanos, quando a sorte da guerra estava já decidida e o pano de cena caía sobre o último acto da demência nazi, dá um belo perfil à cidade e a sua cúpula cor de mel parece guardar as relíquias do tempo. Mas transposto o seu portal, a decepção não podia ser mais completa. Chocam-nos as cores, a decoração, a insignificância do seu mamutíco interior.

Ao percebermos que nos encontramos dentro dum cenário, onde a antiga exibição da riqueza é trompe l'oeil e o mármore imitado, não sabemos já se teria valido a pena encarecer a obra em busca duma autenticidade que nunca existiu.

Augusto o Forte (1697-1733), femeeiro e amante das artes construiu ali o mais feio dos seus palácios, pese embora a magnificência do seu exterior que faz jus ao título de mais bela igreja luterana da Alemanha.